JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

um judeu
Em sua brutal carreira, o bandeirante cometeu inúmeras atrocidades contra os jesuítas e os indígenas. Movido pela fúria contra a Inquisição portuguesa

Reprodução
Em 25 de julho de 1633, um grupo de bandeirantes tomou de assalto a igreja e o colégio dos jesuítas em Barueri, perto de São Paulo. Imagens foram quebradas, objetos de prata, roubados, e as portas, pregadas. Eram seis homens, ricos, poderosos... e excomungados. Antônio Raposo Tavares, Pedro Leme, Paulo do Amaral, Manuel Pires, Lucas Fernandes Pinto e Sebastião de Ramos tinham acabado de receber, do padre Antônio de Medina, a notícia de que estavam expulsos do convívio da Santa Mãe Igreja. Os bandeirantes rasgaram o ofício e botaram para correr os missionários de Barueri.
Não era o primeiro enfrentamento direto contra os enviados do Vaticano. Nem seria o último. Em 18 de abril de 1639, uma das maiores autoridades da Igreja nas Américas, o comissário da Inquisição e reitor do Colégio de Assunção, Diogo de Alfaro, foi assassinado com um tiro no rosto quando tentava punir outro grupo de bandeirantes,
que incluía André Fernandes, fundador de Santana de Parnaíba, e seu irmão, Baltazar Fernandes, fundador da vila de Sorocaba – foi Baltazar, aliás, quem disparou a arma. Antes desses incidentes, entre 1628 e 1629, uma expedição que partiu de São Paulo varreu todo o esforço missionário na região que atualmente compreende Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul.
Desrespeitando o Tratado de Tordesilhas, os bandeirantes definiram o tamanho do Brasil. Nessas incursões – nas quais a maioria da tropa era composta de índios ou mestiços – faziam outros índios de escravos. Seus alvos não eram apenas aldeias sem contato, mas também missões e suas “ovelhas”, que já eram treinadas no trabalho agrícola.

Raposo Tavares não foi o único a atacar missões. Mas, para ele, a coisa era pessoal. E a razão de sua fúria tinha nome e sobrenome: Maria da Costa, sua madrasta.
No encalço da família
Os judeus eram perseguidos na Península Ibérica desde o final do século 15. Em 1492, a Espanha expulsou os seus. Muitos se deslocaram para Portugal, onde a perseguição começou logo depois, em 1497. A Inquisição lusitana instalou três tribunais dentro do país, em Évora, Lisboa e Coimbra, além de uma filial em Goa, na Índia. Via de regra, os perseguidos pelo Santo Ofício no Brasil eram enviados a Lisboa, já que aqui não havia as instalações próprias. Isso mudaria entre 1580 e 1640, quando uma confusão na sucessão real em Lisboa transformou Portugal em parte da Espanha.

Ao longo desses 60 anos, os brasileiros passaram a ser perseguidos pelo Tribunal da Inquisição espanhola instalado em Lima, em funcionamento desde 1570. E isso aumentou muito a eficácia da Inquisição. Entre 1635 e 1639, enquanto os bandeirantes percorriam todo o continente, os investigadores instalados no Peru chegaram a condenar 80 pessoas.

Ações dos bandeirantes definiram tamanho do Brasil / Reprodução
A família de Maria da Costa foi envolvida nesse turbilhão. Ela nasceu em Évora, em 1584. Era adolescente quando seu pai, o mercador João Lopes de Elvas, foi preso, acusado de praticar judaísmo. Não totalmente sem justificativa: diferentes membros do clã de cristãos-novos haviam sido forçados à conversão ao cristianismo, mas ainda se mantinham secretamente fiéis à sua fé.
“Quando os judeus foram obrigados a se tornarem católicos – ao menos na fachada –, eles se transformaram em cristãos-novos. Esses cristãos-novos que continuaram a seguir suas antigas leis é que foram perseguidos”, diz Marcelo Meira Amaral Bogaciovas, mestre em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Cristãos-Novos em São Paulo (séculos XVI-XIX): Assimilação e Nobilitação. “Obviamente que era uma perseguição religiosa. Mas não era a única preocupação da Inquisição: havia também a de natureza econômica, uma vez que os bens subtraídos dos cristãos-novos processados, por vezes abonados, engrossavam a Fazenda Real de Portugal.” Não por acaso, a família de Maria tinha muitas posses.

Ela foi presa, junto com seu tio, irmão de seu pai, em 1º de junho de 1618. Só seria libertada em 6 de maio de 1624. Antes e depois de ser entregue ao Santo Ofício, tentou fugir para o Brasil, mas não conseguiu. Estava pobre e sem nenhuma possibilidade de recuperar suas conexões dentro da sociedade lusitana. Seu marido, Fernão Vieira Tavares, vivia no Brasil desde 1617, aonde chegou para assumir um alto posto na administração da colônia. Ele morreria em 1622. E ela nunca mais pôde ver os filhos e os enteados – tanto Maria quanto Fernão estavam em seu segundo casamento e tinham filhos da primeira união. Antônio Raposo Tavares, resultado do primeiro matrimônio de Fernão, havia sido educado por Maria, na região do Alentejo. Certamente participou de rituais judaicos secretos em casa.
Raposo Tavares tinha 20 anos quando chegou a São Vicente e acompanhou, a distância, o sofrimento de sua madrasta. Não é de estranhar, portanto, que, ao longo de toda a vida, ele atacasse os jesuítas sempre que tivesse oportunidade. Até porque, no Brasil, eram os religiosos da Companhia de Jesus que organizavam os inquéritos da Inquisição, coletavam dados, conduziam investigações e recebiam os visitadores enviados da Europa – a primeira visita de um oficial da Inquisição ao Brasil se deu em Salvador, em 1591.
Livros de Moisés
Outros bandeirantes conhecidos, como Fernão Dias Paes e Brás Leme, também eram cristãos-novos. Com a perseguição aos judeus na Europa, viver no Brasil parecia uma boa alternativa. Estima-se que, no século 16, um terço dos europeus que chegavam à colônia da América do Sul eram judeus convertidos e “convertidos”.
“Muitos cristãos-novos foram para São Paulo, como foram para todos os cantos do Império Português, em sua maioria para melhorar a situação econômica e financeira, em razão de não haver espaço para seu desenvolvimento em Portugal”, diz o historiador Marcelo Meira. “Claro que também muitos deles procuraram refúgio longe dos inquisidores. Mas essa ideia precisa ser revista: estar em qualquer dos cantos do Império Português não os eximia de serem perseguidos, presos e castigados pela Inquisição.”
Cristãos-novos eram os líderes, mas as expedições paulistas atraíam praticamente todos os homens adultos da região. A viagem liderada por Manuel Preto, tendo Antônio Raposo Tavares como imediato, em 1628, reuniu 900 súditos da Coroa portuguesa, brancos ou, principalmente, mamelucos. Só ficaram para trás os idosos e não mais do que 25 homens adultos em condições de empunhar uma arma. Muitas autoridades participaram da expedição, incluindo Cristóvão Mendes, ouvidor da vila de São Paulo, Brás Leme, Amador Bueno e seus filhos, e o juiz da vila de Santana de Parnaíba, Pedro Álvares. Entre os viajantes, estavam 54 famílias de origem judaica, incluindo bandeirantes com sobrenomes Paiva, Mendes, Fernandes, Furtado, Grou, Pedroso, Quadros e Souza.
Ao longo do percurso, mais de 2 mil indígenas foram presos e 13 missões jesuíticas, reviradas. Num momento em que o Tratado de Tordesilhas não estava em vigência – Portugal fazia parte da Espanha –, sair de São Paulo e chegar às proximidades de Buenos Aires, destruindo todo o trabalho missionário dos espanhóis, representava uma provocação direta ao reino da Espanha. O bispo da cidade argentina, aliás, enviou uma carta ao papa, em setembro de 1637, lamentando as ações dos portugueses: “En el Brasil ay una Ciudad (sugeta a um perlado que nos es bispo) que se llama San Pablo, en esta se han juntado um gran numero de hombres de diferentes naciones, ingleses, olandeses y judios, que haciendo liga com los de la tierra como lobos rabiosos hazem gran estrago em el nuevo rebaño de Vuesa Santidad”.
Nos relatos dos religiosos, é difícil distinguir lendas de afirmações verídicas – foi só no século 20 que surgiram os primeiros trabalhos questionando a imagem, criada pelos jesuítas, de que os bandeirantes mais pareciam demônios do que pessoas. As cartas dos jesuítas costumavam afirmar que os paulistas “eram cristãos e agiam como judeus” e todos estavam “infeccionados de judaísmo”.
A acreditar num documento produzido pelo padre da Companhia de Jesus Francisco Crespo, escrito entre 1631 e 1636 para o rei da Espanha, Raposo Tavares teria sido questionado sobre suas ações e respondido que agia “pelo título que Deus lhes dava nos livros de Moisés”. Seria uma confissão clara de prática de judaísmo, declarada por um bandeirante famoso por não aceitar padres em suas viagens nem permitir que os doentes parassem em vilas para pedir a alguma autoridade religiosa o sacramento da extrema-unção.
Esse tipo de denúncia contra o bandeirante se acumulou ao longo da década de 1630, principalmente depois do episódio de Barueri, em 1633, que deixou claro que nem a excomunhão fazia os paulistas mudarem de atitude. Até que, finalmente, em 16 de setembro de 1639, o rei espanhol Felipe IV resolveu agir: a pedido do religioso espanhol Antônio Ruiz de Montoya, o monarca exigiu que Raposo Tavares fosse caçado a qualquer preço e colocado à disposição do Tribunal da Inquisição. A ordem perdeu efeito, porém, logo no ano seguinte, quando Portugal recuperou sua independência. Ele escapou, mas outros cristãos-novos de São Paulo ainda seriam, no futuro, presos e queimados – caso de Theotonio da Costa, em 1686, e Miguel de Mendonça, em 1731.
Com agressividade, bandeirantes redefiniram geografia / Reprodução
Cristãos-novos e o Brasil
Se Raposo era odiado pelos padres, a mesma opinião não tinham as autoridades portuguesas. Ou talvez tivessem, mas ele era um bárbaro muito útil para dispensar. Em 1639, foi convocado pelo governador Salvador Correia de Sá e Benevides para participar do esforço de retomada do Nordeste contra os holandeses. A expedição militar durou três anos. Fracassou, mas rendeu a ele a patente de capitão. O bandeirante impressionou as autoridades ao reunir 150 homens e bancar a viagem de todos. Em troca, acabou convocado para realizar a bandeira mais arriscada que se poderia imaginar: uma incursão até os arredores do Peru. Chegou a viajar até Portugal, em meados da década de 1640, para receber instruções para a missão. A viagem começou em 1648 e alcançou, num primeiro estágio, os arredores de Potosí, na Bolívia. O grupo de Raposo chegou a destruir, como de costume, várias aldeias indígenas, dessa vez localizadas em Itatim, Maracaju e Terecañi, entre outras.
Caçado pelo exército sediado em Assunção, Raposo Tavares subiu o Rio Paraguai. Foi quando conseguiu cumprir uma das solicitações mais importantes da corte portuguesa: ao descer o Rio Madeira até a altura do Rio Amazonas, o bandeirante localizou uma rota de acesso capaz de cruzar parte considerável do interior do continente, ligando o sul ao norte de forma relativamente rápida e segura. Ao voltar para casa – uma fazenda em Quitaúna, atual bairro da cidade de Osasco –, depois de mais de 10 mil quilômetros de percurso, ele estava irreconhecível, de tão magro e doente.
A importância de cristãos-novos como Raposo na formação do Brasil ainda não é reconhecida. Mas essa situação está começando a mudar. “Os cristãos-novos estão aparecendo recentemente na literatura didática, de 2012 para cá. Somos um país essencialmente católico e colonizado por católicos, e isso, de certo modo, influenciou muito o ensino nas escolas, e, portanto, os livros didáticos, parte da cultura material escolar”, diz a historiadora Helena Ragusa, professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Eles foram fundamentais, de fato. “Os cristãos-novos influenciaram a vida paulistana”, diz o historiador Marcelo Meira. “Eram alfabetizados dos, sabiam negociar e possuíam um caráter especial que resultou na conquista de novas terras.”
Raposo Tavares não contou com esse tipo de reconhecimento em vida. Seu nome mal era mencionado nas notícias que davam conta dos acontecimentos extraordinários registrados ao longo da expedição de 1648. Morreu ao fim da década de 1650, em sua fazenda em Quitaúna. Talvez tenha retornado a Portugal anos antes para prestar contas de sua viagem. Teve três filhos, com duas esposas, Beatriz Bicudo (falecida em 1632) e Lucrécia Leme Borges de Cerqueira.
Pouco se sabe a respeito de sua vida privada. É conhecido, por exemplo, seu hábito de desenhar mapas dos lugares por onde passava, assim como estudar as propriedades das plantas que recolhia ao longo de suas viagens – o que lhe rendia acusações veladas de bruxaria. Não há sinais de que tenha educado os filhos na fé judaica. Seu sobrinho, Antônio Vieira Tavares, filho de seu meio-irmão Diogo da Costa, seria o fundador da cidade de Salto.
Quanto à perseguição, só em 1773 um decreto real português acabou, ao menos em teoria, com as diferenças entre cristão-novo e cristão-velho. Já o Tribunal da Inquisição continuaria existindo até 1821.

Saiba mais
Os Judeus Que Construíram o Brasil, Anita Novinsky, Daniela Levy, Eneida Ribeiro e Lina Gorenstein, Planeta, 2015
Raposo Tavares – O Último Bandeirante, Pedro Pinto, Planeta, 2012
Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil, Jaime Cortesão, Imprensa
Oficial, 2013
Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo, John Monteiro, Companhia das Letras, 1994

Exibições: 172

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 Excelente artigo sobre Raposo Tavares. Na realidade ele fez o que foi necessário em seu tempo e circunstâncias. 

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