JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

O ICUF Iídicher Cultur Farband (Associação Cultural Judaica) COMO UMA REDE DE INTELECTUAIS - Dina Lida Kinoshita Primeira Parte:


O ICUF+ COMO UMA REDE DE INTELECTUAIS¨

 

Dina Lida Kinoshita*

 

Enquanto os judeus que viviam na Europa ocidental adquiriram sua cidadania depois da Revolução Francesa, quando surgiram os Estados nacional-liberais, as grandes massas judaicas que viviam na Pale, região em que era autorizada a moradia de judeus no Império Czarista, continuavam sob o tacão da autocracia feudal. Em sua maioria, viviam nos pequenos “shtetl”, rodeados por populações hostis onde o Império utilizava-os como "bodes expiatórios", tentando culpá-los pelos problemas sócio-econômicos e étnicos que grassavam no país. Pertenciam às camadas miseráveis de pequenos artesãos: alfaiates, marceneiros, padeiros, sapateiros e pequenos comerciantes. Com exceção de Kharkov, São Petersburg, Moscou, Vilna, Varsóvia, Lodz, e Bialystok, o padrão de trabalho ainda era artesanal.[1] De toda maneira, na última década do século XIX, houve um grande desenvolvimento capitalista na Rússia, e em conseqüência, dobrou o número de operários fabris. Aliado a este fato, há uma grande ascensão das lutas sociais e no limiar do século XX, os cárceres encontravam-se repletos por milhares de revolucionários, ansiosos por liquidar o despotismo reinante. Os judeus, como população, essencialmente urbana, estavam envolvidos neste movimento.

Foi neste caldo de cultura, que se desenvolveu o movimento sionista fundado por Theodor Hertzl no Império Áustro-Húngaro, e surgiu o movimento bundista[2] no Império Czarista que acabam de completar há pouco, um século. São ambos filhos legítimos do Iluminismo e da Revolução Francesa. O primeiro é uma manifestação tardia da aspiração pela cidadania em sua versão liberal, na tradição girondina, em que prevalecem os direitos de primeira geração, ou os direitos civis, a questão democrática e a questão do Estado-Nação. O segundo, na tradição jacobina, em sua versão marxista, privilegia os direitos de segunda geração, isto é, os direitos sociais, conquistados e definidos através das lutas dos trabalhadores desde o século XIX. Talvez pela manifestação tardia do sionismo que se dá num momento de grande ascensão de lutas sociais, acabe ocorrendo toda uma gama de hibridismos entre as duas vertentes, com correntes que vão desde a extrema esquerda até a extrema direita. É muito difícil acomodar numa lógica binária que perdura durante toda a Era dos Extremos, como Eric Hobsbawm define o “breve século XX”[3], personalidades como Borochov, que afirma o desejo de construir o socialismo num lar nacional judeu, e Jabotinski[4], que tem concepções fascistas de nacionalismo judaico. Entre ambos há toda uma gradação de tons e semi-tons que o Holocausto e a Guerra Fria acabaram alinhando, de forma artificial.

Enquanto o judeu da Europa Ocidental, a partir da Revolução Francesa, na qualidade de cidadão, foi adquirindo a cultura, hábitos e costumes e a língua do país em que nasceu, ou vivia, manifestando seu judaísmo através de sua fé, os que viviam sob o império czarista eram cidadãos de segunda classe, que tinham seus direitos civis, políticos e sócio-econômicos restritos na medida em que não lhes era permitido possuir terras, exercer determinadas profissões, movimentar-se por todo o território do império ou viver em certas cidades ou regiões e ao longo do tempo vigia ora o “numerus clausus” ora o “numerus nulus” quanto à matrícula escolar. Esses fatos acabam gerando um comportamento étnico muito particular, com hábitos e costumes próprios, mas sobretudo, uma cultura específica que se expressa inicialmente num jargão do alto alemão que acaba adquirindo o status de uma língua culta, o iídiche, com uma literatura pujante, falada pelas grandes massas judaicas do império[5]. Por outra parte, apesar da pouca ou nenhuma educação formal, entre a parcela destas comunidades, vinculada aos círculos socialistas, surge um novo tipo de intelectual, dentro da “...tradição marxista que levou os movimentos políticos fundados nos trabalhadores a dar ênfase particular ao desenvolvimento da teoria, considerado indispensável para orientar uma prática transformadora da realidade...”[6].

 O terror que imperava no Império Czarista atingia duplamente os judeus: como opositores ao regime e como judeus. Aliado à difícil situação sócio-econômica, e aos pogroms cada vez mais freqüentes, grandes levas de imigrantes passaram a dirigir-se inicialmente aos EUA e à Palestina.

Ao final da Primeira Guerra Mundial, após a Revolução Bolchevique constituíram-se diversos novos Estados, originados do colapso dos antigos impérios czarista, austro-húngaro e otomano, como Polônia, Lituânia, Hungria, Romênia, Checoslováquia, etc. Com exceção dessa última, a estrutura de poder nestes países era profundamente reacionária, funcionando como uma espécie de “cordão sanitário” para que “a praga bolchevista não se propagasse” e a política de perseguição às minorias étnicas, em particular aos judeus, persistia.  Por outra parte, poucos dias após a tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques, ocorreu no Império Britânico, a Declaração de Balfour, que prometia um lar nacional judeu na Palestina, dividindo a esquerda judaica. Apesar disso, parcelas significativas da juventude judaica mostravam simpatia pela nova sociedade que estava sendo construída na URSS. Uma parte destas massas tornara-se comunista ou socialista porque vislumbrara aí um caminho possível para a aquisição da cidadania embora pretendesse preservar prioritariamente sua cultura e tradição. Outros entenderam que a questão judaica não se poderia resolver de forma particular, que fazia parte da solução dos problemas universais. Se a difícil situação econômica e a perseguição são condições gerais para os judeus do Leste Europeu, os judeus de esquerda em todas as suas vertentes, são duplamente perseguidos. Embora a história dos judeus de esquerda hoje seja escamoteada e pertença à história dos silenciados e vencidos, sua importância pode ser conferida pela importância do BUND na formação do Partido Operário Social Democrata da Rússia, Polônia e Lituânia, bem como em obras literárias como “A Família Muskat”[7] e outras de Isaac Bashevich Singer, nas memórias de velhos militantes como Hersch Smoliar[8] ou em livros como Le Yiddishland Revolutionaire[9].

Com o estabelecimento das “quotas” por nacionalidade nos EUA, nos anos 20, e a política britânica de conter a ida de judeus para a Palestina, a partir dos anos 30, pelo menos parte do fluxo migratório muda de rumo, dirigindo-se para outros países, entre os quais, Argentina, Uruguai e Brasil. Embora já houvesse judeus de origem ashkenazita na região desde o fim do século XIX[10], a primeira grande corrente fixou-se, entre 1890 e 1910, nas colônias do Barão Hirsch no Rio Grande do Sul e no norte da Argentina. Se havia interesse do Barão de ocupar as regiões onde havia recém construído as ferrovias, certamente a escalada do terror czarista após a frustrada revolução de 1905, a difícil situação econômica com a derrota na Guerra Russo–Japonesa e o pogrom de Kishinev devem ter influenciado a decisão dos primeiros grupos de colonos que chegaram da Bessarábia.

Este fluxo de migração de judeus do Leste Europeu para a América do Sul, sobretudo para a Argentina, mas também, para o Uruguai e o Brasil, adquiriu maior expressão a partir dos anos 20. É uma imigração pós “pogroms” ocorridos durante a Guerra Civil, nas regiões do Império Czarista onde a Revolução de Outubro fracassou, especialmente, na Polônia e Lituânia. A ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, intensificou este fluxo. Esta emigração se dá em primeiro lugar por fatores econômicos, mas muitos fogem das ditaduras fascistas da Polônia, Hungria e Romênia não só devido à ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, mas também porque são militantes ou simpatizantes comunistas ou do Bund.

Enquanto alguns preferiram inserir-se nas lutas gerais dos povos da América Latina, a maioria, ao chegar a terras de língua, hábitos e costumes estranhos, reproduz os seus modos de organização dos países de origem.

No Uruguai, país de maior estabilidade democrática, com maior tradição de lutas socialistas e conquistas sociais mais avançadas, os judeus de esquerda, na condição de operários organizados, se integraram a um país de imigrantes, sem grandes problemas.

Na Argentina, que recebe o maior contingente de imigrantes judeus da América Latina, o processo é mais complexo. Grande parte dos recém chegados exerceu a função de “cuentenic”, ou mascate, vendedor a prazo. Seria interessante resgatar a função social destes mascates, porque vendiam mercadorias a um pessoal que pela primeira vez na vida tinha acesso ao crédito  e por outro lado, em suas andanças, estes mascates observavam as condições miseráveis em que vivia o povo, o que ajudava em sua conscientização política. Mas havia uma inserção operária expressiva, sobretudo nos sindicatos dos alfaiates, marceneiros, gráficos, onde inclusive havia bibliotecas e publicações em iídiche. Embora não tenham inserção entre os portuários e ferroviários, categorias muito fortes na época, trabalhavam na indústria metalúrgica. E já em 1918, a partir de uma greve nos Talleres Vassena, a Legião Patriótica, grupo argentino de direita fascista, organizara um verdadeiro pogrom em toda Buenos Aires. E neste mesmo ano, quando Rodolfo Ghioldi e Penelón fundaram o Partido Comunista Argentino, muitos judeus haviam feito sua adesão, e à moda russa e polonesa, criou-se uma IEVSEKCIA (Ievreiska Sekcia ou Seção Judaica), junto ao Comitê Central. O responsável por esta seção era o operário gráfico, Menachem Roizen. O peso da esquerda na comunidade era importante.     




¨ Publicado na Revista Universum, nº 15, 2000, Universidade de Talca, Chile

* Professora Doutora, Membro da Cátedra Unesco para Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, IEA - USP

[1] Le Pain de la Misère, Ed. Maspero, Paris

[2] O BUND (Aliança) é um movimento socialista judaico que surge no fim do século XIX, um dos grupos fundadores do Partido Social-Democrata Operário da Rússia, Polônia e Lituânia

[3] Hobsbawm, E., A Era dos Extremos, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995

[4] Hobsbawm, E., A Era dos Extremos, págs 119 e 172, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995

[5] Guinsburg, J., Aventuras de uma Língua Errante, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1996

[6] Freire, R. Carta convite enviada a intelectuais brasileiros por ocasião da criação da Fundação Astrojildo Pereira, março de 2000

[7] Singer, I.B., A Família Moskat, Livraria Francisco Alves Ed., Rio de Janeiro, 1982

[8] Smoliar, H., Oif der Letzter Pozitzie, mit di Letzter Hofnung, Ed. I. L. Peretz, Tel Aviv, 1982

[9] Brossat, Alain e Klingberg, Sylvia, Le Yiddishland Revolutionnaire, Balland, 1983

[10] Veltman, H., A História dos Judeus em São Paulo, Ed. Instituto Arnaldo Niskier, Rio de Janeiro, 1994

[11] Pinheiro, P.S.,  Estratégias da Ilusão, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1992

[12] Malamud, S., In Ondenk fun Praça Onze, Ed. Iídiche Presse, Rio de Janeiro, 1981

[13] Entrevista particular com Reinstein, P. e Sendacz, H., 1996

[14] Milgram, A, trabalho apresentado em congresso, “Contribuição à História do Radicalismo Judeu no Brasil”, Universidade de Tel Aviv, Israel, 1998

Exibições: 331

Responder esta

Respostas a este tópico

Judíos y Socialistas, víctimas del terror estatal (adjunto nota, a 58 años de una masacre silenciada).
Anexos

Responder à discussão

RSS

© 2024   Criado por Jayme Fucs Bar.   Ativado por

Badges  |  Relatar um incidente  |  Termos de serviço