O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana
Outra experiência de tempo.
Paulo Blank
É bem possível que a primeira experiência de tempo seja um intervalo de pânico.
Quando somos bebezinhos o afastamento da mãe é vivido como um súbito abismo. Berrando e gritando queremos recuperar no imediato do agora o bem estar que vivíamos dois segundos atrás. Uma verdadeira catástrofe dos sentidos se instala naquele momento de paz.
De tanto experimentar o ir e voltar da sensação de bem-estar –acalmando- o-pânico-que-rompeu-com-o-bem-estar-anterior, a mente constrói a sensação do intervalo. A experiência bem sucedida do ir e voltar transforma o abismo em intervalo.
Entre catástrofes e concertos vamos construído uma sensação que mais tarde aprendemos a chamar de depois.
Se o intervalo ganha o corpo ele permite o surgimento de uma vivência que na idade adulta chamamos de esperança. Esperança é um sentimento de saber que o pânico do abismo pode ser acalmado com a chegada do depois.
Depois, é uma noção que requer uma mente sofisticada. Depois é o fundamento do que chamamos tempo. O modo em que experiência de tempo influenci a mente marca a relação mais, ou menos aflitiva, com tudo que for separação, aproximação, distância, amar e medo de amar.
É bem possível que a maior parte de nossos sofrimentos emocionais esteja ligada à forma como foi vivida e construída esta experiência chamada tempo.
É importante perceber que o intervalo é vivido dentro de uma descontinuidade feita de inúmeros intervalos, de cortes abruptos e reconstruções súbitas. Ou seja, na vida humana nunca houve uma experiência de continuidade em estado puro.
A continuidade é uma ilusão da mente na medida em que ela se sobrepõe às inúmeras rupturas e intervalos que formam o sentimento chamado tempo.
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A idéia da progressão de uma vida organizada se inspira nos objetos que nos rodeiam. A vida dos objetos nos ajuda a não perceber a descontinuidade dentro da aparência de continuidade.
É mais ou menos como certas casas que visitamos e onde os móveis e os objetos estão sempre limpos, brilhantes, no mesmo lugar, criando a sensação de um tempo estável. A não ser que um vaso se quebre.
É bom relembrar que desde as primeiras vivências já estamos experimentando o descontinuo, o súbito, a ruptura e a sua reconstrução tão inesperada quanto a catástrofe que a antecedeu.
Mas, se afastarmos a mente desta certeza e olharmos a vida das pessoas ao redor com certo distanciamento, o que veríamos?
Poderíamos perceber a permanente diversidade de afetos e acontecimentos que nos circundam e aprender a viver sem a visão do tempo em linha reta?
É preciso insistir nesta descontinuidade. Para que? Para que possamos aceitar os intervalos do tempo que não sucumbe à ilusão do Sou. O Sou quer abarcar tudo. Impor-se a tudo. O Sou é.O Sou quer ser o todo do mundo.
Os acontecimentos súbitos instauram o novo num de repente tão inesperado quanto a sarça que ardia no deserto por onde passava determinado sujeito chamado Moisés sem imaginar o que veria alguns passos depois.
Quando Moisés se dirigiu à voz que lhe comandava a ida ao Faraó do Tempo Embalsamado perguntando de quem ela era, ouviu de maneira nítida o inicio da grande diferença:. Ehieh Asher Ehieh. Serei o que Serei.
Um Deus fora do tempo e das formas acabava de ser introduzido na mente humana através do acontecimento do deserto que se move e se transforma sem parar. Tão móvel em seu movimento quanto o fogo da sarça que não queimava.
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A Torah diz que a vida foi dada para que vivamos. Dei-te a vida para
que vivas, assim é que é dito em palavras de Serei o que Serei. O que faz supor que pode existir outro tipo de vida.Uma vida do não viver?
Vida em hebraico é HaiiM, palavra plural. Tantas vidas em uma só vida, diz Fernando Pessoa.
Para que Deus possa ser Ehieh a vida precisa ser HaiiM. Não viver na vida vivida é viver na contenção de um Eu cheio de Sou. Totalizado. Sem lugares para outros e sem outros lugares para si. Uma vida no singular.
A mente reluta. As culturas gregas e romanas traduziram o diálogo do deserto como: Sou O Que Sou! Um ser sem intervalo é tão assertivo quanto os valores que alimentam as nossas vidas até os dias de hoje. A tradução é sempre traição.
Um ensinamento talmúdico diz que cada instante tem o seu anjo único. Outro nos fala que a cada instante novos anjos são criados para louvar a Deus e desaparecer. Cada instante tem a sua oportunidade. Sua qualidade diferente. Seus acasos. Cada instante é um intervalo por onde o Machiach pode penetrar na história fazendo a vida acontecer diferente.
Como diz Guershom Sholem: “estes anjos antecipam o apocalipse no coração da história”. No meio do dia a transformação radical. O abismo que já vivemos no passado se transforma na esperança de um de repente. Talvez por isto a toda hora apareçam novas previsões de uma grande catástrofe capaz de inaugurar outra história.
De repente um ano novo. De repente Rosh Hashaná.
De repente, não mais que de repente. Outra história.
Conta-se que certo sujeito procurou um Rav em Jerusalém e lhe disse que teve um sonho onde via o Machiach sentado na porta de Roma. O Rav entendeu o seu sonho e disse-lhe que fosse correndo até aquela cidade imperial e procurasse o homem entre os pobres e os leprosos sentados perto das muralhas na entrada da cidade. Do lado de fora. Ou seja, fora da cidade organizada que vive o seu dia a dia cercada de poder e certeza num
tempo próprio fora do tempo Como acontece no shopping-tempo sempre iluminado dos dias de agora.
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Chegando às muralhas de Roma viu um homem que correspondia ao seu sonho. Aí aconteceu o seguinte dialogo:
- Você é o Machiach?
- Sim
- Então quando você vai chegar?
- Hoje
O homem afastou-se voltou para Jerusalém. Assim que o viu entrando o Rav perguntou.
- O que ele disse?
Desanimado o viajante contou-lhe o acontecido:
-Perguntei quando ia chegar ele respondeu hoje, estava caçoando de mim.
- Infeliz é a geração que não aprendeu a escutar- respondeu o Rav.
Escutar o sussurro do tempo é perceber que no agora do intervalo de cada instante o tempo súbito pode irromper no coração humano. Irrupção de um absolutamente novo dentro das passagens de nossas vidas. Vidas organizadas num tempo que evolui em direção a um ponto que nunca para de quase chegar.
O que o Rav tentou ensinar ao viajante foi a idéia de que as mudanças não acontecem em linha reta. Quando o Machiach disse “hoje” ele não estava brincando. No entanto, para percebê-lo e dar-lhe passagem, é preciso estar aberto para escutar quando formos conversar com algum Machiach acampado do lado de fora de nossas muralhas.
Shaná Mehudeshet para todos nós.
Um ano renovado para todos nós.
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