JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Os sefarditas portugueses e a ciência do Renascimento-Paulo Mendes Pinto

Os sefarditas portugueses e a ciência do Renascimento
Ensaio sobre Religião, Ciência & Utensilagem Mental**
Paulo Mendes Pinto
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste»
Resumo:
Com este texto pretende-se fazer apelo à transversalidade de determinados dados formatadores da mentalidade, oriundos da formação e vivenciação religiosa, na possibilidade da criação científica. O objecto específico aqui tratado encontra-se na aplicação deste princípio à análise das comunidades de judeus portugueses (ou de origem portuguesa) no Renascimento. Isto é, até que ponto alguns aspectos da formulação teológica judaica sefardita não poderão ter sido essenciais e imprescindíveis no despoletar da ciência renascentista.
Tentaremos equacionar e lançar um olhar sobre algumas especificidades do pensamento judaico sefardita, tentando criar um quadro em que algumas das formulações teológicas do judaísmo português foram determinantes na construção de novas visões do mundo natural e das sociedades humanas; não se pretenderá afirmar a total dependência destes fenómenos, mas sim apontar alguns aspectos de franca influência ou, até, de dependência.
A cosmografia e a cartografia encontram-se no centro do nosso objecto, mas não esqueceremos outros aspectos menos mediatizados. Da filosofia política e da definição do Estadoaté às inovações económicas dos mercadores, muitos são os campos em que a comunidade sefardita portuguesa tocou fortemente a modernidade.
Na capacidade de assumir o risco, na forma de criar mecanismos de validação de redes de poder e de negócio, bem como na possibilidade de conceber determinadas noções de infinitude e de transcendência, e na necessidade de argumentativamente sustentar todas as suas afirmações, as comunidades de judeus de origem portuguesa deram um dos mais importantes contributos para a criação do chamado Mundo Moderno.
0. O contributo da Historia das Religiões para a História das Ciências
A resposta a esta questão inicial reside numa quase-obviedade: os principais pontos de contacto entre a História das Religiões e a História das Ciências não se encontram apenas nos momentos de confronto entre ambas, mas em tudo o que as estruturou até, pelo menos, ao século XIX, através das principais categorias de mentalidade que
** Este texto tem como base a conferencia realizada dentro do ciclo de História da Ciência, «Patriarca Nestor», na Pós-Graduação em História da Ciência da ULHT.
embrenhavam quer os homens de ciência quer os de religião: todos eles, religiosos e cientistas, viveram no seu tempo, no seu mundo.
Mais, falar especificamente de ciência em quatrocentos ou quinhentos é partir para um perigoso anacronismo. Trata-se de uma época onde podemos falar de conhecimentos pré-científicos, em muito já próximo daquilo que definimos como Ciência Moderna, mas também em muito ainda fora desse quadro paradigmático.
Aquilo a que faço apelo são o que podemos designar por «categorias mentais», «categorias de pensamento». Como afirmou Lucien Febvre no seu clássico Le problème de l’incroyence au 16e siècle: la religion de Rabelais1, no século XVI, em pleno Renascimento, não há qualquer forma de pensamento fora do universo religioso; que seria da pintura de Miguel Ângelo sem o encomendador e sem os motivos religiosos que a compõem? e a arquitectura? a escultura? o pensamento? Religião e Ciência estão muito próximas ... ou melhor, tudo estava muito próximo de tudo, e a religião era como que um englobante, para o bem e para o mal.
O afastamento entre áreas científicas e do saber que actualmente encontramos é uma das características da ciência da modernidade e que marca o seu início, como se de um fóssil director se tratasse; para o Renascimento ainda não há modernidade como a encontraremos nos séculos XVIII e XIX – aqui, na génese do pensamento moderno, tudo toca em tudo - ciência com religião, nomeadamente.
De facto, mais importante que encontrar alguns pontos de contacto violento, entre a ciência e a religião, o que se nos afirma como importante é a relação da estruturação de pensamento de uma época, seja ela realizada pela via da ciência ou pelo campo da religião: veremos que não é por uma nem por outra, mas sim por ambas.
1. A Cultura Portuguesa do Renascimento e a Cultura Bíblica
Quando pensamos no peso, na importância das comunidades de judeus de origem portuguesa na formulação da ciência moderna, recorremos a um já consignado conjunto de nomes, de homens de ciência. Normalmente tratam-se casos concretos, cientistas ou áreas: na marinharia Abraão Zacuto, Pêro Vaz de Caminha, Mestre João Faras, Pedro Nunes, etc., na medicina Amato Lusitano, Ribeiro Sanches, Élie de Montalto, entre outros.
Iremos recorrer a alguns deles, mas abordagem será diversa. Iremos tomar atenção a um grupo de formas de pensar e de agir especificamente judaicas, sefarditas, que tiveram um especial peso, a meu ver, na eclosão da ciência moderna, trate-se ela da marinharia e da cosmografia, da medicina ou de outro qualquer campo do saber onde os judeus sefarditas tiveram um papel de relêvo2.
Veremos como a transversalidade de determinados dados formatadores da mentalidade, oriundos da formação religiosa, poderão ter tido efectivo peso na possibilidade da criação científica e dos critérios de validação que ainda hoje são essenciais em todo o processo de credibilidade da criação e da investigação.
1 Original de Paris, Albin Michel, 1942.
2 Aqui, a expressão «ciência moderna» é usada enquanto um fenómeno que implica uma actividade de pensamento e de pesquisa de conhecimento que assenta na confirmação de hipóteses experienciais, através de uma argumentação lógica, aceite por um conjunto de pares.
Poderemos dizer que são características de etnicidade que definem possibilidades de pensamento muito para além dessa etnicidade. Ao estarem integrados numa comunidade mais vasta que a da sua de origem religiosa, estes homens criam um conhecimento que está muito para além dessas suas comunidades.
De facto, no Portugal de quatrocentos e de quinhentos, a cultura judaica não está nada afastada dos meios eruditos dos cristãos católicos.
Um estudo nosso, realizado em conjunto com Célia do Carmo José3, possibilitou-nos perceber o peso de autores judaicos na formulação do conhecimento da época. O caso então tratado foi o de frei Gaspar de S. Bernardino viajante de finais do século XVI, autor de um Itinerário4. Vejamos, para este autor de um importante roteiro terrestre, alguns aspectos de interesse:
A nível de autoridades bibliográficas citadas por este franciscano, o panorama é claro e fala por si: quanto às citações por cultura/época, o terceiro grupo de preferencias é o bíblico, com especial incidência no Antigo Testamento, sendo ainda, dentro deste, o Pentatêuco, a Torah, o núcleo preferido5.
Temos, pois, um forte núcleo de autoridade bibliográfica na Bíblia, mas esmiuçemos essas citações bíblicas realizadas por este autor. De facto, é acentuada a preferência pelas citações do Antigo Testamento (87% face ao total da Bíblia) e, dentro deste, dos livros de Génesis e Salmos, recordados quer a propósito de episódios de história antiga, quer em momentos de particular tensão e fragilidade. É interessante notar que, ao contrário de outras autoridades evocadas, e apesar das múltiplas discussões eruditas em que se embrenha, frei Gaspar nunca contesta os dados bíblicos absolutizando-os e, sempre que possível, filtrando os demais pela Divina Palavra e, naturalmente, pela observação que vivência.
Ao longo do texto, e a propósito de inúmeras temáticas, frei Gaspar recorre a textos bíblicos 46 vezes, correspondendo a 21 livros manuseados. Dentro do seu vasto quadro de citações, verificamos que são cerca de 17% do total, correspondendo as autoridades a 20%.
Verificamos rapidamente que os livros Génesis e Salmos, apenas duas das vinte e uma autoridades citadas, são cerca de 41% do total de citações efectuadas (18 para 46); donde, são duas autoridades com lugar à parte no quadro de referencias de frei Gaspar.
Ora, verifcamos que o Antigo Testamento é considerado como fonte de conhecimento exacto digno de credibilidade (pelo menos no que se refere à visão da História Universal), por oposição a um conjunto de fontes que apresentam um sentido de autoridade totalmente diferente (os Salmos e os textos do Novo Testamento), que correspondem apenas a questões suscitadas por problemas espirituais, nunca do campo dos
3 Célia do Carmo JOSÉ, Paulo Mendes PINTO, Bíblicos, Antigos e Contemporâneos na Formulação do Conhecimento Renascentista: a biblioteca virtual de Frei Gaspar de São Bernardino, Cadernos de Ciência das Religiões (vol. 1), Lisboa, Centro de Estudos em Ciência das Religiões, 2000, 85 pp. Publicado em versão sintética na revista Clio. Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, Nova série, Vol. 4, Lisboa, 2001, pp. 91-147.
4 1ª edição: Itinerário de India por terra ate este reyno de Portugal com a Descripçam de Hierusalem, Lisboa, Vicente Álvares, 1611. (reeditada em 1842, 1854 e 1953).
5 Apresentando todos os grupos: autores renascentistas (29%), latinos (25%), referências bíblicas (17%), autores gregos (12%), fontes medievais (10%) e patrística (7%).
conhecimentos empíricos - isto é, o mundo bíblico era tido como fonte digna de credibilidade muito para além do seu valor religioso e espiritual.
Passando às citações clássicas, é, sem dúvida, o historiador Flávio Josefo6 que lidera a “corrida” dos autores antigos mais citados pelo franciscano (13 citações), seguido pelo geógrafo latino Plínio7 (10 citações), o gramático Solino8 (9 citações), Diodoro Sículo9, Heródoto10, Estrabão11 (6 citações), Aristóteles12, Pompónio Mela13 (5 citações) e, já menos significativamente, Amiano Marcelino14 (4 citações), Quinto Cúrcio15, Xenofonte16, Plutarco17 (3 citações), Filo18 (2 citações) e outros, apenas com uma nomeação como que a compor simplesmente o “ramalhete” da erudição ou, como também se poderá deduzir pelo momento em que são evocados, pela sua especialização no assunto tratado.
Isto é, o autor clássico que frei Gaspar mais cita é um judeu.
Portanto, temos assim um quadro que nos apresenta alguns dados característicos do mundo da cultura judaica como totalmente presentes na cultura portuguesa de quinhentos.
Mas, há dados mais transversais, mais estruturantes da mentalidade e que, de facto, advém da formação, da formulação teológica das comunidades e dos indivíduos e, logicamente, das suas vivências e da sua forma de estar no mundo.
Vejamo-los, percorrendo um grupo de características de pensamento e, também, um conjunto de práticas sociais importantes na construção da possibilidade da Ciência Moderna.
2. Alguns dados estruturantes da mentalidade
2.1. A postura perante a Natureza e o Conhecimento
6 Flavius Josephus, historiador judeu que nasceu em Jerusalém, c. 37 d.C. e morreu no ano 100.
7 Gaius Plinius Caecilius, geógrafo e naturalista latino, viveu de 23 a 79 d. C.
8 Gaius Julius Solinus, gramático do séc. III da nossa era.
9 Historiador grego do tempo de Augusto, nascido em Agyrium na Sicília.
10 Apelidado por Cícero como o pai da História, nasceu em Halicarnasso, em 485 a.C. e morreu em 425.
11 Geógrafo latino, nasceu em 64 a. C. e morreu em 23 d. C.
12 Filósofo Grego, nasceu em Estagiros, na parte oriental da Calcídica, em 384 a.C., vindo para Atenas em 368/7. Foi preceptor de Alexandre Magno. Morreu em 322.
13 Geógrafo do séc. I d. C.
14 Historiador romano, nascido em 330 d. C., morreu em 395.
15 Escritor romano provavelmente do séc. I d. C., de quem quase nada se sabe.
16 Historiador grego do séc. IV a. C.
17 Escritor grego da época dos Flávios, terá nascido por volta de 50 d. C. e morrido cerca de 120.
18 Apelidado o Judeu, escritor helenizado do séc. I d. C. (c. 30 a. C. – 50 d. C.)
O conhecimento, partindo dos próprios textos biblicos, advém da criação, e nas suas narrativas se encontra perfeitamente espelhado. A medievalidade, através das tradições judaicas, manteve e enraizou esta noção19.
Tal como em Gen 1 a palavra ordenara o caos na narrativa sequenciada da criação do universo em sete dias, em Gen 2, nomeadamente 19-20, a palavra / a nomeação é a consignação da efectiva existência das coisas. Se tomarmos o texto com atenção, verificamos que, de facto, os seres já tinham sido criados, mas havia uma clara incapacidade de os tornar objecto de conhecimento, de os perceptar. Só depois de devidamente nomeados é que são objecto de conhecimento (é pela atribuição do nome que Adão e Deus percebem que nenhum desses seres pode vir a ser a companheira do primeiro e solitário homem).
Do trecho Gn 2, 19-20, que relata a primeira relação do homem com a natureza, duas análises temos de concretizar. Por um lado, encontramos nesta nomeação primordial um posicionamento egocêntrico do Homem que, em última análise, se atribui um local ecológico fora dos restantes seres vivos: fora ele que os nomeara para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse. O domínio, mesmo que apenas aparente, da natureza estava lançado desde os tempos primeiros através deste trecho da Torah.
Por outro lado, o Homem participara na própria criação, na medida em que só a atitude de cognição por ele desenvolvida deu uma efectiva dimensão ao que já existia. De facto, Deus criara, mas sem a participação da nomeação de Adão, nada do que antes tinha sido criado era objecto de conhecimento.
Assim, nestes dois princípios, encontramos duas posturas fundamentais emanadas da interpretação de um dos primeiros trechos da Torah: 1) o Homem tem o domínio sobre a natureza; 2) a sua actividade de conhecimento é complemento à criação realizada por Deus.
Logicamente, o que aqui encontramos é, de uma forma mais genérica, uma visão que tomamos como relativamente comum na Antiguidade; visão esta que vai enformar o conhecimento medieval, herdeiro destas concepções antigas.
De facto, quando falamos de conhecimento e de pesquisa na Antiguidade, várias categorias relativas à noção de Ciência devemos alterar. Tal como podemos encontrar em diversos autores antigos, o motor da pesquisa, da busca do conhecimento, reside num impulso teológico: o objectivo é conhecer a Deus.
É o pensamento teológico que despoleta a pesquisa proto-científica na medida em que é o conhecimento de Deus que se procura. A base deste princípio reside na ideia de que tudo pré-existe desde a criação primeira do Deus omnipotente – a própria criação é o máximo acto da sabedoria divina (teorização desenvolvida, em especial, no Livro da Sabedoria).
Ao Homem é possibilitado aceder ao conhecimento que, por natureza é divino, e que comunga do próprio momento primeiro da criação.
19 Para tratamento de questões relativas ao conhecimento segundo uma perspecgtiva judaica ver, entre outros, David B. RUDERMAN, Jewish Thought and Scientific Discovery in Early Modern Europe, Yale University Press, 1995.
Imóvel, estático, o conhecimento pode ser atingido por um percurso ético, também ele fechado, muitas vezes iniciático, não aberto a todos, mas um grupo que se reconhece entre si.
Falar de ciência antiga, é falar de uma dinâmica do conhecimento de Deus através de um conhecimento pré-existente, atingível pelo indivíduo na medida do seu caminho.
O conhecimento encontra na cultura judaica formas ricas de iconografia e simbologia: parte dos textos da Bíblia apelidam-se de sapiensiais, para não falar na fama do monarca fundador do reino do Povo de Deus. Para a cultura judaica, a sabedoria chega a ser uma entidade autónoma, uma espécie de logos como o encontramos nas formulações filosóficas gregas: em Provérbios 9 a Sabedoria dá um banquete.
Sintetizando, a natureza é campo da afirmação do Homem, e o conhecimento que o Homem concretiza é participação na própria criação divina. Mais, é a própria noção de conhecimento que é despoletada pela busca e participação em Deus, numa sua dimensão. A chegada a essa dimensão sagrada que é o conhecimento implica uma alteração ética dos indivíduos que a tal se propõem.
No fundo, a natureza pode, e deve, ser lida para se atingir o próprio Deus:
Pergunta aos animais e eles te ensinarão,
às aves do céu para te informares.
Os répteis do solo dar-te-ão lições,
os peixes do mar te farão saber.
Pois quem ignora, entre eles todos,
que a mão de Javé fez isto? (Job 12, 7-9)
2.2. A formulação teológica monoteísta e omnipotente: sabedoria e temor
Uma formulação de conhecimento que engloba a totalidade, aproximando-se da própria noção de Deus, só é possível numa esfera que assume constantemente a sua formulação monoteista – isto é, a omnipotencia, omnipresença e omnisciência de Deus.
De facto, a formulação do Deus de Israel tem como fundamental pilar a ideia clara e constantemente reafirmada de «monoteísmo» no sentido de único, perfeito, imutável, e o Deus seu objecto, de criador do mundo a partir do nada, distinto do mundo, todo poderoso20.
Esta tripla-noção-omni (omnisciência, omnipotência e omnipresença) que os monoteísmos implicam, e que no judaismo está plenamente patente, sem qualquer ensombramento, é amplamente aglutinadora de toda a realidade e possibilita a construção de uma ideia da presença de Deus em tudo o que existe. Isto é, tudo decorre de Deus; tudo existe em Deus – a própria história de Israel relatada na Bíblia é a constante
20 Ver, por exemplo, M. Ludwig THEODORE – “Monotheism”. in Mircea ELIADE - The Encyclopedia of Religion, Vol. 10, New York: Mcmillan, 1987, p. 69.
A formulação do cristianismo, em especial o catolicismo, assenta muito ricamente num complexo teológico de trindades, mãe de Deus, santos, etc., como que diluindo as atribuições do deus único para o crente.
afirmação da omnipotência e da omnisciência de Deus que nem ao seu povo deixa passar faltas.
Deus tem imagem em toda a realidade e toda a realidade é sua imagem. Mais, a omnipotência implica na crença uma dimensão de literal medo face ao Deus ciumento, ao Deus das hierofanias fulgurantes do Sinai, um referencial sempre presente. O que é interessante constatar é que, biblicamente, é criada uma relação directa entre a noção de conhecimento, de sabedoria e a de medo, temor, a Deus.
Afirmação como a encontrada nos Salmos é constantemente afirmada (Prov. 15, 33; Job 28, 28; Prov 1,7; Prov 9, 10; Jer 9, 22-23):
O temor de Javé é o princípio da sabedoria;
todos os que o observam têm mente sã (Sl 111, 10)
Há uma relação directa entre a inteligência, o conhecimento, e o conhecimento / reconhecimento de Deus. Mais, é seu bel-prazer a omnipotência sobre a terra.
2.3. A aritematização do real, a cabalística e a natureza
Duas ordens de reflexão faremos com base em dados que em parte poderiam parecer negarem-se. O uso da forma de numeração hebraica possibilitou, mentalmente, a permanência e o desenvolvimento de certas apetencias mentais; o seu abandono em certas tarefas e o uso da numeração dita de árabe possibilitou outras, totalmente diferentes, mas que retomam as capacidades e apetencias lançadas antes.
2.3.1. No que diz respeito à primeira, vimos que Deus está em tudo, desde a criação; donde, Deus pode ser conhecido, lido. O real pode ser lido e a aritmética é a forma de realizar essa leitura.
Toda(s) a(s) teologia(s) do nome de Deus reside(m) exactamente neste princípio construtor da realidade teológica: o universo encontra-se escrito segundo códigos, eles próprios divinos porque emanados de Deus, sua participação, passíveis de descodificação, de se tornarem objecto de conhecimento.
O conhecimento resultante dessa eventual descoberta é um patamar de domínio sobre a realidade, exemplo do acto de nomeação primordial já aqui apontado a Adão num dos momentos primeiros da criação.
Este objectivo era conseguido, perseguido, através da numericidade dos textos: a escrita hebraica é coincidente com a numeração (tal como a romana, entre muitas outras), donde toda a escrita pode ser aritmética, numeração, sequenciação, geometrização, codificação. Daqui advém a ideia da leitura e descodificação do mundo mediante a descoberta e decifração de códigos secretos só a alguns acessíveis, praticada por correntes místicas e grupos culturais específicos.
A cabala, a qabbalah como surge nos textos medievais, é uma visão simbólica da realidade. É uma ciência (não uma ciência moderna no sentido do inquérito científico, mas sim uma ciência porque um método e um sentido de investigação claramente
definidos e aceites por um grupo de pares) do cosmos, da sua organização e da descodificação da vida21.
2.3.2. Mas há outra dimensão da numericidade, do uso da numeração como instrumento que mudará as práticas e as mentalidades, mais palpável no caso peninsular: a contabilização e o comércio, a proximidade aos mercadores muçulmanos peninsulares - a numeração dita de árabe deve ter sido usado em Portugal a partir de 133022.
Seguindo Marques de Almeida, os novos algoritmos de cálculo permitem, sem dúvida, uma apreensão mais intensiva da teia relacional, e o alargamento de certos conceitos […] a apreensão da realidade transforma-se e a visão global do Mundo torna-se mais complexa. Daí o aparecerem novos paradigmas23.
Centrando-nos nas alterações paradigmáticas em causa, duas ordens de constatações realizamos: por um lado, conhecem-se as numerações árabes, por outro, conhecem-se instrumentações cartográficas e de representação do espaço que só com essa numeração se podem efectuar. Isto é, as comunidades de judeus peninsulares mais ligadas ao comércio facilmente ganham esta bagagem de leitura da realidade e a aplicam às suas realizações profissionais: comércio de longa distância e navegação também de longa distância.
Ora, é, aparentemente, a obra de um judeu converso que introduz a numeração decimal na Peninsula Ibérica: uma das versões em latim, a mais antiga, da obra de Musa al-Huwarizmi (c. 780 – c. 850), é o Liber Algorismi de prática arismetrice, de João de Sevilha, de 113524.
A grande expansão do uso da numeração árabe centra-se no mundo mercantil da Península Itálica.
No que diz respeito à contabilidade, a numeração, o domínio da numeração é algo de quase alquímico que possibilita perceber as mecânicas da criação de riqueza, o domínio do juro, das taxas, do lucro, da percentagem. Quem não consegue fazer contas também não atinge a dimensão dos lucros, das margens: a notação escrita introduzida na Europa pelos árabes é particularmente ajustada à velocidade e certeza do cálculo e permitia uma operacionalidade que, até então, não havia sido possível atingir25.
Desta forma, o uso desta nova numeração está intrinsecamente relacionado com a afirmação de uma nova forma de criar riqueza, o pré-capitalismo26, tal como está próxima de uma nova forma de ver o mundo, mediante novas ferramentas de compreensão.
21 Ver, entre outros, Alexandre SAFRAN, La Cabale, 3ª ed., Paris, Payot, 1979; e Moshe IDEL, “Qabbalah”, in in Mircea ELIADE, The Encyclopedia of Religion, Vol. 12, New York: Mcmillan, 1987, pp. 117-124.
22 Cf. A. A. Marques de ALMEIDA, “Saberes e Ciência na Expansão Portuguesa”, Actas dos 1os. Cursos Internacionais de Verão de Cascais, Cascais, CMC, 1995, p. 140.
23 A. A. Marques de ALMEIDA, “Aritmética como sistema de descrição do real nos autores ibéricos do século XVI”, in Ana Maria CARABIAS TORRES, ed, Las relacones entre Portugal y castilla en ,a época de los descubrimientos y la expansión colonial, Salamanca, Ed. Universidad de Salamanca, [s. d.], p. 229.
24 A. A. Marques de ALMEIDA, Estudos de História da Matemática, Mem Martins, Ed. Inquérito, 1997, p. 105.
25 Idem, ibidem, p. 25.
26 Sobre a dimensão social das práticas económicas aliadas à nova numeração ver, entre outros, A. A. Marques de ALMEIDA, “A aritmética comercial em Portugal nos séculos XVI e XVII”, História e
Se a numericidade do próprio alfabeto hebraico possibilitou a criação de uma ideia de leitura e descodificação do mundo, a adopção da numeração árabe permitiu a realização desse sonho alquímico: descodifcar o mundo em equações universais … o primeiro a fazê-lo com grande êxito foi Newton, ou não fosse o seu nome próprio Isaac ...
2.4. A questão da LEI, a universalidade
Mas Isaac Newton necessitou de outra categoria mental para desenvolver a sua lei geral da atracção dos corpos, a Lei da Gravitação Universal: a noção de “lei universal”.
Todo o Antigo Testamente se encontra marcado por um princípio base: a contratuação. Assim se passa em vários patamares de aliança entre Deus e o seu povo (Abraão, Moisés, consignação da monarquia, etc.).
A já referida cabala tem como princípio o facto de nada ser arbitrário. Tudo está predefinido, criado por Deus desde o instante primeiro; o homem tem de buscar e de participar nesse conhecimento. A própria raiz do vocábulo cabala aponta no sentido da recepção, da participação em algo que já existe, e que apenas estava inacessível27.
2.4.1. Daqui decorrendo, há uma ordem criada pelo divino no cosmos que deve ser conseguida pelo homem. Há todo um conjunto de fenómenos na cultura sefardita que achamos terem aqui a sua raiz. E estamos a falar do desenvolvimento de uma filosofia própria em plena Idade Média, uma lógica que na Península Ibérica fez escola - com Maimónides28 em primeiro plano - tal como estamos a falar na necessidade de encontrar leis para o funcionamento da língua que se falava.
Estes dois campos de saber não estão minimamente apartados. A lógica é complemento ao estudo da gramática: a lógica é o pensamento, uma racionalidade, e a gramática é a forma como ele se efectiva, se mostra ao mundo29.
No campo da gramática, é significativo que antes da formulação gramatical das línguas nacionais, o hebraico seja racionalizado linguisticamente. A base é, efectivamente, a necessidade de consignar para o futuro a leitura de uma escrita que corresponde a uma língua cada vez menos falada; Assim, este processo é bastante antigo, mas tem, a partir do século XIII um incremento formidável: Roger Bacon terá escrito a primeira gramática hebraica no decurso de duzentos (gramática que não nos chegou)30.
As cátedras de hebraico foram estabelecidas um pouco por toda a Europa depois do concílio de 1312 (Viena): Paris, Bolonha, Roma, Oxford e, logicamente, Salamanca31.
Alguns dos principais gramáticos de fins de quatrocentos e inícios de quinhentos são de origem peninsular. Nomes como os de Mateo Adriano, oriundo do Reino de Leão, é de
Desenvolvimento da Ciência em Portugal (Publicações do II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa), Vol. I, Lisboa, Academia das Ciências, 1986, pp. 43 – 79.
27 Do hebraico qbl, receber.
28 Córdova 1135, Cairo 1204.
29 Moisés ORFALI, Biblioteca de autores lógicos hispano judíos (siglos XI-XV), Granada, Universidad de Granada, 1997, p. 17.
30 Santiago GARCÍA-JALÓN DE LA LAMA, La gramática hebrea en Europa en el siglo XVI, Salamanca, Publicaciones Universidad Pontificia de Salamanca, 1998, p. 11.
31 idem, p. 11.
ter em conta – o primeiro dos grandes gramáticos do século XVI. Ter em conta, ainda, Elio Antonio de Nebrija, andaluzense, Alfonso Zamora (n. 1475), entre outros ainda.
2.4.2. Retomando as questões relativas às inovações numéricas que possibilitaram o desenvolvimento das técnicas de calculo, não nos podemos esquecer que, aliado ao nascimento das técnicas de calculo, temos o grande desenvolvimento das formas contabilísticas dos câmbios, das letras, dos seguros.
Se a numeração dita de árabe possibilita as ferramentas para a realização destas novas dimensões de trocas comerciais e de comerciais, a verdade é que só a dimensão de confiança contratual, que ultrapassa o pagamento à vista, deu verdadeira força ao nascimento do capitalismo.
Mais uma vez, a confiança contratual entre as partes que no início deste ponto vimos aplicada à própria história de Israel, pode ter possibilitado uma nova postura de confiança entre partes que negociavam de forma quase virtual32.
2.5. A necessidade de argumentação consistente, demonstrativa
Um ponto recentemente levantado por alguns investigadores tem como base a tradição argumentativa judaica.
A base é deste raciocínio é a análise da lógica medieval: Argumentava-se com base em textos sagrados, a Bíblia, ... havia que ter um imenso cuidado na argumentação que, em virtude dessa base de trabalho, deveria ser altamente consistente.
Pedro Nunes33 pode ser um perfeito exemplo deste princípio mental, desta necessidade demonstrativa, aplicado à argumentação científica.
Cristóvão Clavius, entre muitos outros matemáticos da sua época que muito enalteceram o trabalho deste português, deixou escritas as palavras que melhor reflectem a admiração que a sua obra causou junto dos seus contemporâneos, ao dizer que o português "mostrou perspicazmente muitas coisas que a todos pareceriam paradoxos se não estivessem alicerçadas nas mais sólidas demonstrações"34.
32 Ver, em especial, S. M. PASSAMANECK, Insurance in Rabbinic Law, Edimburgo, Edinburg University Press, 1974.
Para o caso do comércio de dinheiro - da usura e do câmbio -, seria de equacionar o peso dos interditos aplicados aos cristãos, quer no campo das práticas económicas, quer no campo, por exemplo, da medicina. Há uma forte relação entre esses interditos aplicados à maioria da população, cristã, e a possibilidade de as minorias praticarem, livremente, essas actividades mal vistas ou consideradas impuras.
33 Nasceu em 1502 em Alcácer do Sal e em ca. 1517 inicia estudos universitários. É bacharel médico por Salamanca e até início dos anos trinta do século XVI dá aulas ao infante D. Luís (até Julho de 1531), a Martim Afonso de Sousa (até 1530) e a D. João de Castro. É nomeado cosmógrafo do reino (a 16 de Novembro). Ingressa no Estudo Geral como lente substituto da cadeira de Filosofia Moral (a 4 de Dezembro). Lecciona Lógica na Universidade, em Lisboa. Por volta de 1534 redige o manuscrito do Livro de Álgebra. A 27 de Setembro obtém autorização do rei para mandar imprimir todas as obras que "tivesse feitas". A 1 de Dezembro de 1537 é publicado o Tratado da Sphera com a Theorica do Sol e da Lua, em Lisboa, por Germão Galhardo. Seguir-se-ão Petri Nonii Salaciensis de Crepusculis libri unu, De erratis Orontii Finaei. Morre em Coimbra, a 11 de Agosto de 1578.
34 Trecho editado no site da Biblioteca Nacional aquando das comemorações do nascimento de Pedro Nunes: http://bnd.bn.pt/ed/pedro-nunes/pn-impressos-xvi.asp
3. Epílogo
Resumindo o nosso argumento, partimos de um princípio: há características da mentalidade sefardita renascentista, de fins da Idade Média, oriundas da formulação religiosa, que podem ter sido essenciais no despoletar da Ciência Moderna.
Num primeiro momento vimos que alguns aspectos da cultura judaica, ou melhor, aspectos oriundos e identificativos dessa cultura, em nada eram estranhos aos meios letrados portugueses. Tentamos, assim, demonstrar que os eventuais aport sefarditas não seriam totalmente rejeitados porque estranhos.
Assim, depois deste princípio base da argumentação, construímos um quadro com os referidos aspectos de mentalidade religiosa.
Transversal aos aspectos enumerados, encontramos a visão da natureza e do mundo, ambas em total interdependência com a visão do lugar e do papel de Deus e do Homem. Estando Deus em tudo, desde a sua criação do mundo, tudo é imutável e passível de conhecimento.
A busca de conhecimento é uma busca de Deus, da sua ordem. E é exactamente na noção de ordem que se articula o próprio motor da busca pré-científica: a natureza pode e deve ser conhecida; a instrumentação mental é a forma como ela se encontra acessível ao Homem: pelos textos, pela aritemicidade dos textos sagrados, pela aritematicidade do mundo.
As apetências religiosas aliadas às capacidades da numeração decimal criam a mola que tornará diferente o mundo.
Os campos onde se aplicará esta feliz aliança são os das capacidades de cálculo e de representação do mundo. A revolução do cálculo possibilita uma contabilidade comercial totalmente diferente, tal como possibilita o desenvolvimento de uma geometria e consequente representação da terra totalmente novas.
A noção de lei, aplicada à forma de ver o mundo, revolucionará a forma contratual dos indivíduos se relacionarem, tal como possibilitará a busca de princípios inteligíveis na mecânica celeste.

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Os sefarditas portugueses e a ciência do Renascimento-Paulo Mendes Pinto

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