JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Formam-se a mente e o sentimento pelas conversações; corrompem-se a mente e o pensamento pelas conversações.
(Blaise Pascal)

Introdução
Em continuação ao que escrevi sobre Espinosa1, o propósito deste ensaio é mostrar a influência do pensador francês Blaise Pascal sobre as idéias de Edgar Morin, também francês. Hoje, pode-se afirmar que Morin é o fundador do que proponho denominar de Escola Latina (Europa e América) do pensamento complexo. Trata-se de um vasto painel de idéias, cujas aplicações práticas a vários campos da atividade humana (à educação, por exemplo) começam a se tornar conhecidas e aceitas.
Minha proposta consiste em analisar alguns aspectos do pensamento pascaliano: sua estratégia de raciocínio, seu modo de lidar com o diálogo ordem-desordem, a aleatoriedade e a incerteza e, principalmente, com os paradoxos. Ao mesmo tempo, procurarei mostrar como tudo isso foi essencial para a estruturação do pensamento complexo, tal como concebido e formulado por Morin. Trata-se de uma influência profunda e importante, o que justifica o empenho em apresentá-la e discuti-la.

Port-Royal e o jansenismo
Blaise Pascal nasceu em Clermont, hoje Clermont-Ferrand, em 1623, e morreu em Paris em 1662, aos 39 anos. Portanto, ainda mais jovem do que Espinosa, que faleceu aos 45. Foi um gênio precoce, especialmente em matemática e física. Mesmo depois de ter passado a se interessar por questões religiosas, principalmente pelo cristianismo, não deixou totalmente de lado sua inclinação científica.
Não se pode afirmar que ele tenha sido um filósofo no sentido rigoroso da palavra. Não foi, por exemplo, um pensador metafísico profundo nesse mesmo sentido. Há mesmo quem veja nele um negador da metafísica. Mas também não há dúvida de que sua obra comporta uma postura filosófica, e por isso, até mesmo em homenagem à sua prodigiosa inteligência, vale tratá-lo como um filósofo. Também nessa ordem de idéias, é possível considerá-lo um provocador, um estimulador de reflexões. A seu ver, a filosofia não é capaz de proporcionar conhecimentos que sirvam de base para uma orientação de vida: só a revelação e a fé podem fazer isso. Portanto, resta à investigação filosófica a tarefa de aprofundar a dimensão antropológica. Assim, o empenho pascaliano se voltou para o estudo da condição humana e suas relações com o mundo. Nesse sentido ele é um continuador de Montaigne, que como Sócrates, Descartes, Kant e Heidegger, acreditava que o ser humano é o ponto central da especulação filosófica.
Mas o racionalismo, nascido no século 17, desenvolvido no século 18 e consolidado no mecanicismo científico do século 19, esvaziou a afirmativa de Montaigne e fez com que o homem deixasse de ser o tema principal da filosofia. O pensamento de Pascal foi uma reação contra o início desse processo. Se por um lado ele não conseguiu reconduzir o ser humano ao posto que ocupava em relação à filosofia, de outra parte deixou reflexões fundamentais sobre os limites da razão, que, segundo afirmava, são também os limites do homem. Mas acontece, infelizmente, que tais limitações quanto mais evidentes se tornam menos são entendidas (ou sequer percebidas) pela maioria das pessoas.
Dessa forma, num século em que se dava primazia à razão, Pascal caminhou na direção contrária: “Conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas também pelo coração. É desta ultima maneira que conhecemos os primeiros princípios, e é em vão que o raciocínio, que não toma parte nisso, tenta combatê-los”.2 Mas ele não nega a razão: apenas faz notar que ela tem limites e que, sobretudo, é de pouca ou nenhuma valia quando se trata de lidar com questões emocionais e religiosas: “O último passo da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam”.3
A obra pascaliana é vasta. Para o objetivo deste ensaio, porém, sua parte mais interessante está contida nos Pensamentos.4 Para entender esse filósofo, convém falar um pouco sobre o jansenismo. Aliás, foi por influência dos jansenistas que ele se tornou um questionador da razão e da própria filosofia.
O holandês Cornelius Jansen, ou Jansenius (1585-1638), bispo de Ypres, tentou promover uma reforma do cristianismo. Tratava-se, em essência, de um retorno às idéias de Santo Agostinho — uma visão rigorosa da natureza humana e da questão da graça divina. Em sua opinião, a teologia deveria fundamentar-se na autoridade e não na racionalidade. Havia duas correntes jansenistas. Para a mais estrita, o verdadeiro cristão e o genuíno membro do clero deveriam afastar-se totalmente da vida política e social. O mundo deveria ser evitado. A salvação viria por meio do retiro e do isolamento. A outra tendência adotava a militância religiosa.
Em 1640 surgiu a obra Augustinus, da autoria de Jansenius e publicada postumamente, livro que provocou uma acirrada polêmica e acabou condenado pelo Vaticano. Naquela época existia em Paris a abadia de Port-Royal, que havia sido fundada em Porrois, perto da capital francesa. “Port-Royal” é uma corruptela do nome dessa localidade. Quando a abadia se instalou também em Paris, a instituição de Porrois passou a chamar-se de Port-Royal des Champs. Uma e outra eram locais de retiro, estudo e reflexão, e os que lá se recolheram passaram a ser chamados de “os solitários”.
No grupo dos “solitários” destacam-se Antoine Arnauld, falecido em 1694, e Pierre Nicole, morto no ano seguinte. É da autoria dos dois uma obra muito festejada: La logique ou l’art de penser (A lógica ou a arte de pensar), que se tornou também conhecida como Lógica de Port-Royal. A orientação desse livro é no fundo aristotélica e cartesiana. Na opinião de alguns comentadores, apesar de sua fama não se pode dizer que ele tenha trazido contribuições de vulto ao conhecimento da lógica.
Embora as idéias de Jansenius e as de Port-Royal não coincidissem totalmente, a abadia ficou conhecida como um reduto jansenista, ao qual Pascal acabou por se incorporar. As posições jansenistas incluíam em especial a condenação aos jesuítas, por eles considerados muito lenientes e concessivos, principalmente quando se tratava de fazer proselitismo.
A condenação do Vaticano ao jansenismo não deixou de incluir as habituais perseguições. Os jansenistas foram declarados heréticos. Procurado pela polícia, Arnauld teve de passar à clandestinidade. Pascal se envolveu nessa controvérsia por meio de suas Cartas provinciais, inicialmente publicadas sem menção da autoria e por isso objeto de investigação de gráfica em gráfica, com o intuito de descobrir e punir seu autor. Às Cartas (foram 18) não faltavam qualidades literárias. Há quem compare o humor de algumas delas ao de Molière e Proust.5 Aliás, hoje existe o consenso de que Pascal foi o primeiro grande prosador da França. Com ele começou a polêmica de idéias como gênero literário.

Os Pensamentos
Há quem ache que a leitura dos Pensamentos não permite definir com clareza que tipo de obra o filósofo realmente escreveu ou queria escrever. No entanto, muitos dos fragmentos que compõem o texto, grande parte deles dedicados a questões relativas à fé e à religião, estão inacabados ou são obscuros, o que revela a intenção de continuidade ou aprofundamento.
A primeira edição dos Pensamentos, a chamada edição de Port-Royal, surgiu em 1658. O livro deveria ser uma apologia da religião cristã, mas a doença e, finalmente, a morte do autor, o impediram de terminar o projeto. Por outro lado, há quem veja nessa obra outra vertente de idéias. Nesse sentido, os aspectos antropológicos e ontológicos de muitos dos fragmentos assumem grande importância, pois traduzem a visão pascaliana do ser humano lançado a um mundo extremamente difícil de entender, dificuldade que se estende ao próprio homem, principalmente o fato de ser formado por duas naturezas opostas, e também o de seu corpo estar ligado a um espírito. Sobre este último obstáculo, Pascal leu em Santo Agostinho: “A maneira como o espírito está unido ao corpo não pode ser compreendida pelo homem e, no entanto, isso é o próprio homem”.6 Nos dias atuais, esse tema vem sendo investigado pela ciência cognitiva.

O todo e as partes
Nos escritos de Edgar Morin há muitas menções explícitas e implícitas a Pascal, a começar pelo que se refere às relações entre o todo e as partes. Lembremos o conhecido fragmento pascaliano: “Sendo todas as coisas causadas e causantes, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas se mantendo por um laço natural e insensível que liga as mais afastadas e as mais diferentes, tenho como impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes”.7
Em termos atuais, pode-se dizer que essa frase contém alguns dos conceitos fundamentais do pensamento complexo ou a ele relacionados. Exemplos: a) a circularidade causa-efeito, isto é, a retroação do efeito sobre a causa, realimentando-a (feedback); b) o princípio de Ernst Mach, questionado mas não invalidado por Einstein e outros, que diz basicamente que a inércia de um corpo é determinada por sua relação por todos os corpos do universo. Pascal sustenta que a natureza ama a unidade, e a procura até mesmo por meio da junção de coisas que na aparência estão muito distantes umas das outras. O princípio de Mach se refere exatamente a isso; c) o princípio hologramático, de Morin e David Bohm, que diz que as partes estão no todo mas o todo também está em cada uma de suas partes. Aliás, segundo Pascal a humanidade deve ser vista como um único ser humano, que se mantém ao longo do tempo e aprende sem cessar.
Relacionam-se a todas essas noções algumas idéias atualmente muito mencionadas (e não menos necessárias). Lembremos três delas: a) a tolerância, da qual fala com freqüência Jürgen Habermas; b) a hospitalidade, que segundo Jacques Derrida vai além da tolerância; c) a ética do acolhimento, variante da idéia de holding environment (ambiente de apoio), introduzida pelo psicanalista inglês Donald Winnicott. Daí a necessidade do respeito à diversidade biológica, à multiculturalidade e à multiplicidade de comportamentos humanos e animais. Nada disso é incompatível com a existência de princípios organizadores e com a possibilidade de vários tipos de ordem.

A razão e o coração
De acordo com o filósofo, a razão isolada, separada da emoção, da intuição e dos sentimentos não passa de um racionalismo árido. Configura o que Morin chama de razão estéril e auto-referenciada. Essa mesma posição se encontra também em Espinosa, contemporâneo de Pascal e como este influenciado por Descartes, embora isso nem de longe signifique concordância irrestrita.
O que Pascal chama de razão é basicamente o método silogístico de Aristóteles, que ele vê como limitado e limitador. E assim é porque não leva em conta que além da razão (raison) existem também as emoções, o coração (coeur). É pascaliana a conhecidíssima frase “o coração tem razões que a razão desconhece”, cuja versão completa requer o acréscimo de mais cinco palavras: “Sabe-se disso em mil coisas”.8 O coeur é intuitivo; é a percepção instintiva, direta e imediata dos princípios.
É também pascaliana (e espinosana) a idéia de que nossas percepções do mundo começam como emoções e depois assumem a forma de sentimentos. Foram essas as conclusões a que também chegou o neurocientista António Damásio, da Universidade de Iowa, EUA. Segundo Damásio, as emoções estão incluídas entre os mecanismos básicos de regulação da vida. Seus estudos clínicos e experimentais fizeram-no concluir que elas são fenômenos que acontecem no corpo. Já o sentimentos ocorrem, para usar a sua expressão, “no teatro da mente”.9
Desse modo, primeiro as emoções estimulam o corpo; a seguir chegam à consciência, isto é, nós as sentimos; por fim falamos a seu respeito, conversamos sobre esses sentimentos. Mas esses achados de clínica e laboratório, observa Damásio, não nos devem levar à falsa conclusão de que corpo e mente são separados. Como Espinosa, esse pesquisador sustenta que trata-se de modos diferentes de apresentação de uma mesma substância.
A essas percepções iniciais (as emoções) Pascal chama de “conhecimento dos primeiros princípios”. Já vimos que em sua opinião o conhecimento da verdade nos chega não apenas mediante a razão mas também pelo coeur, isto é, por meio das emoções e dos sentimentos. É pelo coração, não pela mente, que tomamos conhecimento desses “primeiros princípios” ou “verdades principais”. O conhecimento proporcionado pelas emoções e sentimentos é mais firme do que o obtido via razão.
No entanto, o coeur pascaliano nada tem a ver com as paixões: o filósofo as condenava e propunha o desapego. O coeur não é uma inclinação afetiva: é uma inteligência, um modo de percepção que nos leva ao conhecimento global, imediato, intuitivo. A razão explica, o coração compreende. Mas uma e o outro não se excluem, fertilizam-se mutuamente: o coração constrói a base sobre a qual a razão deve se apoiar. A fé pertence a esse âmbito. Entretanto, Julián Marías10 observa que o coeur pascaliano nada tem a ver com pieguices nem traduz qualquer espécie de sentimentalismo.

A questão do ego
Em relação à neurociência, convém acrescentar algumas palavras sobre a questão do ego, tema para o qual Pascal abriu uma trilha importante, que acabou por desaguar na moderna ciência cognitiva. Eis a sua indagação: “Por que alguém amaria a substância da alma de uma pessoa, abstratamente, e algumas qualidades nela existentes? Isso não é possível e seria injusto. Portanto, nunca se ama ninguém, mas somente qualidades”.11 Esse fragmento dos Pensamentos começa com outra pergunta, não menos provocadora: “Onde está então esse eu, se não está no corpo nem na alma? E como amar o corpo ou a alma, senão por essas qualidades que não são o que fazem o eu, pois que são perecíveis?”12
Em termos de filosofia ocidental, esse talvez tenha sido o primeiro questionamento claro e direto da existência do ego tal como o imaginamos. Tempos depois, no seu Tratado da natureza humana, publicado em 1739/1740, o filósofo escocês David Hume (que escreveu essa obra aos 26 anos de idade) proporia uma resposta: “De minha parte, quando entro mais intimamente no que chamo de mim mesmo, sempre tropeço em uma ou em outra percepção específica: calor ou frio, luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer. Não consigo, em nenhum momento, apanhar a mim mesmo sem uma percepção, e jamais consigo observar nada além de percepções”.13
Essa passagem é famosa. Com ela, Hume nega nossa idéia de “eu” (ego, self). Para ele, tudo o que conseguimos observar são nossas percepções e sensações, jamais o “eu” que, segundo imaginamos, seria o sujeito delas. Não existe, como pensa nossa cultura ocidental, um ego separado, fixo, persistente, diante do qual desfilariam idéias, sensações e percepções.
Há milênios as tradições orientais, inclusive o budismo, já haviam chegado a essa conclusão. E agora, milênios depois delas e séculos depois de Pascal e Hume, a ciência cognitiva atual também assim concluiu. Em meio á extensa literatura sobre o assunto, lembremos alguns autores.
Daniel Dennett14 compara o funcionamento do cérebro humano ao de uma colônia de cupins, cujo funcionamento organizadíssimo faz supor a existência de um comando central, uma “alma”, quando na verdade é o resultado da interação de todos os indivíduos da comunidade. Do mesmo modo, a “alma” ou o ego humano são apenas nomes que designam o funcionamento da rede de neurônios do tecido cerebral.
Para Patrícia Churchland,“não existe uma pessoazinha no cérebro que ‘vê’ uma tela interna de televisão, ‘ouve’ uma voz interior, ‘lê’ mapas topográficos, raciocina, decide como agir e assim por diante. Há apenas neurônios e suas conexões”.15 Para ela, a inteligência do cérebro não pode ser explicada pela inteligência de um “eu”, mas sim pelo funcionamento do conjunto dos neurônios.
Dados mais recentes, e na mesma linha, foram apresentados e extensamente discutidos por V.S. Ramachandran, diretor do Centro do Cérebro e Cognição da Universidade da Califórnia em San Diego.16 Em suma, ao que tudo indica o que existe de fato são os processos do pensamento. O que chamamos de ego é o conjunto dos resultados desses processos — como disse Pascal.

Os dois diálogos
Pascal influenciou Morin também no que se refere à dialógica. A propósito, convém relembrar aqui a diferença entre dialógica e dialética, que algumas pessoas têm dificuldade de entender e outras imaginam inexistente. O escritor francês Paul Valéry, por exemplo, caiu nesse equívoco quando escreveu que Pascal havia escolhido ser vago a ser exato.17 Na realidade, ele parece ter confundido pensar com clareza com pensar exclusivamente segundo o raciocínio binário — a lógica do “ou/ou” ou do terceiro excluído. No mesmo engano incorreram outros comentadores da obra pascaliana. Mas a diferença existe, sim, e a idéia de dialógica é apresentada com clareza em várias passagens dos Pensamentos.
Na dialética, como se sabe, o formato é a tríade tese, antítese e síntese. A síntese é a resolução, o resultado do embate entre a tese e a antítese. Desse modo, pode-se dizer que a contradição se resolve por meio de uma espécie de negociação que leva a um acordo. O choque entre os opostos é solucionado pelo surgimento de uma terceira figura. Já na dialógica não é possível chegar a uma resolução, pois as características dos contrários tornam o confronto inegociável e por isso eles precisam conviver num diálogo sem fim. Um dos critérios, talvez o mais eficaz, para fazer essa diferenciação é a duração do diálogo. Na dialética ele é temporário, tem início meio e fim. Na dialógica, precisa continuar indefinidamente.
Morin assim define a dialógica: “Unidade complexa entre duas lógicas, entidades ou instâncias complementares, concorrentes e antagonistas, que se nutrem uma da outra, completam-se, mas também se opõem e se combatem. (...) Na dialógica, os antagonismos persistem e são constitutivos das entidades ou fenômenos complexos”.18
Trata-se, portanto, de opostos ao mesmo tempo antagônicos e complementares, como os princípios masculino e feminino, a razão e a emoção, ou, como escreveu Nietzsche em seu primeiro livro19, o apolíneo e o dionisíaco. Para esse filósofo, a cultura da Grécia clássica comportava dois pólos. O apolíneo seria o controlado, o racional, da ordem, da contenção. O dionisíaco seria o bárbaro, da paixão, do desejo incontido. Essa interação produz conflitos, mas também gera criatividade: o apolíneo precisa do dionisíaco e a recíproca é verdadeira. Ou, nas palavras de Pascal: “Nem a contradição é a marca da falsidade, nem a não-contradição é a marca da verdade”.20
Em suma, a dialógica é um modo de fazer com que os paradoxos não apenas sejam admissíveis, mas de perceber as idéias novas que muitas vezes deles emergem. É o que diz Gérard Lebrun, para quem o objetivo da dialógica não é solucionar contradições, mas sim tornar pensáveis os paradoxos: “Pascal é ‘dialético’ somente na aparência e numa primeiríssima aproximação. Certamente, sua estratégia é de tal ordem que combina proposições que parecem excluir-se”.21
Mas lidar com paradoxos (e não há nada mais paradoxal do que o ser humano e suas sociedades) é coisa de que não gostamos, porque nos confronta com a inevitabilidade da dúvida, da incerteza, da dificuldade de controle. Nossa cultura predominantemente cartesiana, iluminista, nos convenceu de que podemos dominar a natureza, inclusive a nossa própria. E nos forneceu incontáveis instrumentos de auto-engano para manter-nos convencidos disso, mesmo quando somos (como acontece diariamente) postos diante de evidências de que esse domínio está muito longe de ser tão completo quanto desejamos. Com efeito, não tem sido outra a função da chamada “idéia de progresso” da modernidade.
Entre ser sempre fortes ou sempre fracos, optamos ingenuamente pela primeira hipótese: queremos ser sempre fortes, controladores, racionais e “exatos”, mesmo quando tudo à nossa volta nos mostra que somos fortes e fracos — não uma coisa ou outra —, e que há momentos e circunstâncias em que é preciso aceitar o erro, a aleatoriedade e a ambigüidade. Aceitá-los e reconhecer que eles são meios de autoconhecimento, que nos ensinam a tolerância (não confundir com permissividade), a moderação (não confundir com auto-repressão) o senso de ridículo (não confundir com timidez) a firmeza de posições (não confundir com narcisismo) — enfim, a sabedoria de viver, que inclui isso tudo mas a nada disso pode ser reduzida.
Eis uma das grandes descobertas de Pascal: ele mostra que os opostos simultaneamente antagonistas e complementares são parte inalienável da condição humana. Vê em nossa condição a coexistência de grandeza e miséria e entende que a natureza humana corrupta é inseparável da grandeza humana. São condições opostas e complementares. Essa é a tese pascaliana fundamental: a grandeza do homem é sua faculdade de pensar, sua fragilidade é sua miséria: “O homem não é senão um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante”.22
A idéia da ambigüidade do ser humano fez de Pascal um precursor do pensamento existencial e influenciou, por exemplo, Albert Camus e sua filosofia do absurdo. Por outro lado, a idéia pascaliana de que o homem é um ser lançado ao mundo sem saber por que razão, certamente deve ter inspirado o conceito de “ser-aí”, de Heidegger. Na condição de caniço, de junco (um roseau pensant), o ser humano torna-se grande exatamente quando reconhece a sua miséria, o que deveria impedi-lo de se mostrar arrogante, prepotente e predatório pela supervalorização dessa mesma grandeza.
A compreensão da ambigüidade da condição humana exige que aprendamos a lidar com essa e muitas outras contradições não solucionáveis pela dialética. Já vimos que quando o diálogo de duração limitada não soluciona uma contradição, é preciso levá-lo adiante, não desistir dele, perpetuá-lo enfim. Essa é uma forma de lidar com a incerteza, a aleatoriedade, e de aceitar diferenças. Nesse sentido, pode-se dizer que Pascal é também um precursor de uma das bases daquilo que hoje se conhece como a técnica do diálogo, desenvolvida em especial pelo físico americano David Bohm.
A estratégia pascaliana consiste em ir até onde for possível com o pensamento lógico-seqüencial e, por fim, questionar os pressupostos que orientam esse raciocínio. Questionar não os argumentos, mas o modelo mental em que eles se baseiam.23 Em outras palavras: questionar o passo-a-passo para mostrar que o equívoco está nos pressupostos, nos juízos prévios, os quais, como propunha Montaigne, deveriam ser suspensos ao menos momentaneamente para que algo de novo pudesse surgir e ser aprendido.
Se com a metáfora do junco pensante Pascal reconhece a coexistência em nós da grandeza e da miséria, por outro lado ele afirma que é mediante a revelação divina que esses contrários podem ser harmonizados, isto é, mantidos em constante diálogo. Para tanto, a seu ver a antropologia deve se transformar em uma teologia. O ser humano não pode ser somente grandeza, como queria Epicteto (um estóico dogmático), ou apenas miséria, como afirmava Montaigne (um cético que, como acabamos de ver, propunha como meio de conhecimento a suspensão dos juízos sobre todas as coisas). Entre os opostos Epicteto e Montaigne, Pascal ficava com o paradoxo: o homem não é grande ou miserável; ele comporta grandeza e miséria: “O homem conhece-se na pessoa de Cristo, o homem-deus, imagem do acordo dos contrários que o constitui”.24
Assim, ao contrário de Espinosa, Pascal vê na religião — no caso, o cristianismo — um instrumento para a compreensão da complexidade. Em sua opinião, para pô-lo em prática é preciso que acreditemos nas verdades reveladas, na transcendência, no sobrenatural. Nessa linha de raciocínio, o exemplo pascaliano de uma situação que inclui opostos a um só tempo antagonistas e complementares é, como acabamos de ver, a figura de Cristo, o homem-deus. Nele conviveram o humano e o divino, dois opostos que se contradisseram mas também se alimentaram mutuamente.
No entender de Pascal, a essência de Cristo está “na sutura de discursos que se excluem, no campo que os mantém juntos sem os articular logicamente nem os compor dialeticamente”.25 Desse modo, no ser humano a oposição entre grandeza e miséria não é dialética, pois não há como resolvê-la. Ela é dialógica e ajuda a compreender a ambigüidade inerente à nossa condição. Trata-se, como escreve Denis Huisman, de “verdades que parecem incompatíveis mas que não deixam de invocar-se mutuamente”.26 Para esse autor, a dialógica pascaliana põe no lugar da seqüência racional uma rede, na qual se entrecruzam diferentes linhas de interpretação.
Da linearidade às redes, portanto: estamos em pleno âmago do pensamento complexo, como o concebeu e formulou Morin, que no entanto abstrai de seu pensamento a religiosidade característica de Pascal. Segue-o e se deixa influenciar por ele, mas só no tocante à dialógica contida em sua antropologia filosófica. A dialógica é tão importante que Morin fez dela um dos instrumentos de conhecimento do pensamento complexo, a que deu o nome de “operador dialógico”. Convém insistir nesse ponto: ao utilizar a dialógica aprendida com Pascal, ele busca antes de mais nada estabelecer a alimentação mútua entre contrários inconciliáveis pela dialética. Na impossibilidade de uma síntese superadora da contradição, a tensão entre os opostos se mantém e dela surgem fenômenos novos — as propriedades emergentes.
A compreensão da dialógica fez de Pascal um “filósofo do paradoxo”, um pensador que afirma que a verdade é sempre a junção de opostos e que o ser humano é paradoxal, simultaneamente grande e pequeno e, como vimos, forte e fraco.27 A confusão que muitas vezes se faz entre a existência de opostos ao mesmo tempo antagônicos e complementares e o irracionalismo (ou a confusão entre paradoxo e absurdo) é um dos maiores problemas que algumas pessoas enfrentam para a compreensão e aceitação do pensamento complexo. Não é fácil aceitar a idéia de que nem sempre aquilo que ultrapassa a razão é irracional. Por outro lado, é também difícil entender que a pretensão de racionalizar tudo é uma manifestação de irrealismo e irracionalismo.
Nesse sentido, a iniciativa de denominar Pascal de filósofo do paradoxo faz justiça à sua perspicácia, pois em boa parte de seus Pensamentos ele recusa o raciocínio binário sem cair na racionalização nem na irracionalidade. Em questões religiosas, porém, às vezes cai na lógica binária, aliás típica dos monoteísmos. Nessas ocasiões a lógica do “ou/ou” surge em seus textos, nos quais há passagens como a que afirma que a religião cristã “é a única a ter razão”.28 Afora exceções como essa, a fragmentação típica do binarismo não faz parte dos Pensamentos, obra em que mais de um comentador vê uma unidade, uma ordem implícita na desordem aparente.
Ao fim destas considerações sobre a dialógica, convém não esquecer que Pascal talvez tenha sido o primeiro a escrever sobre a diferença entre a discussão/debate e o diálogo, no sentido que o já mencionado David Bohm dá a essa palavra. Nos escritos pascalianos, a discussão e o debate correspondem à “arte de convencer” e visam a explicar, a ensinar. Já o diálogo, que o filósofo considerava mais útil e mais sutil, é a “arte de persuadir” e busca a compreensão.29

Pascal e Espinosa
Espinosa, com sua imanência, e Pascal, com sua transcendência, contribuíram decisivamente para o pensamento complexo. Espinosa usa a racionalidade para justificar a imanência. Pascal mostra, a seu modo, a “racionalidade” da transcendência. Como já sabemos, em sua opinião as relações entre a mente (a razão) e as emoções (o coração) são mutuamente alimentadoras, embora em cada caso específico o ponto de partida sejam as emoções, isto é, aquilo que ocorre no corpo, que é o lugar onde primeiramente se dão nossos contatos e interações com o mundo.
A expressão “sabedoria convencional”, criada pelo economista John Kenneth Galbraith30, designa as crenças estabelecidas de nossa cultura atual. São as “certezas” do pensamento linear-cartesiano. Com base nelas, tem-se como certo que mentes e corações são coisas separadas. Sintomaticamente, porém, no linguajar cotidiano falamos em mentes e corações, não em mentes ou corações, o que mostra que no fundo não estamos muito convictos dessa separação.
Mas ilude-se quem imaginar que tal percepção seja clara para todos, a ponto de poder ser posta em prática com facilidade. No dia-a-dia, a orientação dessa “sabedoria” hegemônica é manter as mentes o mais longe possível dos corações. A isso chamamos de “atitude racional”. Dela nos valemos para justificar, por exemplo, nosso pragmatismo e insensibilidade diante de condições como a miséria, a exclusão social e outras barbaridades. Ainda assim, cumpre ressalvar que essa observação não justifica as pieguices, os populismos e as atitudes paternalistas e demagógicas, que surgem sempre que se salta diretamente para o pólo oposto e se dá primazia às emoções.
“Se submetermos tudo à razão, a nossa religião não terá nada de misterioso e sobrenatural”, escreveu Pascal.31 Foi o que fez Espinosa, como que confirmando a continuação do pensamento pascaliano: “Se violentarmos a razão, a nossa religião será absurda e ridícula”.32 E foi o que Espinosa por seu lado constatou, quando condenou a superstição. Para Espinosa, chega-se a Deus por meio da razão. Para Pascal, ela é inadequada para tal finalidade; mas sem o coração a razão é inútil, e o coração sem a razão é insuficiente. Ao contrário de Espinosa, Pascal não acreditava que a razão pudesse abranger os âmbitos da moral e da religião: a seu ver, é na ciência que ela encontra seu domínio apropriado, embora mesmo aí não seja infalível.

Geometria e finesse: as duas inteligências
Houve uma fase da vida do filósofo, após a morte de seu pai, em 1651, em que ele se dedicou muito a atividades sociais, mundanas. Por essa época, surgiu o livro Discours sur les passions de l’amour (Discurso sobre as paixões do amor), que lhe foi atribuído. À luz da globalidade do seu pensamento essa atribuição deve ter sido correta, pois nessa obra figuram algumas idéias bem pascalianas, a começar pela diferença entre o esprit géométrique, “espírito geométrico” e o esprit de finesse, “espírito de finura”.
Além do mais, o filósofo também escreveu um pequeno tratado, que não chegou a terminar, cujo título é De l’esprit géométrique, no qual afirmou que a geometria é a mais perfeita das ciências — com o que manifestou um lado racionalista-cartesiano exclusivo que mais tarde haveria de superar. Nesse livro, ele se esqueceu (mas Descartes, em sua obra, não) de dizer que se retrocedermos o suficiente em qualquer seqüência rigorosamente lógica, acabaremos por chegar ao início de tudo — a intuição.33
Em francês, esprit também significa mente, inteligência. Doravante chamarei esprit de finesse de inteligência de finura e esprit géométrique de inteligência geométrica, pois são denominações mais adequadas ao que o filósofo quer expressar nesse contexto. A inteligência geométrica se refere ao rigor e à exatidão do pensamento. A inteligência de finura se relaciona à agilidade, à abrangência, à intuição, ao insight. A de finesse percebe as coisas de um só golpe, e não por meio de uma seqüência de raciocínio como faz a inteligência geométrica. A primeira é analítica e a outra sintética.
Nos dias atuais, pode-se dizer que, por analogia, a inteligência geométrica está próxima do pensamento linear-cartesiano e a inteligência de finura está ligada ao pensamento sistêmico. A esse respeito, lembremos que Henri Bergson dizia que não existe aquilo que chamamos de desordem. O que há são duas espécies de ordem, a geométrica e a da vida.34 Essa formulação é superponível aos dois tipos de inteligência propostos por Pascal. Na inteligência geométrica ele identifica a exatidão, a mensuração; na de finura, vê a estimativa, a avaliação. Sofia Rovighi35 acredita que é possível identificar a inteligência geométrica com a mente abstrata, teórica, e a de finura com a mente concreta, experiencial.
Assim, quem está acostumado a tratar quase que exclusivamente com conceitos, abstrações e fragmentos pode perder a experiência global e sintética do concreto. Para lidar com a concretude das coisas e situações é necessário que a mente seja abrangente, sintética, e que a compreensão seja rápida, quase imediata. A bem dizer, o que Pascal queria destacar é que é importante que as duas inteligências se complementem quando necessário.
Essa é também a proposta do pensamento complexo: ligar a razão do coração ao coração da razão. A própria vida de Pascal é um exemplo de como a inteligência de finura e a geométrica se combinaram para estruturar uma mente privilegiada. No entanto, as pessoas que pensam linearmente têm dificuldade de aceitar que a racionalidade e a não-racionalidade (que não deve ser confundida com irracionalidade) possam coexistir, e com resultados tão brilhantes, numa só pessoa.
A oposição das duas inteligências também pode ser vista como um antagonismo entre o conhecimento explicativo (a episteme explicativa, das ciências ditas exatas ou “duras”) e o conhecimento compreensivo (a episteme compreensiva, das chamadas ciências humanas). Porém, é preciso não esquecer que a importância de explicar não é maior nem menor do que a de compreender. O que não pode ser explicado pode e deve ser compreendido. É inadmissível pretender reduzir o que deve ser compreendido ao que precisa ser explicado, na tentativa de ficar do “lado racional”.
Pascal assegura que os conceitos oriundos da inteligência geométrica nem sempre são fáceis de perceber e entender. Já na inteligência de finura os princípios são evidentes, mas muitas vezes escapam à mente geométrica, pois falta-lhe a abrangência necessária para intuir suas múltiplas facetas e sua diversidade. Aqui a intuição e o sentimento predominam sobre a objetividade e a lógica, mas é difícil tornar isso claro para pessoas nas quais predomina a inteligência geométrica. Sobretudo, é difícil fazê-las entender que a obra de Pascal, como a de muitos outros pensadores, comporta, como mostraram Morin e outros, várias leituras e não apenas a religiosa. É a mesma dificuldade, com sinal trocado, que se tem para convencer as pessoas cuja inteligência é predominantemente de finura de que há situações na vida em que a mensuração e a exatidão são não apenas necessárias como indispensáveis.
Nicola Abbagnano36 observa que o ser humano não pode conhecer a si próprio como um objeto geométrico e, portanto, as comunicações entre as pessoas não podem realizar-se apenas por meio de raciocínios lineares. Não é por outra razão que Pascal, dotado das duas espécies de inteligência em raro equilíbrio, foi definido como um poeta dos números e não como um simples matemático profissional. Com efeito, ele descobriu que a aleatoriedade e o azar podem combinar-se com o rigor do método matemático, o que denominou de “geometria do azar” (aleae geometrica). Portanto, pode-se dizer que a ele devemos, entre muitas outras coisas, a descrição em termos facilmente compreensíveis das estruturas paradoxais da realidade.37
Pascal dedicou-se à investigação da condição humana porque sentiu necessidade de comunicar-se não apenas com as outras pessoas, mas também com ele próprio. Percebeu que para que essa comunicação seja integral de pouco valem os rigores de inteligência geométrica quando utilizados isoladamente. Caracterizou a instabilidade e a incerteza como inerentes ao homem, que por isso mesmo está entre o ser e o nada. Eis porque aprender a lidar com a incerteza, e não pensar que é possível eliminá-la, é uma tarefa humana fundamental.

Alienação
A visão pascaliana da alienação é semelhante à de Espinosa, em especial à idéia de “mente distraída” do filósofo holandês. Pascal usa o termo divertissement, que no caso significa distrairmo-nos com exterioridades para não ter de pensar, refletir, procurar compreender nossa natureza contraditória. Costumamos recorrer à inteligência geométrica, ou pensamento linear, para explicar virtualmente todas as coisas e situações, mesmo as que não são explicáveis mas sim compreensíveis. Tentamos racionalizar tudo. Quando o modo linear se revela inadequado ou ineficaz, em vez de recorrer ao pensamento abrangente, à inteligência de finura, preferimos fugir do problema, isto é, alienar-nos.
Ao contrário de Espinosa, já vimos que o modo pascaliano de sair da alienação não é ser racional, mas sim buscar a fé religiosa. Entretanto, seja qual for o caminho que se trilhe para lidar com ela, é preciso ter em mente que a alienação não é um fim, é um meio de fugir a responsabilidades e conseqüências. A busca incessante da diversão, tanto quanto a obsessão pelo trabalho, são instrumentos dessa procura. Como se sabe, a busca infindável é também uma evasão infinita, pois seu eventual término conduziria a um imenso vazio. Daí nossa necessidade de reiniciá-la a cada instante, para ficar o mais longe possível daquilo que mais tememos: pensar em nós mesmos. Fugir é o princípio, o meio e o fim da alienação — um fim que sempre volta ao seu começo.

Pascal e a complexidade
O que hoje chamamos de pensamento complexo tem a ver com o que Pascal denominava de “inteligência penetrante” ou “espírito penetrante”. É um modo de pensar que permite que compreendamos os paradoxos, a complexidade dos fenômenos do mundo e a nossa própria.
O filósofo assinala que estamos presos à imaginação e aos hábitos, o que faz com que os confundamos com nossa natureza e por isso tenhamos muita dificuldade de modificá-los. Em termos atuais, diríamos que estamos atrelados aos nossos condicionamentos, entre os quais o principal é o raciocínio binário. Esse condicionamento é particularmente resistente quando se trata de crenças, em especial as religiosas. Já vimos que o próprio Pascal não escapou a essa armadilha. Além do exemplo dado há pouco, acrescentemos mais um: “Só há duas espécies de pessoas a quem se possa chamar de razoáveis: ou os que servem a Deus de todo coração, porque o conhecem, ou os que o buscam de todo o coração porque não o conhecem”.38
Sabemos que o raciocínio binário é fragmentado e fragmentador. No caso de Pascal, porém, a fragmentação é mais exceção do que regra. A aparente desordem dos Pensamentos contém uma ordem implícita. Como ele próprio disse, “escreverei aqui os meus pensamentos sem ordem e não talvez numa confusão sem objetivo. É a verdadeira ordem que caracterizará sempre o meu objeto pela desordem mesma”.39 Não por acaso, esse é um dos princípios básicos do pensamento complexo: ordem, desordem e organização. A desordem está implícita na ordem e vice-versa.

A filosofia na prática: a aposta
Os comentadores não se cansam de destacar que um dos motivos da popularidade de Pascal é sua capacidade de trazer para a prática os raciocínios mais abstratos e complicados. Para tanto, sem dúvida auxiliou-o o seu lado científico e matemático. Uma de suas perguntas mais características era: “A teoria resulta na prática?”40 A idéia pascaliana de aposta (pari) ilustra bem esse aspecto. Ela influenciou de modo importante o pensamento de Morin, para quem nossas ações são sempre o resultado de uma decisão, uma escolha entre duas ou mais alternativas. O processo inclui, portanto, a incerteza e a imprevisibilidade e por isso não deixa de ser uma aposta.41
Em Pascal, o conceito de aposta está ligado à fé religiosa. Quando se trata da existência de Deus, o filósofo argumenta do seguinte modo: se vivemos como se Deus não existisse, fazemos uma aposta e corremos o risco de não encontrar a salvação após a morte; se vivemos como se Deus existisse, essa aposta nos traz ao menos os benefícios e consolos que a fé nos proporciona ao longo da vida. Portanto, justifica-se apostar na existência divina: “Deus existe ou não existe; mas para que lado penderemos? A razão nada pode determinar a esse respeito. (...) É preciso apostar. É inevitável, estais embarcados nessa”.42
A idéia de aposta implica uma recusa à argumentação racional exclusiva. Em Pascal, apesar de ela estar ligada à fé religiosa, é claro que se trata de um raciocínio ao qual não falta um acentuado grau de pragmatismo: se não somos capazes de provar a inexistência de Deus, é mais seguro, por via das dúvidas, que conduzamos nossas vidas com base na hipótese de sua existência.
No fim das contas, trata-se de um raciocínio custo-benefício. Não se pode deixar de apostar, mesmo porque adotar uma atitude fatalista do tipo “o que tiver de acontecer, acontecerá” é também uma aposta, embora negativa. Na prática, costumamos fazê-la com freqüência: entregamos o futuro ao acaso e muitas vezes, ironicamente, dizemos “seja o que Deus quiser”, mesmo quando apostamos em sua inexistência. Em suma, numa situação em que as chances são fifty-fifty, “arriscar o finito para ganhar o infinito é, evidentemente, uma medida da máxima conveniência”.43
A fé atenua a convivência com o risco. Ela também pode mudar o comportamento de algumas pessoas e, assim, torná-las menos indecisas e portanto menos imprevisíveis, o que diminui o risco de conviver com elas. Por outro lado, a fé aliada à ingenuidade excessiva pode tornar as pessoas facilmente manipuláveis.
É claro que a fé não precisa ser necessariamente em Deus. No planejamento estratégico de uma empresa, por exemplo, damos preferência a um ou mais entre vários cenários futuros. Ao assim proceder, “pomos fé” em nossa estratégia e/ou investimentos. Nesse sentido, adotamos a posição de Edgar Morin: é preciso que estejamos conscientes de nossas apostas filosóficas e políticas.
Os comentários à idéia pascaliana de aposta proliferam na literatura filosófica. Muitos deles incluem extensas considerações matemáticas e por isso não têm interesse para os nossos objetivos. Para manter a coerência com a abordagem antropológica e ontológica deste ensaio, lembro uma observação de Gilles Deleuze, que sustenta que em Pascal a idéia de aposta não se refere à existência ou à inexistência de Deus. É uma postura antropológica, que “recai apenas sobre dois modos de existência do homem, a existência do homem que diz que Deus existe, e a existência do homem que diz que Deus não existe”.44
Morin propõe que ao falar em aposta não devemos pensar invariavelmente em jogos de azar ou realizações que implicam perigo. Na realidade, apostar equivale a trazer a incerteza para junto da esperança. Quando apostamos, introduzimos em nossas vidas e ações o wishful thinking, o desejo e o comprometimento. Não há estratégia nem enfrentamento de desafios sem disposição de aposta, seja qual for a questão envolvida. Apostar é um modo de entrar em contato com a aleatoriedade, a incerteza e a imprevisibilidade. Como estas estão entre as dimensões mais fundamentais da condição humana, pode-se dizer que toda vida que inclui reflexão inclui também um certo grau de aposta.
No entender de Morin, a aposta nos protege contra o erro45 e, como modo de lidar com a incerteza, constitui a parte mais importante do pensamento de homens como Pascal, Dostoievski, Miguel de Unamuno, Theodor Adorno e Lucien Goldmann, este último autor de um estudo importante sobre Pascal. Nessa ordem de idéias, Morin alerta para o fato de que o conhecimento é limitado por várias evidências de incerteza: a) as visões de mundo são sempre individuais, subjetivas; b) nem a contradição é garantia de falsidade, nem a não-contradição assegura a verdade, como escreveu Pascal); c) a falta de autocrítica da racionalidade (a razão que inclui a emoção) leva à racionalização (a razão “absoluta”); d) nossa mente não é de todo transparente para nós mesmos, pois existe o inconsciente.46
A aposta se justifica também diante do que Morin chama de “ecologia da ação”, para a qual ele propôs dois princípios, aumentados para três por Lise Laférière47: a) o nível de eficácia ótima de uma ação está em seu começo; b) uma ação não depende só da intenção ou intenções de seu autor; depende também das condições do ambiente em que ela se desenvolve; c) a longo prazo, os efeitos das ações não podem ser previstos.
As políticas da vida, particulares ou públicas, devem ser elaboradas simultaneamente no aqui-e-agora e no meio-termo. Tal circunstância produz inevitavelmente incertezas e contradições, pois do ponto de vista biológico não existe outra maneira de viver.48 Não há, portanto, como deixar de apostar. Não há como deixar de ter fé, seja a religiosa, como propunha Pascal, sejam as de quaisquer outros tipos: na vida, no futuro, em nosso potencial e nos dos que compartilham conosco a existência e assim por diante. Trata-se, enfim, da esperança de que é possível idealizar e pôr em prática outros tipos de política além dos comprovadamente inadequados. Para tanto, porém, é necessário outro modo raciocínio: o pensamento complexo.
Quanto maior for a distância a que os políticos atuais estiverem desse novo modo de pensar, mais intensa deve ser nossa aposta de que ele precisa ser implementado, pois no fim das contas tais políticos, seu modo de pensar e suas ações somos nós mesmos ou criações nossas, seja por ação, seja por omissão. A dimensão política da aposta não se resume a como chegar ao poder e mantê-lo. Implica concebê-lo, alcançá-lo e exercê-lo pensando de outra maneira.
Em relação a esse aspecto, falemos de um fenômeno sobre cuja existência e aparente inevitabilidade não há dúvidas: a barbárie humana em todas as suas manifestações — o que inclui a dos países ditos desenvolvidos. Se a existência e a aparente perenidade da barbárie são indubitáveis, apostar que ela pode ao menos ser atenuada poderia ser visto como uma perda de tempo. Isso se aplicaria, por exemplo, a apostar em iniciativas de paz num mundo pesteado por guerras e violência. Eis o argumento do ceticismo e do cinismo, dois grandes produtores de apostas negativas. Nesse, como em muitos outros casos, a aposta negativa esconde o conformismo, que por sua vez facilita a manutenção do status quo.
Para que haja alguma mudança que não se limite à retórica (e aí é que está a grande dificuldade), é indispensável que se aposte também numa mudança de modelo mental: na disseminação de um modo de pensar que permita ver as coisas (inclusive o cinismo e o ceticismo) de outra maneira. Essa é, como já sabemos, a proposta do pensamento complexo. Por isso, apesar desses e de muitos outros pesares é preciso apostar, sim, já que apostar negativamente é reconhecer que estamos ausentes de nossas próprias vidas. É fazer o jogo da alienação.

Notas
1. Humberto Mariotti. “O conhecimento do conhecimento: a filosofia de Baruch de Espinosa e o pensamento complexo”. www.geocities.com/pluriversu , 2004.
2. Blaise Pascal, Pensamentos 110 (282). A edição dos Pensamentos que uso neste ensaio é a de Louis Lafuma, publicada no Brasil pela editora Martins Fontes. Mas existe outra, de Léon Brunschvicg. Os fragmentos desses textos são numerados. Quando os cito neste ensaio, o primeiro número corresponde aos da edição de Lafuma, e o que está entre parênteses aos da de Brunschvicg.
3. Id. Ibid., 188 (267).
4. Pascal. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
5. Gerard Lebrun. Pascal: voltas, desvios e reviravoltas. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 57.
6. Santo Agostinho. A cidade de Deus, XXI, 10.
7. Pascal. Pensamentos, 199 (72).
8. Id., ibid., 423 (277).
9. António Damásio. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 35-36.
10. Julián Marías. História da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 248.
11. Pascal. Pensamentos, 688 (323).
12. Id., ibid.
13. David Hume. A treatise of human nature, I. VI, iv.
14. Daniel Dennett. Elbow room: on the varieties of free will worth wanting. Oxford: Clarendon Press, 1983.
15. Patricia Churchland. Neurophilosophy. Cambridge, Massachusetts: Massuchetts Institute of Technology Press, 1986, pp. 406-407.
16. V. S. Ramachandran e Sandra Blakeslee. Fantasmas no cérebro: uma investigação dos mistérios da mente humana. Rio de Janeiro: Record, 2002.
17. Albert Béguin. Pascal. México: Fondo de Cultura Económica, 1989, p. 24.
18. Edgar Morin. La méthode. 5. L’humanité de l’humanité. L’identité humaine. Paris: Seuil, 2001, p. 281.
19. Friedrich Nietzsche. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
20. Pascal. Pensamentos, 177 (384).
21. Lebrun. Op. cit., pp. 75, 76.
22. Id., ibid., 200 (347).
23. Alban Krailsheimer. Pascal. Lisboa: Dom Quixote, 1983, pp. 60-61.
24. Entretien avec M. de Sacy sur Epictète et Montaigne. In Monique Labrune e Laurent Jaffro. A construção da filosofia ocidental: gradus philosophicus. São Paulo: Mandarim, 1996, pp. 393-394.
25. Denis Huisman. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 752.
26. Id., ibid., p. 750.
27. Marilena Chauí. “Pascal, Vida e Obra”. In “Pascal”. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 19.
28. Pascal. Pensamentos, 808 (245).
29. Roger Verneaux. Historia de la filosofia moderna. Barcelona: Herder, 1984, p. 48.
30. John Kenneth Galbraith. A economia das fraudes inocentes: verdades para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 9.
31. Pascal. Pensamentos, 173 (273).
32. Id., ibid., 173 (273).
33. Verneaux. Op. cit., p. 48.
34. Jill Krementz. “Piaget”. In The writer’s desk. Nova York: Random House, 1996, p.10.
35. Sofia Rovighi. História da filosofia moderna: da revolução científica a Hegel. São Paulo: Loyola, 1999, p. 154.
36. Nicola Abbagnano. História da filosofia. Lisboa: Presença, s.d., vol. VI, p. 183.
37. Béguin. Op. cit., p. 14.
38. Pascal. Pensamento, 427 (194).
39. Id., ibid., 532 (373).
40. Krailsheimer. Op. cit., p. 69.
41. Edgar Morin. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, pp. 115-117.
42. Pascal. Pensamentos, 418 (233).
43. Abbagnano. Op. cit., pág. 192.
44. Lebrun. Op. cit., p. 115.
45. Edgar Morin. La tête bien faite: repensar la réforme, réformer la pensée. Paris: Seuil, 1999,
p. 69.
46. Edgar Morin. Les sept savoirs necessaries à l’éducation du futur. Paris: Seuil, 2000, pp.93-94.
47. Edgar Morin. O método. 2. A vida da vida. Porto Alegre: Sulina, 2001, pp. 100-103.
48. Edgar Morin. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 303.

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© Mariotti, H., fevereiro, 2005

HUMBERTO MARIOTTI. Médico psicoterapeuta e ensaísta. Coordenador do Grupo de Estudos Contemporâneos (Complexidade, Pensamento Sistêmico e Cultura) da Associação Palas Athena (São Paulo). Professor da Business School São Paulo (São Paulo). E-mail: homariot@uol.com.br

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