JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Claridade e obscuridade: Heidegger,Levinas e o Deus invisível - Marcelo Fabri

Claridade e obscuridade: Heidegger,Levinas e o Deus invisível
Marcelo Fabri
Professor do Departamento de Filosofia da UFSM
E-mail: fabri@smail.ufsm.br

Resumo: O artigo examina o par claridade/obscuridade em Heidegger
e Levinas. No primeiro filósofo, é a interpretação de Hölderlin
que se encontra em questão. No segundo, é toda uma influência de
Shakespeare e do judaísmo que é preciso considerar. Sabe-se que o
pensamento de Levinas se desenvolve, sobretudo, como crítica ao
caráter desumano do Ser e do Sagrado. Esta atitude parece separá-lo
radicalmente do elogio da linguagem poética. O artigo ressalta, no
entanto, que apesar da notória distância entre os dois filósofos, uma
aproximação se torna possível. É que, guardadas as peculiaridades e
preferências temáticas, eles terminam se encontrando, no momento
em que procuram pensar o existente humano mediante uma fenomenologia
da invisibilidade do Deus.

Palavras-chave: claridade, obscuridade, sagrado, ser, fenomenologia

Abstract:
This text aims at examining the pair clarity/obscurity both
in Heidegger and Levinas. In the former, it is the interpretation on
Hölderlin that represents the main role. In the latter, it is the whole
influence of Shakespeare and Judaism that stands out. It is well
known that Levinas’ thought unfolds itself principally as a critique
against the inhuman character of Being and the Sacred as well. This
attitude seems to separate him radically from his praise on the poetical
language. Nevertheless, the article emphasizes that, as notorious the
distance between both philosophers may be, a comparison between
them is still possible. And this is so because, independently from
their own peculiarities and thematic preferences, both converge to
74 Natureza Humana 10(2): 73-88, jul.-dez. 2008
Marcelo Fabri
the point where they try to think the human existent through a
phenomenology of the invisible God.
Key-words: being, sacred, clarity, obscurity, phenomenology

A relação entre claridade e obscuridade é notável em vários
escritos de Heidegger e de Levinas. Explorar essa relação pode contribuir
não somente para a compreensão da diferença entre os dois filósofos, mas
também para uma reflexão sobre as dificuldades e desafios que o problema
do Sagrado traz para o mundo contemporâneo. Heidegger interpreta a
fuga dos deuses como obscurecimento do mundo, destruição da terra e
decadência espiritual (Heidegger, 1987, p. 65). Num de seus famosos
escritos sobre a poesia, ele afirma que os poetas dizem o sagrado, quando
os deuses se retiraram do mundo. Velar, eis a missão do poeta, na noite
do mundo (Heidegger, 1962, p. 222). A esse respeito, o encontro com a
poesia de Hölderlin foi um acontecimento singular na trajetória do filósofo.
Segundo Gadamer, Heidegger viu em Hölderlin um auxílio teológico para
seu pensamento, pois o poeta havia renovado a heresia de Joaquim da
Fiore: Deus ou o Divino envia aos homens um meio de reavivar o fogo que
se vai apagando. Diz Gadamer: “Heidegger buscou conceituar a própria
visão de um novo pensamento, de um ser habitável do homem, de um
novo ser uns com os outros, como uma “integridade sã” (Heiles), a partir
da poesia de Hölderlin” (2005, p. 112).

A metáfora do fogo aparece logo nas primeiras das famosas
Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung. No curso das estações, claridade e
obscuridade se mesclam, atravessando o florescimento e o perecimento das
coisas. O primeiro “mensageiro do ano” é a luz que clareia. A claridade
mantém a salvo a Natureza. Graças a ela, tudo se encontra em casa. Numa
palavra, a claridade mantém vivo o fogo da pátria (Heidegger, 1983, p.
39). Os mensageiros do claro são os que poetizam, mas aquilo que torna
possível a clareza é o Sagrado.
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No escopo de aproximar Heidegger e Levinas, partimos da pergunta:
Como o Sagrado pode tornar possível a clareza, uma vez que, já em
Heidegger, ele é identificado também ao Caos, entendido como ausência
de lei ou pura indistinção? Que tipo de relação há entre ordem e caos?
Ora, esta pergunta será fundamental também em Levinas. Na
perspectiva levinasiana, a noite manifesta a ambigüidade inerente ao existir.
Na experiência da noite, o existente humano se descobre entre caos e
luminosidade, isto é, na iminência da guerra e da instituição da ordem.
Ao que parece, trata-se, como em Heidegger, de uma interpretação filosófica
de figuras míticas. No caso de Levinas, a luz será descrita a partir
do nascimento de um eu, isto é, de um sujeito moral. Segundo François
Poirié, o nascimento do sujeito, em Levinas, traduz uma espécie de brilho,
uma luz mais forte que a noite. Mas este brilho é um desvelar-se não do
ser, mas do sujeito. Daí poder-se falar num aparecer do Ente, na exibição
de um ser individuado (Poirié, 1996, p. 15). A luz não vem do Sagrado,
mas do existente humano, isto é, daquele que é luz e sombra a uma só
vez (cf. Chalier, 1993, p. 78). Heidegger parte da noite do mundo para
pensar a clareira do Sagrado, mas o que se descobre, ao final das contas,
é a emergência da luz a partir do Caos. Levinas, por sua vez, parte de
uma descrição de uma experiência da noite enquanto tal, para pensar o
humano como responsabilidade pelo mal do mundo e, portanto, como
possibilidade de redenção. A luz não vem do Sagrado, mas do próprio
homem. Curiosamente, é a experiência do Caos (e, conseqüentemente, do
Sagrado), sempre iminente, que torna possível a instituição da ordem.
O claro/obscuro do Sagrado
Para se referir ao Sagrado como clareira (Lichtung), Heidegger se
beneficia da poesia de Hölderlin. Por que este poeta? Porque, na perspectiva
heideggeriana, ele faz mais do que realizar a essência da poesia (como
o fazem, aliás, Homero, Dante, Shakespeare e Goethe). Na medida em que
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Hölderlin se propõe poetizar a essência da poesia, ele é o poeta do poeta
(Heidegger, 1983, p. 56). A poesia é jogo, um palavrear inocente, uma
espécie de sonho. Sua atividade é a mais inocente de todas. No entanto,
a linguagem é o mais perigoso dos bens (Heidegger, 1983, p. 57). Na
célebre Carta sobre o Humanismo, Heidegger ensina que, no mundo contemporâneo,
a linguagem tornou-se um instrumento de dominação sobre
o ente (Heidegger, 1984, p. 152). A linguagem é como que o lugar aberto
da ameaça ao Ser. Se a linguagem é capaz de desvelar o Ser, também é
verdade que ela pode encobri-lo (Heidegger, 1984, p. 156).
Em Hölderlin, a poesia é a autêntica fundação do ser, nomeando
não só as coisas, mas também os deuses. Pode-se dizer que é a poesia que
possibilita a própria linguagem, ao passo que o poeta é aquele que capta
o sinal dos deuses, dando-os em seguida aos homens. O poeta se mantém,
assim, como um mediador: ele se encontra entre homens e deuses, entre
seu povo e os imortais (Heidegger, 1983, p. 66). O poeta determina um
novo tempo, uma nova sensibilidade. Em vez de se pensar o Ser a partir
de Deus, é o contrário que se faz necessário. Entre os deuses do passado e
a ausência do Deus, abre-se um futuro a partir de uma nova experiência
do Sagrado. Eis por que
Heidegger não se torna apóstolo de um neopaganismo, como se o homem
só encontrasse salvação sacralizando uma vez mais o mundo. Bem pelo
contrário, nos convida a nos libertarmos destas falsas imagens do sagrado,
produções idólatras da nossa subjetividade. Esta dessacralização duma
certa forma do sagrado deve preparar-nos para uma experiência autêntica
do Sagrado. (Resweber, 1979, p. 140)
Na interpretação heideggeriana da poesia de Hölderlin, a simbólica
da luz é um tema recorrente. Heidegger inicia sua leitura a partir
do poema Retorno à Pátria/Aos Parentes (Heimkunft/An die Verwandten), em
que o poeta descreve seu próprio regresso à terra natal, depois de uma
longa viagem. Pessoas e coisas têm um rosto, transmitem confiança, mas
aquele que chega não deixa de ser alguém que busca, isto é, que ainda não
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alcançou o almejado. É o buscado que vem ao encontro do ser que regressa.
“O amistosamente aberto, o iluminado, o refulgente, o brilhante, o lúcido
da pátria sai ao encontro numa única aparição amistosa, na chegada às
portas do país” (Heidegger, 1983, p. 37). O que vem ao encontro do poeta
é prazeroso, alegre, algo que ilumina. Mas os mensageiros do claro, que
vêm ao encontro, só podem aparecer porque poetizam. A expressão die
Heitere significa, ao mesmo tempo, claritas, serenitas e hilaritas: é o Sagrado
enquanto aquilo que há de mais prazeroso, alegre e iluminador para os
homens (Heidegger, 1983, p. 41). Nesta perspectiva, os deuses são, exatamente,
aqueles que trazem alegria, enviando serenidade e clareza. A
lareira da casa, que é terra materna, é a origem de toda claridade. O que
há de mais prazeroso é encontrar-se nessa proximidade da origem. Mas
só o poeta pode fazê-lo. Por quê? “O poetizar não é o que dá ao poeta um
prazer, pois o poetizar é o prazer, a claridade; o primeiro entrar em casa
consiste no poetizar” (Heidegger, 1983, p. 46).
Segundo Heidegger, vivemos numa idade do mundo caracterizada
pela ausência do Deus (Heidegger, 1983, p. 48), que por sua vez
compromete a presença dos nomes sagrados. Mas a falta do Deus não
é carência, pura e simplesmente, pois o poeta, de algum modo, pode
manter-se próximo da falta do Deus, ensinando aos demais o retorno à
pátria como futuro possível, isto é, como um habitar nas proximidades da
origem. É assim que os poetas ajudam os homens a atingirem a claridade,
a alegria e o prazer.
Na interpretação do poema Como quando em dia de festa (Wie wenn
am Feiertag), as descrições são todas perpassadas pela idéia de luz, claridade,
brilho, alvorecer e, sobretudo, florescimento. O dia festivo é anunciado pela
manhã que surge, após uma noite de tempestade. O lavrador que caminha
contempla o campo. Ele sabe que a terra nunca deixa de sofrer ameaça, mas
por todos os lugares se pressente uma paz alegre, uma confiança no futuro.
A figura central do poema é a Natureza, entendida como Onipresença
poderosa e divinamente bela (Heidegger, 1983, p. 77). A Natureza abarca
em si toda a obra humana, o destino dos povos, os deuses, as plantas e os
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animais, as nuvens e as tempestades... Os poetas vindouros são aqueles
que deverão se adequar ao ser da Natureza. Heidegger retoma o termo
grego physis para falar desta onipresença, deste poder que está presente em
tudo e que se define como sendo o próprio surgir da iluminação e da luz,
ou ainda, o lugar e a morada da luz (Heidegger, 1983, p. 78). Enquanto
o brilhar mesmo da luz, a physis torna possível todo o aparecer. Eis por
que ela remete ao fogo, à claridade, ao ardor.
Mas a Natureza, que é lei e ordem, que é mais antiga que tudo
e está acima dos próprios deuses, foi “engendrada no sagrado Caos” (aus
heiligem Chaos gezeugt). Ora, o Caos não tem lei, é confuso e indiferenciado.
No início de tudo, a confusão, o abismo, o aberto que tudo devora
(Heidegger, 1983, p. 86). Na Teogonia de Hesíodo, a primeira potência
divina a nascer foi Caos. É dele que provêm as outras divindades: Terra,
Tártaro e Eros (cf. Hesíodo, 1986, p. 132). “Tal como Eros é a força
que preside à união amorosa, Kháos é a força que preside à separação,
ao fender-se, dividindo-se em dois” (Torrano, 1986, p. 49). Como se vê,
os primeiros seres não nascem da união sexual, mas por cissiparidade ou
bipartição. Os únicos que não obedecem à regra, na linhagem de Caos,
são Éter e Dia, que são potências positivas e luminosas. Tudo o mais que
provém de Caos pertence à esfera do não-ser, isto é, são potências tenebrosas
ou negadoras da vida e da ordem, tais como Érebo (trevas infernais)
e Noite (cf. Torrano, 1986, p. 50). Mas isso explica por que, na Teogonia,
Dia e Noite estão intimamente relacionados. O Dia representa o Ser, ao
passo que a Noite expressa o Não-Ser. Por conseguinte, “o pensamento
que pensa o que é o Ser não pode não pensar o Não-Ser” (Torrano, 1986,
p. 51). Enquanto expressão ontológica do Não-Ser, Caos é também um
princípio cosmogônico, ontogenético (cf. Torrano, 1986, p. 52). Não é
sem motivo, portanto, que a Guerra, filha de Caos, surge para Heráclito
como pai e rei de todas as coisas (cf. Frag. 53 D.K.).
Voltemos a Heidegger e à sua leitura de Hölderlin. O Caos aparece
no poema como o próprio Sagrado. Nada ultrapassa essa abertura,
tudo retorna a ela. Mas é assim que a Natureza não morre nunca. Mesmo
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sendo mais antiga que tudo, ela não deixa de ser aquilo que é mais atual
e recente. O Sagrado é, portanto, o incólume, o intocável, o distante. Ele
desconcerta e espanta, mas também é suave e envolvente. Ele é como um
fogo que se apropria da alma, ou ainda, é uma luz ou claridade difundindose
nas almas dos poetas (Heidegger, 1983, p. 85). Quando isto ocorre,
os poetas não mais se pertencem; eles pertencem ao próprio Sagrado.
O tremor que o poeta experimenta rompe o silêncio, desperta o Canto
e a Palavra. “A palavra é o acontecer do Sagrado” (Heidegger, 1983, p.
95). O lado noturno do Sagrado (sua força destrutiva e caótica) é então
transformado, graças à mediação do poeta, em força benevolente, dando
início a uma nova história (Geschichte). Daí poder-se dizer que o poeta é
“porta-voz, mensageiro, receptor de sinais, mediador entre os deuses e os
homens, submetido ao horror da relação direta com o deus e pacificador
do terrível para os homens” (Zarader, 1990, p. 55).
A noite se infiltrando no dia
Para John Caputo, o grande escândalo do pensamento de Heidegger
é o esforço para transformar o Mal em Luz ou clareira. Tratarse-
ia de uma insensibilidade diante da dor e do sofrimento humanos. A
interpretação dos poetas manifesta uma tentativa de “limpar a poesia do
sangue e da dor”. Assim:
Há uma preocupação mais elevada, mais profunda ou mais essencial com a perda do
verdadeiro Wesen e do phainesthai luminoso do Ser. O pensamento procura elevar-se
a si próprio a um ponto de tal forma sublime que neutralize a distinção entre a vida
e a morte, que neutralize o próprio assassínio. (Caputo, 1990, p. 229)
Ora, a leitura de Caputo é, a nosso ver, muito próxima da que
realizou Levinas. A lógica do Ser em sentido verbal (Wesen) implica uma
retomada ou prolongamento da tradição filosófica ocidental. Assim
como a idéia de Platão, o Wesen do homem não é humano, e Heidegger
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repetiria a pureza fundamental do espírito platônico, que de resto atravessa
a história do Ocidente, seja no dualismo metafísico sensível/inteligível,
seja no dualismo empírico/transcendental de Kant. Assim fazendo, afirma
Caputo, Heidegger “construiu uma réplica da distinção entre Ser profundo
e instanciação empírica, entre pureza da essência e a ‘rudeza’ do empírico,
entre o interior não-contaminado e o exterior corrompido” (Caputo, 1990,
p. 230). Essa submissão à essência manifesta-se, também, na interpretação
do Sagrado. Afirma Heidegger:
O Sagrado, “mais antigo que os tempos” e “acima dos deuses”, funda com
sua vinda outro começo de outra história (Geschichte). O Sagrado decide
inicialmente de antemão sobre os homens e sobre os deuses. Decide se eles
são e quem eles são. Decide, ainda, como são e quando são. (Heidegger,
1983, p. 95)
Que diz Levinas sobre a fuga dos deuses? Segundo ele, vivemos
na época de um ateísmo anti-humanista, veiculado pelo próprio pensamento
contemporâneo.
Os deuses morreram ou se retiraram do mundo, o homem concreto, sendo ainda
racional, não contém o universo. Em todos esses livros que ultrapassam a metafísica
assistimos à exaltação de uma obediência e uma fidelidade que não são obediência
e fidelidade a alguém. (Lévinas, 2000, p. 30)
A ausência dos deuses é uma espécie de presença indeterminada,
um nada nadificante, um silêncio dotado de palavra (Lévinas, 2000, p. 30).
Dos incessantes e anônimos redemoinhos do Ser anônimo, emana uma
negra luz, pois o Wesen (Heidegger) é uma “fosforescência do Nada” ou
“de uma luminosidade na qual prosseguem o fluxo e o refluxo do Nada
e do ser”. Pois o ser “é a medida de todas as coisas e do homem” (Lévinas,
2000, p. 31). Sendo assim, a subjetividade humana só poderia adquirir um
sentido através dessa fosforescência, isto é, da verdade do ser. O homem
é o ente que atende ou não ao chamado do ser.
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De nossa parte, perguntamos: Pode-se condenar esta decisão
como a defesa pura e simples da realidade neutra, impessoal, desumana?
Para Gadamer, por exemplo, a riqueza da dimensão verbal do ser, sublinhada
e desenvolvida por Heidegger, traduz o mistério da linguagem
como abertura. Dizer que habitamos na linguagem significa, então, que
estamos mais próximos da linguagem quando pensamos no diálogo. Diz
Gadamer: “Um diálogo fecundo é um diálogo no qual dar e receber e
vice-versa conduzem, por fim, a alguma coisa que é uma morada comum,
com a qual se tem familiaridade e na qual é possível mover-se juntos”
(2005, p. 110).
Apesar da riqueza da linguagem, da abertura propiciada pela
dimensão verbal do ser, Levinas insiste na proposição de que o Ser é mal,
não pela finitude que o caracteriza, mas pela sua falta de limites (Lévinas,
1985, p. 29). Tudo se passa como se Levinas se voltasse para o lado obscuro
do Ser, a despeito de toda riqueza luminosa da linguagem. Em vez de uma
interpretação da poesia, Levinas realiza uma espécie de fenomenologia de
certas situações humanas, já vislumbradas pelo pensamento filosófico e pela
literatura. A figura de Heráclito, por exemplo, tal qual ela aparece num
dos célebres diálogos de Platão (Crátilo), é o emblema da dimensão fluida
do Ser (Il y a), uma espécie de rio, onde não se pode banhar nem mesmo
uma única vez (Lévinas, 1985, p. 28; cf. Platão, 1988, p. 127, 402a). Não
se trata do nada, mas da impossibilidade do nada. Uma experiência do
sem-saída, da clausura, do absurdo. A essa fatalidade se opõe o suicídio,
que nas peças de Shakespeare, por exemplo, aparece como sendo uma
espécie de triunfo sobre a fatalidade. Mas o absurdo, enquanto tal, não
pode ser dominado. Hamlet o compreendera muito bem. A experiência do
caos ou obscuridade é incontornável. Nenhum logos estaria em condições
de harmonizar, iluminar e “compreender” essa experiência. Para descobrirmos
a humanidade em nós, é preciso enfrentar essa noite, ou seja, é
necessário compreender que a obscuridade, vivida empiricamente, em toda
a história humana, não pode ser clareada por nenhuma luz, seja racional,
seja poética. Evidentemente, isto não significa propor a impossibilidade
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da Razão e do Sagrado, mas apontar para aquilo que ambos (a Razão e o
Sagrado) tendem, cada qual a seu modo, a anular ou harmonizar.
Na fenomenologia de Levinas, descreve-se a possibilidade de uma
noite em pleno dia, vale dizer, do abrupto surgimento de uma ambigüidade
ou impossibilidade de se distinguir entre a noite e o dia, entre o fora e o
dentro (Lévinas, 1977, p. 170). Esta indistinção é a ameaça que ronda
toda civilização ou cultura com seus valores, instituições e perspectivas
de futuro (Murakami, 2002, p. 286). Com o termo elemento, Levinas
designa o meio natural a partir do qual tudo o que pode ser possuído vem
até nós. Condição de possibilidade das coisas possuídas, o elemento é também
uma força incontrolável que ameaça romper toda ordem, trazendo a
insegurança do porvir como risco para o gozo de viver. O elemento é um
mundo fenomenologicamente selvagem (cf. Murakami, 2002, p. 69). Mais
do que uma ordem finalizada de relações, o elemento põe o homem em
contato direto com o mundo. Para se referir a essa ameaça, Levinas fala
de “deuses sem rosto”, “divindades impessoais” a quem não se pode falar
(Lévinas, 1974, p. 115). Do ponto de vista literário ou poético, pensamos
que Levinas se aproxima muito da “psicologia” de Shakespeare. No Rei
Lear, por exemplo,
O mal é essencialmente sentido como ruptura, separação, fragmentação de um
todo, desagregação de algo antes orgânico e inteiro, resultando em caos, tanto no
macrocosmo (tempestade) quanto no microcosmo – esferas político-social, familiar,
individual (desintegração física e mental, separação entre razão, de um lado,
e emoções, de outro). (Oliveira Gomes, 2000, p. 22)
O desentendimento entre Lear e as filhas assume proporções
cósmicas. Os elementos em fúria simbolizam, do ponto de vista cósmico,
o conflito inerente ao mundo humano. No terceiro ato da peça, há a cena
impressionante da tempestade. Ventos, trombas do céu, relâmpagos, trovões.
A palavra elemento, tão presente na escrita levinasiana (cf. Lévinas,
1974), ressoa em Shakespeare a partir das descrições da natureza em fúria,
incontrolável pelo homem. “A natureza não pode suportar esta aflição e
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este horror”, afirma Kent. Ao que Lear emenda, em seu desespero, em
sua miséria. “Que os deuses poderosos, que desencadeiam este cataclismo
sobre nossas cabeças, descubram, afinal, seus inimigos” (Shakespeare,
2001, Ato III, Cena II).
No extremo da necessidade, o homem termina por valorizar coisas
insignificantes e miseráveis. Uma cabana simples, para se abrigar em
meio à tempestade, pode ser oferecida a outro ser humano (Shakespeare,
2001, p. 73, Ato III, Cena II). “O homem, sem os artifícios da civilização,
é só um pobre animal como tu, nu e bifurcado” (Shakespeare, 2001, p.
80). Ora, aquilo que Shakespeare descreve poeticamente, Levinas explora
fenomenologicamente: o “homem como ente, como este homem aqui,
tomado pela fome, pela sede, pelo frio” (Lévinas, 2000, p. 44). A crítica
a Heidegger se torna, assim, muito mais clara: “O mundo heideggeriano,
afirma Levinas, é um mundo de senhores que transcenderam a condição
de humanos indigentes e miseráveis, ou um mundo de servos que não
têm olhos senão para esses senhores” (Lévinas, 2000, p. 44). Como se vê,
o problema de Levinas é realizar uma fenomenologia do ente humano em
sua vulnerabilidade, a partir daquilo que fica no outro extremo da luz do
Sagrado, vale dizer, a partir tanto do gozo da vida quanto do sofrimento
da pele exposta, ambos supostamente negligenciados pelo pensamento
heideggeriano.
Que tipo de fenomenologia é essa? Ao descrever a “consciência
ética” como questionamento de si a partir do outro, Levinas pensa o
humano a partir de situações cotidianas: fome, sede, frio, o comer e o beber,
o trabalho, a casa, a vida interior, etc. Ora, uma filosofia do Sagrado só
pode existir como obscurecimento da verdade do cotidiano. Mas, perguntamos:
esse obscurecimento, enquanto pensamento do extraordinário, não
supõe uma apreciação da vida a partir dos encontros humanos celebrados
na festa, na convivência, na memória coletiva, na preservação da natureza,
no cultivo dos bens culturais, etc.? O que é que fica em aberto com a
depreciação levinasiana do Sagrado? Por que Levinas deixa de considerar
este lado “inocente” da atividade poética, tão importante para a vida
humana como um todo?
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Para Levinas, o existente pode experimentar a violência do
elemento como assustadora, insuportável. Assim, pode-se mostrar que a
noite do mundo não é somente a conseqüência de um destino histórico
caracterizado pela fuga dos deuses, mas algo intrínseco ao existir no
mundo enquanto tal. Trata-se da possibilidade de “noite em pleno dia”.
Por isso, “as relações inter-humanas exigem a claridade do dia; a noite é o
perigo mesmo de uma justiça suspensa entre os homens” (Lévinas, 1977,
p. 168). É assim que, em plena tempestade de sua alma, no extremo da
dor e do sofrimento, Lear, adentrando pelas portas da loucura, descobre
o significado ético da humanidade e da justiça, evidenciando poeticamente
(e tragicamente) um conceito central na obra de Levinas, a saber,
a substituição:
Pobres desgraçados nus, onde quer que se encontrem sofrendo o assalto
desta tempestade impiedosa, com as cabeças descobertas e os corpos esfaimados,
cobertos de andrajos feitos de buracos, como se defendem vocês de
uma intempérie assim? Oh! Eu me preocupei bem pouco com vocês! Pompa
do mundo, este é o teu remédio; expõe-te a ti mesmo no lugar dos desgraçados, e
logo aprenderás a lhes dar o teu supérfluo, mostrando um céu mais justo.
(Shakespeare, 2001, p. 77, Ato III, Cena II, grifo nosso)
A invisibilidade do Deus
Voltemos a Heidegger. De um lado, um ethos da habitação, o
cuidado com a natureza, a atenção àquilo que cresce e floresce. De outro
lado, o cuidado com aquilo que devemos construir e edificar. Mas o construir,
ele mesmo, pressupõe o habitar. Não um habitar qualquer, mas o
habitar poético sobre a terra, sobre “esta” terra. (Heidegger, 1958, p.
230). A poesia conduz o homem para a terra e, conseqüentemente, para
a habitação. Ao habitar, pode o homem reunir o diverso na unidade do
mesmo, lutando contra a dispersão, o descontrole, o caos. Ao trabalhar,
o homem reúne seus méritos, podendo, finalmente, olhar para o alto,
procurando o divino. A habitação realiza o entre céu e terra. Ela mede a
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distância entre as duas ordens. Somos, enquanto humanos, orientados
para algo de celeste (Himmlischen). Nós nos medimos a partir dessa relação
(Heidegger, 1958, p. 234). O olhar para o alto determina tudo o que o
homem constrói sobre a terra. Ser poeta equivale, então, ao mensurar.
Ao habitar, medimos nossa própria mortalidade, vale dizer, medimos a
condição humana. Pode-se dizer que o homem é humano, porque capaz
de medir-se em relação à divindade.
Como pode a divindade ser a medida para o homem se, como
afirma Hölderlin, ela é desconhecida? Ora esse Deus não conhecido deve
aparecer como aquele que permanece desconhecido (Heidegger, 1958, p. 234).
Tem-se, assim, acesso fenomênico ao que transcende todo aparecer. Não
é Deus que é misterioso, mas a própria manifestação. Por conseguinte:
A medida consiste no modo como o Deus que permanece desconhecido é,
enquanto tal, manifestado através do céu. Deus aparece por intermédio
do céu: e este desvelamento faz ver aquilo que se esconde – sem tentar
arrancá-lo de sua ocultação, mas apenas procurando velar sobre ele, em sua
ocultação mesma. Assim, pela manifestação do céu, o Deus desconhecido
aparece como o Desconhecido. Esta aparição é a medida com a qual o
homem se mensura. (Heidegger, 1958, p. 237).
Mas o homem tem acesso àquilo que, para Deus, permanece
inacessível. O homem pode ver o céu. Pode, igualmente, admirar-se diante
de tudo o que se encontra sobre a terra: o brilho e o florescimento das
coisas, os aromas do mundo, os sons mais diversos. A palavra do poeta
pode celebrar, assim, a claridade dos aspectos do céu. Aquilo a que Deus
não tem acesso brilha e ressoa na palavra poética. Do mesmo modo, é o
verbo poético que faz aparecer aquilo que é inacessível e incognoscível
aos mortais. Celebrando o conhecido e o familiar, o poeta põe também
a relação ao invisível (Unsichtbare), ao não-conhecido. Pode-se, portanto,
realizar, graças ao dizer poético, uma imagem do invisível. Graças à imaginação
do poeta, o estrangeiro pode aceder ao familiar sem perder a sua
condição de alteridade, sem deixar de ser o não-familiar. “O dizer poético
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das imagens organiza e reúne, num único verbo, a clareza e os ecos dos
fenômenos celestes, bem como a obscuridade e o silêncio do estrangeiro”
(Heidegger 1958, p. 241). A esse respeito, um comentário de Jean Greisch
sobre a casa (foyer) é muito bem vindo:
É esta dialética do próprio e do estrangeiro, afirma Greisch, que é preciso ter em
mente se queremos evitar o mal-entendido segundo o qual a determinação hestiológica
da ontologia transforma o ser em uma morada ou abrigo suficientemente
seguro para não mais deixar subsistir nenhum lugar para a presença do estrangeiro
[...]. O segredo do ser, que faz dele uma “casa” (foyer), só pode se manifestar a um
homem que aceita o caráter não assegurador, extremamente inquietante, de seu
destino. (1993, p. 40)
Levinas, assim como Heidegger, utiliza a metáfora da invisibilidade
para falar do Deus. A imagem do Deus invisível implica uma
experiência com o estrangeiro. Ao afirmar que Deus esconde sua face dos
homens, Levinas explica que o existente humano pode experimentar a
ausência de toda e qualquer proteção ou recurso exterior. Leitor infatigável
da Torah e do Talmude, Levinas fala do sofrimento do justo como um
sofrimento não expiável misticamente. Assim:
A posição das vítimas num mundo em desordem, isto é, num mundo em
que o bem não chega a triunfar, é sofrimento. Ele revela um Deus que,
ao renunciar a toda manifestação benevolente, deixa-a confiada à plena
maturidade do homem, integralmente responsável. (Lévinas, 1995, p. 191)
Deus como que abandona o homem justo. Este permanece entregue
a um mundo em desordem e, por conseguinte, à experiência de uma
distância, de uma invisibilidade. Mas distância e invisibilidade também
trazem proximidade. Deus como que surge a partir do interior, na luta
contra os crimes e sofrimentos da terra. “A confiança em um Deus que
nenhuma autoridade terrestre manifesta só pode repousar na evidência
interior e no valor de um ensinamento” (Lévinas, 1995, p. 192). Essa
intimidade com Deus se conquista nos momentos de provação extrema.
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Na sua dolorosa distância, Deus se aproxima não sob a forma de comunhão
sentimental ou experiência amorosa, e sim como imperativo ético.
“A vontade de Deus é altura em sentido eminente na medida em que
se realiza no tribunal humano. Sua manifestação profética, em que ela
desce para o homem, e se exprime através dele, é provavelmente não um
movimento qualquer, mas a suprema elevação” (Lévinas, 1996, p. 29).
Deus se torna, então, vivo entre os homens. Deus exigente, cuja presença
não se dá de maneira sensível, mas sim como mandamento ético, como
responsabilidade pelo outro ser humano. Tal é a expressão da confiança
num Deus ausente. O divino entra no mundo através do profetismo
humano (Lévinas, 1996, p. 38).
A manifestação do Deus ausente é, para Levinas, a única maneira
de se lutar contra o não-sentido, a desintegração do cosmos, o domínio do
ápeiron. A relação a Deus institui o sujeito ético, em permanente vigilância
contra o mal e a injustiça. Mas seria a palavra poética, iluminadora da
obscuridade do Deus, necessariamente expressão de servidão voluntária,
de confusão entre ordem e o caos, entre a existência finita e o ilimitado? “A
luta do infinito contra o Il y a (ou ápeíron), afirma Murakami, é paralela à
luta de Deus contra os deuses pagãos, pois, na visão monoteísta, os deuses
pagãos são considerados como metamorfoses da natureza terrificante”
(Murakami, 2002, pp. 246-247).
Em Heidegger, a aproximação do estrangeiro em relação ao
familiar faz ver que a obscuridade se encontra, ao final das contas, confiada
à luz. O sombrio, o obscuro, só é possível como projeção da luz.
Mas, perguntamos: A luta do poeta contra a obscuridade do céu não é
também um modo de tornar possível a distinção entre luz e noite, entre
caos e ordem humana? Ao ensinar o sentido do que seja habitar em meio
às agruras e belezas da vida, o poeta não propõe necessariamente a obediência
cega ao anônimo, pois graças ao habitar podemos dirigir o olhar
para o alto, isto é, pensar o Divino sob a forma de acolhimento do outro
e reposta ao estrangeiro.
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Enviado em 7/3/2008
Aprovado em 9/6/2008

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Claridade e obscuridade: Heidegger,Levinas e o Deus invisível - Marcelo Fabri

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