Todas as Discussões Marcadas 'E' - JUDAISMO HUMANISTA2024-03-29T01:03:00Zhttps://judaismohumanista.ning.com/forum/topic/listForTag?groupUrl=humanismo-e-a-educacao&tag=E&feed=yes&xn_auth=noESTUDO COMPARATIVO SOBRE O CONCEITO DE DIÁLOGO NO PENSAMENTO FILOSÓFICO E PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE E DE MARTIN BUBER por : Suzana Cortez1tag:judaismohumanista.ning.com,2012-05-15:3531236:Topic:711642012-05-15T10:03:32.626ZJayme Fucs Barhttps://judaismohumanista.ning.com/profile/JaymeFucsBar
<p>INTRODUÇÃO <br></br> Como um dos principais elementos que compõe o pensamento educacional brasileiro, <br></br> o diálogo está presente na maior parte das Teorias Educacionais enquanto norteador dos <br></br>
princípios das práticas pedagógicas, configurando-se como condição fundamental neste <br></br>
processo. Por dentro da riqueza de reflexões pedagógicas encontradas nos diversos autores, <br></br>
optamos neste estudo por uma análise mais aprofundada da descrição teórica e vivência do <br></br>
diálogo a partir…</p>
<p>INTRODUÇÃO <br/> Como um dos principais elementos que compõe o pensamento educacional brasileiro, <br/>
o diálogo está presente na maior parte das Teorias Educacionais enquanto norteador dos <br/>
princípios das práticas pedagógicas, configurando-se como condição fundamental neste <br/>
processo. Por dentro da riqueza de reflexões pedagógicas encontradas nos diversos autores, <br/>
optamos neste estudo por uma análise mais aprofundada da descrição teórica e vivência do <br/>
diálogo a partir da visão de Paulo Freire e Martin Buber, nas suas diversas obras. <br/>
Dessa forma este estudo tem como objetivo a exploração da conceituação de “diálogo” <br/>
na perspectiva dos estudos teóricos tanto filosóficos quanto educacionais de Paulo Freire e de <br/>
Martin Buber ao longo de suas obras. As duas teorias no âmbito do que propomos estudar <br/>
defendem a importância da presença do diálogo nas relações inter-humanas, porém como já <br/>
antes afirmamos, possivelmente são conceituados mediante o pensamento e o contexto <br/>
pessoal e histórico de cada autor. Do ponto de vista teórico o método mais indicado no nosso <br/>
caso será o método hermenêutico de interpretação textual, e no sentido mais específico a <br/>
interpretação da conceituação do que vem a ser o diálogo para cada um dos autores referidos.</p>
<p>PAULO FREIRE <br/> Esta parte do estudo tem como objetivo a exploração da conceituação de ‘diálogo’ na <br/>
perspectiva dos estudos teóricos de Paulo Freire ao longo de sua obra. Sendo assim, <br/>
tentaremos compreender a conceituação de diálogo como elemento básico da Teoria <br/>
Educacional freireana nos seus aspectos de permanência e mudanças ao longo da sua obra. <br/>
A dialogicidade no pensamento freireano é um dos pontos nodais de sua teoria. Este <br/>
conceito perpassa por todo seu método teórico-prático. O diálogo, mais do que uma conversa <br/>
entre dois, ou um mero ouvir, ou ainda o discursar, é em Freire uma atitude que deve ser <br/>
priorizada nas relações humanas. O diálogo para ele é de onde parte as relações pedagógicas, <br/>
vistas por um viés crítico, autônomo, livre, ético e por tudo isso, conceituado por ele como <br/>
uma postura problematizadora.</p>
<p>1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco, no Curso de Mestrado em <br/> Educação. suzicortez@hotmail.com</p>
<p>2<br/> Apresentaremos neste estudo uma análise mais direcionada de obras significativas de <br/>
diferentes fases de Freire que demonstram suas preocupações e estudos de ordem dialógica. <br/>
Para os fins desse projeto apresentaremos as análises já feitas das obras: Educação como <br/>
Prática da Liberdade, Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Autonomia. Para tal <br/>
separamos em grandes blocos àquelas obras de Freire que se aproximam na conceituação e <br/>
outro bloco para as obras que se distanciam ou mesmo apresentam novo viés para esta <br/>
conceituação temática. <br/>
Neste primeiro bloco separamos as obras Educação Como Prática da Liberdade e <br/>
Pedagogia do Oprimido, estando orientadas pelo “pano de fundo” das décadas de 1950 e <br/>
1960. São construções das idéias fundamentais de Paulo Freire e encontra-se num mesmo <br/>
patamar das interpretações do conceito de diálogo em Freire. Foram os acontecimentos e suas <br/>
conseqüências histórico-políticas desta época que influenciaram estes escritos. <br/>
Em sua obra Educação Como Prática da Liberdade, Freire expressa o fundamento de <br/>
toda sua práxis: a comunicação enquanto ação especificamente do homem. Para que esta <br/>
comunicação/diálogo seja possível é necessário cuidar para que as palavras não caiam no <br/>
verbalismo ou mesmo se tornem vazias. Os sujeitos envolvidos devem antes se apropriar da <br/>
autenticidade/verdade para adquirirem o caráter genuíno do diálogo e, para tal, implicaria uma <br/>
postura crítica e reflexiva diante das palavras e ainda diante do mundo. Este mundo refere-se <br/>
a “uma realidade objetiva, independente dos homens, possível de ser conhecida” (FREIRE, <br/>
1971, p. 39). Outra condição está fundada na não exclusão do outro no mundo que o cerca. <br/>
Esta postura está descrita no sentido de aceitação mútua entre os sujeitos que dialogam, na <br/>
maneira crítica com que percebem o mundo e como se comportam socialmente e <br/>
politicamente diante deste. <br/>
É com este pensamento que Freire tenta demonstrar através de seu método prático <br/>
pedagógico o caminho para a libertação dos oprimidos (aqueles que estão à margem da <br/>
sociedade e submetidos ao poder de coerção dos opressores/detentores do poder) pela tomada <br/>
de consciência crítica e pelo desenvolvimento da vontade de lutar. É uma tentativa de resgatar <br/>
os oprimidos para seu caminho de humanização, para o qual originalmente todo o homem está <br/>
destinado. <br/>
Em Pedagogia do Oprimido Paulo Freire trata do diálogo enquanto ação estritamente <br/>
pertencente ao homem como uma vocação ontológica e histórica dos homens de serem mais <br/>
(1987, p. 57). Está voltada para a comunicação entre indivíduos/sujeitos de igual condição. <br/>
Esta idéia central a respeito do diálogo atravessa todas as obras aqui estudadas. Podemos <br/>
verificar que há uma permanência desta caracterização.</p>
<p>3<br/> Assim como em Pedagogia do Oprimido, na obra Educação Como Prática da <br/>
Liberdade, Freire aprofunda mais na descrição dos fundamentos do diálogo enquanto <br/>
condições fundamentais/ essenciais para este realizar-se. <br/>
Na Pedagogia da Autonomia a conceituação modifica-se no sentido de explicitamente <br/>
admitir o posicionamento de abertura entre os pólos como condição ao diálogo. Este <br/>
aprofundamento torna o diálogo não somente como um ato comunicativo entre sujeitos, mas <br/>
uma ação não preconceituosa de aceitação daquilo que está diante de nós. Esta admissão do <br/>
diferente não cabe ao diálogo entre opressores-oprimidos uma vez que estes na sua <br/>
constituição intelectual e política estão em posicionamentos opostos. Está aqui intencionada <br/>
uma abertura entre os oprimidos, embora diferentes, são iguais quando assumem os mesmos <br/>
interesses, unindo-se numa mesma causa: a libertação de si e dos outros. <br/>
Paulo Freire é categórico ao afirmar a condição de simpatia entre os pólos como <br/>
fundamento para suceder o diálogo. Esta condição é um tópico permanente em suas <br/>
afirmações. Isto explicaria a necessidade daquilo que indicamos como ‘suicídio de classe’. <br/>
Assim voltamos ao ponto inicial, onde os sujeitos para estabelecerem o diálogo genuíno <br/>
precisam posicionar-se numa mesma base de pensamento, devem ter amor entre eles, fé um <br/>
no outro o que seria impossível nas categorias apresentadas por Freire, entre opressor e <br/>
oprimido. <br/>
Podemos chegar a admitir uma separação sutil de dois blocos nas obras aqui <br/>
analisadas. Estariam, portanto, divididos entre uma conceituação de diálogo que perpassa <br/>
quase todo o pensamento pedagógico de Paulo Freire, e uma concepção que incluiria uma <br/>
dimensão diferenciada. Neste primeiro bloco incluem-se as obras: Educação como Prática da <br/>
Liberdade e a Pedagogia do Oprimido. No outro bloco a Pedagogia da Autonomia <br/>
contemplando sob nosso olhar, um viés sutil de um caráter de abertura ainda pouco <br/>
comentado por Freire. Este aspecto diferencial traz em si uma mudança aproximativa de uma <br/>
postura dialógica que se inclui o diferente, criando uma atmosfera de aceitação não <br/>
preconceituosa e, portanto, inclusiva. <br/>
A explicação mais aproximativa para estas mudanças que podemos observar está <br/>
relacionada ao contexto político-social e ao amadurecimento do pensamento pedagógico de <br/>
Paulo Freire. O contexto político-social das diferentes épocas – desde o final da década de <br/>
1960, a década de 1970 e nos anos 1990 – contribuíram para o desafio de estruturar seu <br/>
pensamento. É perceptível a influência política que as idéias de Freire sofreram. Ele mesmo <br/>
admite ser o ato pedagógico essencialmente uma ação política. Todo esse jogo político e forte <br/>
influência de suas idéias marcaram o cenário e o momento de desenvolvimento do</p>
<p>4</p>
<p>pensamento pedagógico de Freire. No tocante ao diálogo é por tais razões que algumas <br/> temáticas, já relatadas anteriormente irão surgir no discurso freireano somente após algumas <br/>
críticas e revisão destas. <br/>
É interessante relatar que Paulo Freire consegue apresentar coerência de sua teoria <br/>
com a sua prática independente das fases de sua vida. Mesmo fora do Brasil atravessando <br/>
momentos importantes na política de outros países ele esteve por dentro dos princípios que <br/>
sempre defendeu. Na sua obra Pedagogia da Autonomia, Freire revela algumas das críticas <br/>
feitas à sua teoria. Importante dizer que ele para algumas delas firmou ainda mais o seu ideal <br/>
sem abrir mão dele.</p>
<p>MARTIN BUBER <br/> Martin Buber nasceu em Viena aos oito de fevereiro de 18782. Como uma das <br/>
primeiras recordações de sua vida, Buber, com apenas três anos de idade, vivenciou a <br/>
separação de seus pais. Após o divórcio partiu aos quatro anos para Lemberg, na Galícia, <br/>
região onde moravam seus avós paternos. Sua mãe por motivos desconhecidos, <br/>
verdadeiramente o abandonou. O fato do divórcio dos seus pais fora um acontecimento tão <br/>
marcante na vida do pequeno Buber que está indicado relatar como ele o vivenciou. A família <br/>
não lhe trazia explicações por aquela separação e seu desejo em rever sua mãe foi guardado <br/>
em seu íntimo. Buber, ainda muito pequeno, inquieto em saber o paradeiro de sua mãe, <br/>
estando ele na galeria que cercava todo o pátio da casa de seus avós, questionara à menina que <br/>
lhe prestava cuidados sobre a volta de sua mãe. A menina, respondendo sinceramente, afirma <br/>
que sua mãe não voltaria. Ocorreu neste momento através de um processo intuitivo o real <br/>
entendimento de que sua mãe não voltaria mais. <br/>
Aos 14 anos Buber voltou a morar com seu pai, porém o contato com sua mãe, <br/>
desfeito desde muito criança, só fora refeito após 20 anos, quando já adulto, casado e com <br/>
filhos. Este reencontro foi igualmente marcante na vida de Buber, embora, de tão frustrante, <br/>
tenha se mostrado um real desencontro. Este triste fato, que ao mesmo tempo serviu de ponto <br/>
de partida para sua busca de vivenciar momentos autênticos de encontro entre seres humanos, <br/>
foi relatado por ele no seu livro autobiográfico da seguinte forma: <br/>
Mais tarde construí para mim mesmo o sentido da palavra <br/>
‘desencontro’, através da qual estava descrito, aproximadamente, o <br/>
fracasso de um verdadeiro encontro entre seres humanos. Quando,</p>
<p>2 Os dados sobre vida e obra do autor foram coletados da introdução do livro: Eu e Tu (1979), escrito pelo <br/> tradutor da obra, Newton Aquiles Von Zuben e ainda na obra Encontro: Fragmentos Autobiográficos (1991).</p>
<p>5</p>
<p>após outros vinte anos, revi minha mãe, que viera de longe visitar a <br/> mim, minha mulher e meus filhos, eu não conseguia olhar nos seus <br/>
olhos, ainda espantosamente bonitos, sem ouvir de algum lugar a <br/>
palavra ‘desencontro’ como se fosse dita a mim. Suponho que tudo o <br/>
que experimentei, no decorrer da minha vida, sobre o autêntico <br/>
encontro, tenha a sua primeira origem naquela hora na galeria. <br/>
(BUBER, 1991, p. 8). <br/>
Buber, ao lado de seu avô Salomão Buber, renomado estudioso da tradição e literatura <br/>
judaicas de Viena, e junto desta família, teve a oportunidade de experimentar a união da <br/>
tradição judaica autêntica e o espírito liberal da Haskalah3. Salomão Buber foi um dos líderes <br/>
do Haskalah na Galícia, no início do século XX. Foi neste ambiente que Buber tomou respeito <br/>
pelo estudo, aprendeu o hebraico, teve a oportunidade de ler os textos bíblicos e teve contato <br/>
com a tradição judaica. <br/>
A relação, o diálogo na atitude existencial do face-a-face, é o fato primordial do <br/>
pensamento de Martin Buber. Sua filosofia do diálogo/ da relação é o que norteia sua <br/>
reflexão. Em sua obra Eu e Tu, Buber expressa toda sua compreensão sobre o diálogo. A <br/>
relação dialógica perpassa os aspectos filosófico, religioso, político ou existencial, servindo <br/>
como foco central de sua mensagem. O que pode ser mais admirável nas suas obras é a <br/>
completa conexão com sua vida. Buber vivenciava este profundo e verdadeiro diálogo entre <br/>
sua vida e reflexão. Dessa forma compreendemos que a relação dialógica mencionada por <br/>
Buber antes fora vivenciada para depois se constituir em sistema conceitual, o que demonstra <br/>
a ligação das suas experiências pessoais na construção do seu pensamento. <br/>
Buber é conhecido tanto pelo seu estudo filosófico do diálogo quanto pelo seu estudo <br/>
sobre o Hassidismo, sobretudo pela sua obra “Die Erzaehlungen der Chassidim” em tradução <br/>
portuguesa, “Histórias do Rabi”. O profundo contato que Buber manteve neste movimento da <br/>
mística hassídica, trouxe perceptíveis influências, porém para ele este contato é mais do que <br/>
influências ou molde do seu pensamento. Relacionando-se pedagogicamente em situações <br/>
humanamente significativas, a relação pedagógica existente entre o Tzadik e seus hassidim4,</p>
<p>3 Geralmente, "haskalah" indica o movimento entre os judeus que teve início no fim do século XVIII na Europa <br/> Oriental voltado ao abandono da exclusividade no seguimento das normas e tradições judaicas. Admitiu-se a <br/>
aquisição de conhecimento, maneiras e aspirações de vida moderna das nações que gentilmente permitiram a <br/>
residência dos judeus. Em um senso mais restrito, o termo denota o estudo do hebraico bíblico e partes da <br/>
literatura hebraica poética, científica e critica. O termo é algumas vezes usado para descrever o estudo critico <br/>
moderno de livros religiosos judeus, tais como o Talmude e o Mishna, quando usado para diferenciar esses <br/>
estudos modernos de antigos métodos usados pelos judeus ortodoxos. Seus aderentes são comumente chamados <br/>
de Maskilim.</p>
<p>4 Os tzadikim são os líderes espirituais do hassidismo, e os hassidim os fiéis desse movimento encontrado dentro <br/> do judaísmo.</p>
<p>6<br/> questiona com isso boa parte das teorias modernas da educação nas suas tendências <br/>
generalizadoras e técnicas. <br/>
Em sua principal obra Eu e Tu (1979), Martin Buber faz um estudo sobre as relações <br/>
que o homem vivencia em sua existência. As diferentes relações que o autor analisou indicam <br/>
que o mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade das atitudes que este pode <br/>
apresentar em relação àquele. A atitude na relação é um ato essencial que varia de acordo com <br/>
a palavra-princípio proferida. Esta palavra-princípio proferida define sua existência, define o <br/>
que se é pela atitude. Cada atitude é atualizada por um das palavras-princípio: Eu-Tu - que <br/>
representa as relações, que o autor de fato considera humanas - ou Eu-Isso - relações em que o <br/>
outro está sendo considerado objeto. <br/>
O Eu-Tu e Eu-Isso são as duas maneiras de ser, de existência pessoal em que o homem <br/>
está inserido. Mesmo sendo, na percepção do autor, a relação Eu-Tu a original, não é essa que <br/>
nos tempos atuais prevalece. Ao contrário, a grande preocupação de Buber é exatamente o <br/>
fato de que as relações Eu-Isso sempre absorvem mais o ser humano a ponto de que as de Eu-<br/>
Tu parecem esquecidas pela maioria das pessoas. Podemos considerar o objetivo central da <br/>
obra de Buber fazer os homens relembrarem da relação Eu-Tu e suas repercussões positivas <br/>
no mundo Eu-Isso. O Eu de uma palavra-princípio é diferente do Eu de outra. Isto não <br/>
significa que existem dois “eus”, mas a existência de duas possibilidades do Eu se manifestar. <br/>
São dois princípios da existência humana: dialógico e monológico, respectivamente. <br/>
O Eu de Eu-Isso usa a palavra para conhecer o mundo, ordená-lo, transformá-lo, <br/>
defini-lo. Este mundo é objeto de uso e de experiência. Nessa relação vejo a outra pessoa <br/>
como uma coisa, com definições, delimitações. Porém se vejo o outro sem percebe-lo como <br/>
objeto, estabelece-se uma relação Eu-Tu. À primeira vista parece um ato impossível de <br/>
realizar, ver o outro, mas não como objeto. Estamos acostumados a fazer de tudo um objeto <br/>
de percepção, de pensamentos ou de imaginação. Na relação Eu-Tu não vou deixar de ter <br/>
essas percepções. Mas nada delas continua com uma importância específica, discriminatória. <br/>
O que importa é ver além das características particulares o lado da pessoa, o cerne vivo da sua <br/>
existência. Trata-se, portanto, de uma outra maneira de perceber a pessoa. É a percepção dela <br/>
na sua totalidade. Para que a relação Eu-Tu aconteça e seja um momento dialógico é <br/>
necessário o elemento da totalidade. Esta totalidade do Eu que profere a palavra-princípio <br/>
deve ser compreendida como um ato totalizador, uma visão de todo o ser. <br/>
Buber acredita que o mundo do Isso é indispensável para a existência humana, porque <br/>
é nele onde podemos entender o outro. Não se deve entender a atitude Eu-Isso como negativa <br/>
ou inferior, ao contrário, ela é uma atitude do homem frente ao mundo e é através dela que</p>
<p>7<br/> podem acontecer as atividades sociais, culturais e científicas da humanidade. A relação Eu-<br/>
Isso se torna negativa quando o homem não consegue disponibilizar-se para o outro tipo de <br/>
relação para o Eu-Tu. <br/>
As relações Eu-Tu foram por Buber divididas em três esferas. A primeira esfera é a <br/>
relação Eu-Tu com a natureza. Não se tem uma linguagem adequada no âmbito dessa relação, <br/>
porque, de certa forma, a natureza não emite a palavra. Quando aceitamos a natureza como <br/>
Tu, não o fazemos através de palavras, mas a proferimos através de todo nosso ser. Na relação <br/>
Eu-Tu com a natureza, não é a natureza que se modifica diante do Eu. Para que a natureza <br/>
torne-se um Tu para o homem, a forma em que ele se relaciona com ela tem que modificar. <br/>
Nessa relação a natureza não é mais objeto de prazer, de utilidade, de exploração. <br/>
Encontramos-nos unidos com ela na sua totalidade. Buber ainda na adolescência vivenciou o <br/>
dialógico concretamente, esta relação Eu-Tu com a natureza, quando na casa de seu avô, <br/>
alisava seu cavalo favorito e num dado momento algo lhe ocorreu. Ele entrou numa relação <br/>
dialógica com seu cavalo, neste momento o cavalo se tornou presente para ele em sua <br/>
totalidade, assim como ele para com seu cavalo. Ambos se entenderam em seu íntimo e não <br/>
havia nenhum interesse, enxergando um ao outro como um ser próprio, único e inteiro. Assim <br/>
é a relação dialógica, ela por “graça” acontece. <br/>
A segunda esfera está na vida com os homens. Pode-se receber e endereçar a palavra-<br/>
princípio Eu-Tu. Este Tu está relacionado ao diálogo, à participação efetiva e recíproca de <br/>
ambas as partes. A terceira esfera é a vida com os seres espirituais. É a relação com Deus. <br/>
Para Buber a relação com Deus não leva o homem para fora da sua vida concreta. Na verdade <br/>
ela acontece por dentro de qualquer relação Eu-Tu com a natureza e com os outros homens. <br/>
Não existe para ele um acesso direto a Deus. Deus se manifesta através do Eu das duas <br/>
primeiras relações. Desta forma, cada relação verdadeira toca no Tu-Eterno, cai fora de tempo <br/>
e espaço como limites do nosso pensamento. <br/>
Esse fato tem conseqüências em relação a nossa intenção de vivenciar o Eu-Tu. Não é <br/>
um acontecimento que está no nosso domínio, não podemos fazer acontecer essa relação. <br/>
Buber afirma que “o Tu encontra-se comigo por graça” (1979, p.12); não é através de uma <br/>
procura que é encontrado. Longe de poder gerar essa relação temos que aguardar que ela <br/>
aconteça. Existe somente uma forma de favorecer esse acontecimento. Podemos desenvolver <br/>
uma postura de abertura diante do encontro de Eu e Tu. Mais adiante indicamos algumas <br/>
atitudes que de fato podem ser consideradas apropriadas a uma abertura que favorece a <br/>
relação Eu-Tu. Nem por isso podemos esperar permanecer nesta relação. Ela sempre será <br/>
passageira, momentânea. Mesmo assim, esses momentos não ficam sem repercussão nos</p>
<p>8<br/> estados Eu-Isso que fatalmente seguem a relação Eu-tu. Ao contrário, a única forma de <br/>
humanizar sempre mais a vida no Eu-Isso é iluminá-la a partir dos momentos Eu-Tu. Meta da <br/>
recordação da relação original do Eu-Tu, portanto, é uma modificação das relações Eu-Isso, a <br/>
modificação da vida cotidiana a partir das vivências autênticas entre o Eu e o Tu. <br/>
Buber, em um de seus estudos na obra Do Diálogo e do Dialógico, distinguiu o <br/>
fenômeno social e o inter-humano, como ele às vezes chama a relação Eu-Tu. O fenômeno <br/>
social é “a coexistência de uma multiplicidade de homens, o vínculo que os une um-ao-outro, <br/>
tem como conseqüência experiência e reações em comum” (1982, p. 136). Para Buber o inter-<br/>
humano é “uma categoria particular da nossa existência que está diante de nós” (1982, p. <br/>
136), porém para que o homem possa desfrutar dos momentos de inter-humano, deve primeiro <br/>
compreende-lo tornando-se consciente desta particularidade. <br/>
Buber explica como se estabelecem as relações dialógicas inter-humanas que <br/>
extrapolam o sentido social das relações mais comuns. Existem coisas que acontecem entre <br/>
duas pessoas, por exemplo, que não possuem características sociais. Quando duas pessoas se <br/>
entreolham e se desprende do mundo a sua volta, e que naquele momento existe somente o <br/>
outro para si. Este vínculo não se constrói por uma questão social de interesse comum, eles <br/>
podem não possuir uma ligação ou amizade entre si, mas algo lhes toca sem nenhuma <br/>
pretensão ou motivações interesseiras, e havendo reciprocidade e uma profunda comunicação, <br/>
sem que um tivesse o outro como objeto. Isto exemplifica o acontecimento de uma relação de <br/>
inter-humano, ou seja, uma relação dialógica entre EU e TU, como foi nomeada por Buber. <br/>
Para que haja uma conversação genuína é necessário ver o outro como ele é, tendo <br/>
conhecimento do fato que o outro é uma pessoa de maneira única e própria, ou seja, deve <br/>
acontecer aceitação do outro como se é, sem interesse quanto à outra pessoa. Sendo assim, o <br/>
homem pode dirigir a palavra com sinceridade e, através de uma percepção do outro enquanto <br/>
totalidade, uma relação inter-humana se estabelece.</p>
<p>PRIMEIRAS INDICAÇÕES PARA UMA REFLEXÃO CONCLUSIVA <br/> O diálogo enquanto objeto de nosso estudo é categoria central nas teorias de Paulo <br/>
Freire e de Martin Buber. Muito embora as duas teorias defendam e desenvolvam o aspecto <br/>
dialógico nas relações inter-humanas, o fazem de maneiras distintas. Pudemos perceber que, <br/>
de fato, essas diferenças, ora aparentes, estão distanciadas entre si pela influência e <br/>
propriedade de cada autor. Cada um deles apresenta uma maneira particular em estruturar o <br/>
pensamento dialógico, porém, tanto para Freire como para Buber, o diálogo é um <br/>
aproximador entre os indivíduos e a sua atuação e vivência corresponde a repercussões</p>
<p>9<br/> positivas. Para Freire estas repercussões estão voltadas mais para o âmbito educacional e <br/>
político-social, enquanto Buber, as repercussões voltam-se para a vida como um todo <br/>
inclusive no âmbito espiritual. Buber compreende e percebe o ser humano possuidor de <br/>
diversas dimensões: emocional, educacional, psicológica, ética e etc. Porém, todos eles <br/>
vivendo numa integralidade. É desta maneira integral que tenta incluir a dimensão espiritual <br/>
no processo pedagógico. <br/>
Paulo Freire considera Martin Buber um teórico aproximado à sua conceituação e <br/>
discussão dialógica, porém podemos adiantar que Martin Buber de forma mais geral apresenta <br/>
o diálogo numa perspectiva mais espiritual, dimensão esta não estudada por Freire. Para nós <br/>
as maiores divergências entre os autores estão presentes na precisão de afinidades entre os <br/>
pólos dialógicos nas relações descrita por Freire. Já em Buber a relação acontece <br/>
independente do posicionamento político, ético, ideológico dos pólos envolvidos. Outro <br/>
aspecto nesta comparação está na maneira como esta relação acontece. Para Freire existe uma <br/>
maneira do diálogo se estabelecer através de mecanismos práticos. Por exemplo: deve existir <br/>
uma intencionalidade dos indivíduos envolvidos na relação. Com vimos em Buber o aspecto <br/>
da “graça” é o que orienta e permite à relação estabelecer-se. A relação educacional deve <br/>
basear-se na postura dialógica enquanto princípio, assim diz Freire. No pensamento de Buber <br/>
as relações pedagógicas e dialógicas são momentos distintos e com repercussões distintas.</p>
<p>BIBLIOGRAFIA</p>
<p>BUBER, Martin. Encontro: Fragmentos Autobiográficos. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.</p>
<p>______. Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982.</p>
<p>______. Eu e Tu. 2. ed. São Paulo: Cortez & Moraes. 1979. <br/> FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.</p>
<p>______. Pedagogia como Prática da Liberdade. 19. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.</p>
<p>______. Pedagogia da Autonomia. 31. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.</p>
<p>GADOTTI, Moacir. Paulo Freire: uma biobibliografia. São Paulo: Cortez. Instituto Paulo <br/> Freire: Brasília, DF: UNESCO, 1996.</p>
<p>10</p>
<p>MAYO, Peter. Gramsci, Freire e a Educação de Adultos: possibilidades para uma ação <br/> transformadora. Trad. Carlos Albert Silveira Netto Soares - Porto Alegre: Artmed, 2004.</p>
<p>MORO, Wenceslao. Paulo Freire y la Educación Popular.In: MAYO, Peter. Gramsci, Freire <br/> e a Educação de Adultos: possibilidades para uma ação transformadora. Trad. Carlos Albert <br/>
Silveira Netto Soares - Porto Alegre: Artmed, 2004.</p>
<p>RÖHR, Ferdinand. O Caminho do Homem Segundo a Doutrina Hassídica, por Martin Buber <br/> - Uma Contribuição à Educação Espiritual. In: 24ª Reunião Anual da Associação Nacional <br/>
de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Caxambu, Anais, 2001.</p>
<p>______ . A Multidimensionalidade na Formação do Educador. In: Revista de Educação AEC. <br/> Paixão e Educação, nº110, p.100-108, 1999.</p>
<p>______ . Ética Pedagógica na Educação Espiritual - Um Estudo Comparativo. In: 24ª <br/> Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. <br/>
Caxambu. Anais, 2001.</p>
<p>______ . A Ética Pedagógica no Pensamento de Martin Buber. In: XV Encontro de Pesquisa <br/> Educacional do Nordeste – XV EPENN. Universidade Federal do Maranhão. São Luis. 2001.</p>
<p>______ . Liberdade ou Destino: Reflexões sobre a Meta da Educação. In: revista de Educação <br/> e Cultura. II Encontro de filosofia da Educação. Salvador.Anais, 2003.</p>
<p>SCOCUGLIA, Afonso C. A progressão do pensamento político-pedagógico de Paulo Freire. <br/> In: Paulo Freire y la educación latinoamericaba en siglo XXI. 2ªed. João Pessoa: Universitária <br/>
– UFPB, 1991.</p>