JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

As revoluções na informática, robótica, micro-eletrônica, biotecnologia, genética, comunicações e outros campos têm criado possibilidades econômicas inéditas.

Ao mesmo tempo, 30 mil crianças morrem diariamente devido à miséria, 800 milhões de pessoas estão desnutridas, 3 bilhões são pobres.

A polarização social tem alcançado índices absurdos. As três pessoas mais ricas do mundo têm um patrimônio maior que o produto bruto dos 49 países mais pobres. A América Latina, região de excepcional potencial econômico, rica em matérias-primas estratégicas, fontes de energia baratas e terras muito férteis, é vista hoje como a terra da pobreza e desigualdade. Sessenta por cento das crianças são pobres, 36% dos menores de 2 anos estão desnutridos, 1/3 da população não tem água potável.

Junto a estes paradoxos extremamente impactantes, a sensação que o grande filósofo canadense Charles Taylor denomina de “o desencanto do mundo” se espalha entre as novas gerações. A atual sociedade consumista, voltada aos bens materiais, à concorrência feroz para alcançar melhores posições, à luta pelo dinheiro e poder, gera uma sensação de solidão, que Victor Frankl chamou de um dramático “vácuo dos sentidos”.

As respostas a estes graves problemas não parecem claras. Cresce o ceticismo sobre até onde pode chegar uma globalização repleta de oportunidades tecnológicas, mas totalmente carente de um código ético que a oriente.

Neste contexto, as propostas da ética judaica estão tendo valor crescente como referência e orientação. Muitas delas estão sendo retomadas com vigor por organismos internacionais, ONGs e movimentos que visam um mundo melhor. Vejamos resumidamente o atual impacto de algumas destas propostas:

n Um princípio básico da mensagem moral transmitido por D’us ao povo judeu é o de que somos responsáveis uns pelos outros. Para a ética judaica é proibida a indiferença ao sofrimento de outros. Diz-se no Levítico: “Não desconsideres o sangue de teu próximo” (19:16). Nossa época carateriza-se por altas doses de egoísmo, daqueles que têm face aos que não têm, e de insensibilidade. O secretário geral da ONU, Kofi Anan, ao exigir recentemente que o mundo supere a indiferença diante da morte de 22 milhões de pessoas nos últimos anos por Aids, determinou que é imprescindível voltarmos a ser responsáveis uns pelos outros.

• Para a ética judaica, a pobreza não é um problema apenas dos pobres, mas de todos. Leibowitz observa que os profetas dizem “Não haverá pobres entre vós”. Não estão dizendo o que irá acontecer, mas o que deveria acontecer. Sua voz não é de oráculo, senão de exigência moral. Para que não haja pobres, a sociedade deve tomar algumas medidas. Diante daqueles que, na América Latina, atribuem a pobreza dos pobres a eles mesmos, o judaísmo se revolta porque considera tal atitude uma injustiça. Esta mensagem foi recentemente incorporada à Carta dos Direitos Humanos da ONU. Entre estes, foram incluídos os direitos básicos do homem a não ser pobre, à alimentação, à saúde, à educação, ao trabalho, à moradia entre outros. A partir de agora estes são direitos essenciais do ser humano, embora proclamados há milênios pela ética judaica.

• As grandes desigualdades são severamente censuradas pelo judaísmo. Os profetas questionaram-nas implacavelmente e julgaram moralmente os poderosos que as fomentavam. O judaísmo criou uma institucionalidade completa para prevenir as polarizações sociais. A Torá estabelece que a cada 7 anos a terra deve descansar para que os pobres possam aceder a seus frutos. A cada 50 anos a terra deve retornar a seus proprietários originais. Procura-se assim impedir sua monopolização. É o jubileu. Assim mesmo, a cada 7 anos as dívidas devem ser perdoadas. O grande movimento mundial vigente pelo perdão total ou parcial da dívida dos países mais pobres do mundo, encabeçado pelo Papa João Paulo II, apoiou-se nesta mensagem e intitula-se “Movimento do Jubileu”.

• Em recente pesquisa realizada pelo Banco Mundial, 60 mil pobres de todos os continentes disseram que o que mais lhes dói é o desprezo, o fato de serem tratados como pessoas inferiores por serem pobres. A Torá estabelece o mais absoluto respeito pelo pobre. É idêntico aos outros. D’us se preocupa especialmente por ele e exige este respeito. O Rabino Leo Baeck observa que no idioma hebraico não existe a palavra mendigo, por si só pejorativa. Esta determinação de se escutar e respeitar o pobre está sendo um eixo para a ação dos organismos internacionais.
• Como ajudar o desfavorecido? Este tema, discussão permanente nos organismos internacionais, foi analisado por Maimônides no século XII aplicado à ética judaica. O genial sábio identificou oito níveis sobre “a ajuda”. O nível inferior é quando ajuda-se alguém de má vontade. A segunda categoria é quando aquele que ajuda e aquele que recebe desconhecem um ao outro; neste momento, o anonimato que protege a dignidade do pobre é completo. No entanto, o nível mais alto de todos, a melhor ajuda que alguém possa dar, é aquela que fará com que o necessitado não volte mais a precisar dela. Hoje, na ONU e nos principais organismos em prol do desenvolvimento, procura-se que os projetos tenham orientação no sentido de que haja sempre esta auto-sustentação enfatizada por Maimônides.

• Na ética judaica, ajudar os outros é um dever imprescindível. Como tal, não merece nenhum prêmio nem reconhecimento. O Rebe de Lubavitch observa que a ajuda deve ser desinteressada, não se deve esperar nada em troca e, exemplificando isto, destaca que no dia mais sagrado do judaísmo, o Dia do Perdão, nas orações sefaraditas pede-se perdão à D’us não só pelos prejuízos causados ao próximo, mas também pelos atos que não foram feitos desinteressadamente. O Rabino Abraham Y. Heschel diz que ajudar é simplesmente “o modo de viver correto”. O prêmio está em viver-se desta forma. A força destes conceitos no judaísmo, seu contínuo ensinamento no âmbito familiar e na escola judaica assentaram as bases para grandes resultados em matéria de trabalho voluntário. Os países estão tentando dar forças ao voluntariado e vêem com crescente interesse os bons resultados. Israel e as comunidades judaicas têm índices recordes de trabalhadores voluntários. Em Israel, 25% da população pratica trabalho voluntário, produzem principalmente bens e serviços sociais que representam 8% do PNB. Exércitos de voluntários, de diferentes comunidades judaicas do mundo, trabalham diariamente levando adiante suas instituições e programas em proporção superior às médias de seus respectivos países. A conclusão é clara: a possibilidade de desenvolver o voluntariado está ligada à interiorização dos valores éticos pelas pessoas.

• Hoje vemos duas instituições fundamentais do judaísmo que são bases da sociedade: a família e a educação. O judaísmo lhes assegura o mais alto valor. A Torá dá especial destaque. A ética judaica zela vigorosamente pelas relações entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos e até sogros, genros e noras. O Rabi Yoshua Ben Gamla criou no ano 69 a primeira escola pública de que se tem referência. Hoje, muitos países estão analisando como fortalecer a família, duramente deteriorada, e gerar educação. O judaísmo tem contribuições muito expressivas para oferecer nestes campos.

• Nas sociedades latino-americanas, entre outras, adota-se com frequência políticas que sabidamente irão significar grande sofrimento para a população, com o argumento de que “o fim justifica os meios” e que são necessários para que haja maior crescimento econômico. A ética judaica não aceita tal raciocínio. Na Torá pode-se ler textualmente que “o fim não santifica os meios”. Refletindo sobre esta diferença, Albert Einstein perguntava “Quem havia sido o melhor condutor dos homens, Maquiavel (autor original do princípio de que o fim justifica os meios) ou Moisés? Quem teria dúvidas sobre a resposta?”

• Como encarar a pobreza e a desigualdade na América Latina e no mundo? O judaísmo indica caminhos que ecoam de forma crescente. Para este, o problema deve ser encarado por uma ação conjunta de todos os agentes sociais. Cada um deles deve assumir suas responsabilidades. Necessita-se de políticas públicas muito ativas. O judaísmo criou a primeira legislação fiscal sistemática para uso coletivo, o dízimo. Por outro lado, a comunidade e a sociedade civil devem organizar-se e agir. E, finalmente, tudo isso não exime cada pessoa de individualmente fazer o correto em cada situação de miséria ou injustiça com que se depare.

• Uma idéia central do judaísmo é a de Tikum Olam – ajudar a consertar o mundo. O Rebe de Lubavitch faz menção a uma simples interpretação de um conhecido episódio bíblico. Depois de sair do Egito e atravessar o deserto, quando os judeus se aproximam de Canaã, Moisés envia 12 exploradores. Ao regressarem, 9 deles desestimulam as pessoas, dizendo-lhes que não continuem. Com freqüência são considerados traidores. O Rebe observa que Moisés escolheu os melhores de cada tribo, eram pessoas excelentes; porque iriam ser desleais? O que ocorreu é que encontraram-se com sociedades perdidas na luxúria, corrupção e idolatria. O povo judeu, no deserto, era em contrapartida um povo espiritual entregado ao estudo da Bíblia. Temiam que seguindo para Canaã pudessem ser contaminados. Mas, se equivocaram disse o Rebe, pois o desejo de D’us era diferente. O que D’us queria não era que se recolhessem para conservar sua pureza e sim que levassem a espiritualidade aos mundanos, que difundissem os valores éticos nas sociedades infestadas de vícios. Em uma época como a nossa, em que tantas ideologias tombaram, a proposta do judaísmo de avançar até que o mundo se redima eticamente – e de que não é permitido ficar à deriva, mas sim agir para transformá-lo e lhe dar valores éticos – prevê grande duração e diz muito a todos os homens e mulheres empenhados em uma humanidade melhor.

A ética judaica está viva e fresca, podendo ajudar a enfrentar o “desencanto do mundo”, o “vácuo dos sentidos” e a inadiável conscientização dos paradoxos da grande pobreza em meio à riqueza potencial que particularizam a América Latina e o mundo. A mensagem deste conjunto ético foi dita pelo sábio do Século I, Hillel: “Se eu não for por mim, quem o será?” significa dizer que todos devemos defender nossa saúde, nossa vida, nossa família; somos insubstituíveis nisto. Mas, acrescentou: “E se eu for somente para mim?”, significando que a vida sem solidariedade, responsabilidade pelo destino de outrem, amor ao próximo, transcedência, não faz sentido. Finalizou: “Se não agora, quando?” O que espera a ética judaica de cada um de nós é que entremos em ação, agora!

Bernardo Kliksberg é presidente da Comissão de Desenvolvimento Humano do Congresso Judaico Latino-americano; assessor da ONU, OIT, UNESCO, UNICEF entre outros organismos internacionais.

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