Breve História dos Judeus no Brasil - SALOMÃO SEREBRENICK
A história dos judeus no Brasil constitui um caso único; pois de nenhum outro país se pode dizer que nele os judeus tenham vivido ao longo de toda a sua existência, contribuindo substancialmente para o seu desenvolvimento econômico e social.
De fato, desde o descobrimento do país - evento este do qual participaram, tendo inclusive ajudado nos seus preparativos - até a época presente, os judeus, quase sem intermitência, aberta ou disfarçadamente, estiveram integrados nos processos de formação da nacionalidade.
Isso não obstante, vale dizer, embora os judeus tenham representado continuamente uma parcela da sociedade, a sua história não acompanha simplesmente a do Brasil. Longe de um esperado paralelismo, o que se verifica é a existência de inúmeros desvios e meandros, os quais não raro atingem o grau de contraste.
À guisa de exemplo, mencione-se o período da ocupação holandesa, que, traduzindo um fracasso para o país, constituiu, entretanto, o ponto mais alto do desenvolvimento da coletividade judaica local, dando-se o inverso com a fase subseqúente, quando, após a expulsão dos invasores, sobreveio a decomposição, o êxodo e a dispersão dos judeus do Brasil.
Semelhantemente, as intensas perseguições religiosas da primeira metade do século XVIII, de parcos efeitos diretos sobre a população geral do país, tiveram influência específica marcante sobre a vida dos judeus brasileiros.
Finalmente, sob outro aspecto, a implantação do regime e disposições liberais no país, no início do século XIX, culminando com a proclamação da Independência, e que resultou tão favorável ao progresso geral do país, determinou porém a assimilação quase total dos judeus, efeito este que é de se considerar negativo do ponto de vista da preservação da comunidade judaica brasileira.
Por tais motivos, o estudo da história dos judeus no Brasil não pode ater-se às fases e aos marcos gerais da evolução política e social do país, senão orientar-se, ao revés, segundo os fatos e acontecimentos históricos que hajam repercutido especificamente nas condições de vida individual e sobretudo coletiva dos judeus.
De acordo com tal critério, impõe-se destacar as seguintes oito fases na história dos judeus no Brasil, de 1500 a 1900:
1
1500-1570 - FASE PACÍFICA DE CRESCENTE IMIGRAÇÃO e de ampla integração dos judeus na vida econômica do país, compreendendo os três sub-períodos:
a) - Primeiras explorações (1501-1515);
b) - Primeira colonização (1515-1530);
c) - Colonização sistemática (1530-1570)
2
1570-1630 - FASE TUMULTUÁRIA, caracterizada pelo surgimento de DISCRIMINAÇÕES ANTI-JUDAICAS.
3
1630-1654 - Período de EXUBERANTE DESENVOLVIMENTO, sob o domínio holandês - verdadeiro APOGEU DA ORGANIZAÇÃO COLETIVA dos judeus do Brasil.
4
1654-1700 - Período pós-holandês, FASE CRÍTICA na vida dos judeus brasileiros, compreendendo ÊXODO em massa, desagregação da comunidade, DISPERSÃO e final acomodação local.
5
1700-1770 - Período das GRANDES PERSEGUIÇÕES promovidas pela Inquisição portuguesa.
6
1770-1824 - Período de LIBERALIZAÇÃO progressiva, queda da imigração judaica e GRADUAL ASSIMILAÇÃO dos judeus.
7
1824-1855 - Fase de ASSIMILAÇÃO PROFUNDA, subseqüente à cessação completa da imigração judaica homogênea e à igualização total entre judeus e cristãos perante a lei.
8
1855-1900 - Período PRÉ-IMIGRATÓRIO MODERNO, caracterizado pelas primeiras levas de imigrantes judeus, oriundos, sucessivamente, da África do Norte, da Europa Ocidental, do Oriente Próximo e mesmo da Europa Oriental, precursores das correntes caudalosas que, nas primeiras décadas do século XX, vieram gerar e moldar a atual coletividade israelita do país.
Contribuição judaica ao descobrimento do Brasil
Verificou-se o descobrimento do Brasil numa época em que Portugal estava no auge da sua expansão no mundo.
Não era então somente a glória militar ou a busca romanesca de aventuras, ou ainda o desejo de dilatar a fé católica, que impeliam os portugueses às suas grandiosas expedições marítimas, em que singravam "mares nunca dantes navegados", intimoratos aos perigos, insensíveis às provações.
Ao lado desses motivos, e quiçá acima deles, o espírito comercialdominava as expedições. Visavam os portugueses quebrar o monopólio que até então, por intermédio das caravanas árabes, mantinham venezianos e genoveses sobre o intercâmbio mercantil com os portos do Levante, e desse modo assegurar a Portugal a posição de centro as grandes atividades econômicas da época, a função de empório de produtos e especiarias intensamente procurados pelos meios consumidores da Europa.
Fossem quais fossem, entretanto, os móveis do alargamento marítimo de Portugal, o certo é que ele não lograria produzir-se sem o longo período de descobertas e aperfeiçoamentos científicos, que precedeu o grande ciclo das conquistas, e no qual tiveram papel de sumo relevo os sábios da época.
Desde o século XII, aliás, vinham os judeus ibéricos se distinguindo extraordinariamente nos domínios da matemática, astronomia e geografia, ciências essas básicas para a arte náutica, especialmente para a navegação oceânica.
Merecem menção, entre muitos outros:
ABRAHAM BAR CHIA
Autor das obras "Forma da Terra", "Cálculo do Movimento dos Astros" e "Enciclopédia";
ABRAHAM IBN ESRA
Autor de "Utensílios Éneos", "Tratado do Astrolábio", "Justificação das Tábuas de Kvarismi" e "Tábuas Astronômicas";
JOÃO DE LUNA
Que escreveu "Epítomes de Astrologia" e "Tratado do Astrolábio";
JACOB BEN MACHIR
Que escreveu "Tratado do Astrolábio" e inventou um instrumento de observação, chamado "Quadrante de Israel";
ISAK IBN SAID
Que elaborou um resumo concatenado das obras sobre astronomia dos gregos e árabes;
RABÍ LEVÍ BEN GERSON (GÉRSONIDES)
Que escreveu as obras "Tratado sobre a Teoria e Prática do Cálculo", "Dos Números Harmônicos", "Tábuas Astronômicas sobre o Sol e a Lua" e "Tratado sobre a Balestilha", e construiu dois importantes instrumentos: a câmara escura e o telescópio, cuja invenção é geralmente atribuída a outros;
ISAAC ZADDIK
Que escreveu "Tábuas Astronômicas", "Tratado sobre Instrumentos Astronômicos" e "Instruções para o Astrolábio de Jacob ben Machir".
Esse vicejante movimento científico foi de forma excelente aproveitado pelos governantes portugueses em prol da ascensão do seu país à posição de grande potência naval.
Assim, o infante D. Henrique, apelidado "O Navegador", ao fundar, em 1412, a primeira academia de navegação, a tradicional "Escola de Sagres", escolheu para sua direção um dos mais famosos cartógrafos do século XV, o judeu Jehuda Crescas, indo buscá-lo, especialmente, nas Ilhas Baleares. Jehuda Crescas, também conhecido como mestre Jácome de Malorca e ainda comumente chamado "El judio de las Brújulas" - devido à sua grande experiência na fabricação de bússolas - teve por essencial missão ensinar aos pilotos portugueses os fundamentos da navegação e a produção e manejo de cartas e instrumentos náuticos.
Mais tarde, outros judeus de renome científico prestaram sua colaboração à Escola de Sagres, destacando-se os sábios José Vizinho, mestre Rodrigo e, sobretudo, Abraham Zacuto - autor do "Almanaque Perpétuo de todos os Movimentos Celestes" - figura de grande influência em todas as decisões que diziam respeito aos interesses do Estado, inclusive portanto às expedições oceânicas, uma das quais - a importante e bem sucedida viagem de Vasco da Gama que trouxe a descoberta do caminho marítimo à Índia - foi por ele planejada.
Afigura-se, desse modo, evidente que, em grande parte, a cooperação científica dos judeus do século XV tornou possível as viagens transoceânicas e as descobertas realizadas pela frota lusitana.
Mas, a contribuição judaica ao descobrimento de novas rotas e de novas terras para a coroa portuguesa não se limitou ao campo científico de feição preparatória, senão também se traduziu na participação direta das temerárias viagens, nas quais os judeus se revelaram de vital utilidade, graças inclusive ao conhecimento que tinham das línguas e costumes de vários países.
Assim, também tomaram parte saliente na expedição que resultou no descobrimento do Brasil, pois que, na frota dirigida por Pedro Álvares Cabral, viajaram como conselheiros especialistas pelo menos dois judeus:
Mestre João, médico particular do rei e astrônomo equipado com os instrumentos de Abraham Zacuto, e que tinha como incumbência realizar pesquisas astronômicas e geográficas; e Gaspar de Lemos, também conhecido como Gaspar da Gama e Gaspar das Índias, intérprete e comandante do navio que levava os mantimentos, e justamente considerado pelos historiadores como co-responsável pelo descobrimento do Brasil.
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O judeu Gaspar de Lemos, primeiro explorador do Brasil
A importância que merece atribuir à participação de Gaspar de Lemos da expedição que descobriu o Brasil ressalta desde logo da circunstância de haver decorrido de uma ordem régia vazada em termos elogiosos, conforme refere Gaspar Correia nas "Lendas da Índia":
"El-Rei entregou ao Capitão-mór Gaspar da Gama (Gaspar de Lemos), o judeu, porque sabia falar muitas línguas, a que El-Rei deu alvará de livre e fôrro de sua comédia em terra dez cruzados cada mês, muito lhe recomendando que o servisse com Pedralves Cabral, porque se bom serviço lhe fizesse, lhe faria muita mercê; e porque sabia as coisas da Índia, sempre bem aconselhasse ao Capitão-mór o que fizesse, porque êste judeu tinha dado a El-Rei muita informação das coisas da Índia mòrmente de Gôa".
Divergindo embora os historiadores quanto à origem de Gaspar de Lemos e à sua vida até haver entrado em contato com os portugueses, a versão mais aceita é a que o dá como judeu nascido na Polônia, de onde foi expulso ou teve que fugir em 1450, quando criança, por não ter querido sua família converter-se ao cristianismo. Após uma longa peregrinação através da Itália, Terra Santa, Egito e vários outros países, teria resolvido permanecer em Gôa, na Índia, ali adquirindo prestígio e vindo a ocupar a função de capitão-mór de uma armada pertencente a um rico mouro na ilha de Arquediva.
Foi nessa ilha que Vasco da Gama, em 25 de setembro de 1498, ao regressar de uma viagem à Índia, conheceu Gaspar de Lemos, que se lhe apresentou a bordo como cristão e prisioneiro do poderoso Saboya, proprietário da ilha.
Não tendo conseguido burlar a perspicácia de Vasco da Gama, este depressa forçou-o a confessar que tinha sob suas ordens quarenta navios com instruções de Saboya para, na primeira oportunidade, atacar a frota lusitana.
Paradoxalmente, o incidente acabou gerando uma sólida amizade de Vasco da Gama por Gaspar de Lemos, a quem levou consigo para Portugal, onde o apadrinhou no batismo, deu-lhe o seu nome - pelo que passou a chamar-se Gaspar da Gama - e apresentou-o ao rei, D. Manoel, que o fez pessoa grata na côrte e o nomeou "cavalheiro de sua casa".
Na falta de elementos informativos seguros sobre o real papel desempenhado por Gaspar da Gama no descobrimento do Brasil, há quem admita inclusive que, apoiado na sua enorme experiência de viagens marítimas, tivesse ele intencionalmente induzido Pedro Álvares Cabral a afastar-se da África por acreditar na existência de outras terras na direção oeste da vastidão dos mares.
Seja como for, e ainda que sem fundamento tais suposições avançadas, permanece fora de dúvida que Gaspar da Gama fez jús ao epíteto de "o primeiro explorador da terra", que lhe dá Afrânio Peixoto, e mesmo ao de "co-descobridor do Brasil", que lhe atribui Alexandre von Humboldt.
O arrendamento do Brasil e o ciclo do pau-brasil
Logo nos primeiros anos após a descoberta do Brasil, arrefeceu o interesse do rei D. Manoal pela nova terra.
A expedição enviada à costa do Brasil no ano de 1501, e que regressou a Portugal em 1502, não apresentou resultados que fossem de molde a entusiasmar o Governo português, cúpido do mito do metal, pois no Brasil "nada fôra encontrado de proveito, exceto infinitas árvores de pau-brasil, de canafístula, as de que se tira a mirra e outras mais maravilhas da natureza que seriam longas de referir" (carta de Américo Vespucci a Soderini).
A côrte era nequele tempo verdadeiramente uma grande casa de negócio e, como, por um lado, estivesse fundamente absorvida com as dispendiosíssimas expedições à Índia, onde pretendia estabelecer um vasto império colonial, e, por outro lado, não enxergasse lucros apreciáveis e imediatos na exploração do Brasil, este ia sendo relegado a um simples ponto de ligação nas viagens à Índia, uma escala de refresco e aguada.
É assim de todo compreensível que, tendo o monarca recebido em 1502, de um consórcio de judeus dirigido pelo cristão-novo Fernando de Noronha, uma proposta para exploração da nova colônia mediante contrato de arrendamento, ele a aceitasse de bom grado; era a colonização do Brasil que se lhe oferecia, para ser feita a expensas de particulares, sem riscos e sem ônus ou quaisquer encargos para o erário público, e ainda com a possibilidade de lhe serem proporcionados lucros e de, sob certa forma, ser sustentada, ainda que fracamente, a autoridade portuguesa na nova possessão.
O acordo - que era um monopólio de comércio e de colonização - foi firmado em 1503, pelo prazo de 3 anos, e compreendia os seguintes principais compromissos dos arrendatários:
Enviar seis navios anualmente;
Explorar, desbravar e cultivar, cada ano, uma nova região de 300 léguas;
Construir nessas regiões fortalezas e guarnecê-las durante o prazo do contrato;
Destinar à Coroa, no segundo ano do arrendamento, a sexta parte das rendas auferidas com os produtos da terra, e, no terceiro ano, a quarta parte das mesmas.
Esse contrato foi, com algumas modificações, sucessivamente renovado em 1506, 1509 e 1511, estendendo-se até 1515.
No próprio ano do contrato inicial - mais precisamente, em maio de 1503 - desferrou de Portugal com destino ao Brasil a primeira frota, composta de seis navios, sob o presumível comando pessoal de Fernando de Noronha, tendo aportado em 24 de junho de 1503 a uma ilha até então desconhecida, que inicialmente recebeu o nome de São João, mais tarde trocado para "Fernando de Noronha" em reconhecimento aos méritos do seu descobridor, a quem acabou sendo doada pelo rei em 1504.
Nesse ano de 1504, os navios de Fernando de Noronha voltaram para Portugal com enorme carregamento de pau-brasil (também chamado "madeira judaica"), artigo então grandemente procurado nos mercados europeus para as indústrias de corantes.
Tão intenso se tornou o comércio do pau-brasil durante o arrendamento do Brasil a Fernando de Noronha - exportavam-se nada menos de 20.000 quintais por ano - e de tal importância econômica ele se revestiu, que deu origem à denominação de "ciclo do pau-brasil", sob a qual é conhecido aquele período, além de ter determinado a adoção do nome definitivo da terra - Brasil, em substituição ao de Santa Cruz (ou ainda Terra dos Papagaios), como era antes designada.
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Fernando de Noronha, o arrendatário judeu
Fernando de Noronha - também chamado Fernão de Noronha ou Fernão de Loronha - foi sem dúvida uma personalidade marcante na vida pública de Portugal.
Homem de extraordinária atividade e singular visão comercial, não tardou a entrosar muitos e vultosos negócios com a côrte, a qual não lhe regateou manifestações de reconhecimento pela sua destacada contribuição ao desenvolvimento comercial e marítimo do reino, concedendo-lhe vários títulos nobiliárquicos, afora a permissão de usar o brazão que lhe conferira a Coroa Inglesa.
Admite-se que Gaspar da Gama, ao voltar do Brasil, teria sugerido a Fernando de Noronha a conveniência de ser a nova colônia portuguesa utilizada como refúgio para os judeus perseguidos, e que essa sugestão teria induzido Fernando de Noronha a propor ao Governo o arrendamento do Brasil, visando assim facilitar a transmigração judaica.
Refere-se subsidiariamente, com base em documentos do arquivo da Torre de Tombo, que Fernando de Noronha, para ajudar o êxodo de numerosos judeus, comprava-lhes as propriedades que, de outro modo, teriam de perder.
Esses e outros indícios têm levado muitos historiadores a admitirem a origem judaica de Fernando de Noronha.
Que tenha ou não tenha sido Fernando de Noronha descendente de judeus, cristão-novo ou cripto-judeu, não envolve especial interesse. Importa antes a afirmativa, de consenso geral, de que, nas expedições comerciais do sindicato de Fernando de Noronha, judeus constituíam a maioria, cabendo-lhes assim o mérito de terem lançado no solo da nova pátria os primeiros marcos da civilização.
Expedições de guarda-costas
Tendem os historiadores a considerar que, até 1530, a Coroa pouco se importou com o aproveitamento do Brasil, não faltando mesmo quem tache, englobadamente, de "período da indiferença" toda a fase de 1500 a 1530.
Parece, entretanto, haver exagero em tal juízo, que só é justamente aplicável ao período 1500-1515, durante o qual, como visto no capítulo anterior, o Brasil chegou a ser arrendado, todo ele, a uma empresa comercial, dirigida por Fernando de Noronha.
Na verdade, o próprio fato de não ter sido prorrogado em 1515 o contrato de arrendamento com Fernando de Noronha - sem que jamais fosse dada qualquer explicação dessa solução de continuidade - leva a supor que o Governo de Portugal, na altura do ano 1515, despertara para a realidade: teria que tomar conta do vastíssimo território brasileiro se não quizesse dispor-se ao risco de perder o comércio com ele e mesmo a soberania.
Efetivamente, tal perigo era real, pois, àquele tempo, o litoral brasileiro era também freqüentado grandemente por franceses contrabandistas, que procuravam traficar com os indígenas, infringindo assim o monopólio português do pau-de-tinta.
Tudo parece confirmar, portanto, que tenha sido para obviar os aludidos perigos que o Governo de Portugal recorreu a um duplo programa de medidas: por um lado, organizou armadas, ditas de guarda-costa, em cujo comando se notabilizou Cristóvão Jaques, para reprimir o comércio dos entrepolos, sabendo-se de três expedições, entre 1516 e 1519, 1521 e 1523, e entre 1526 e 1528; por outro lado, tomou medidas de incentivo à colonização do Brasil, facilitando o embarque de todos quantos quisessem partir como colonos.
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Primeiras tentativas de colonização dirigida
Tem-se mesmo notícia de um decreto, baixado em 1516 por Dom Manuel I, rei de Portugal, segundo o qual todo aquele que emigrasse para o Brasil receberia, por conta da Coroa, o equipamento necessário para aí construir um engenho de açúcar, não se tendo o decreto descuidado de ordenar que fosse enviado um perito à nova colônia a fim de dar a necessária assistência.
O decreto dizia explicitamente em certo trecho: "Machadinhas, enchadas e outros instrumentos deverão ser dados às pessoas que vão popular o Brasil e um homem experiente e capaz deverá ser enviado ao Brasil para dar início a um engenho de açúcar. Deverá receber toda a assistência e materiais e instrumentos necessários para a construção do engenho".
A despeito das facilidades concedidas pelo Governo, sabe-se que eram todavia raros os colonos portugueses cristãos que quisessem emigrar para o Brasil - provavelmente em virtude da atração que sobre eles continuava a exercer a Índia - razão por que, ao lado de criminosos, condenados ou exilados, se destacaram os voluntários judeus, constituindo a maioria das levas imigratórias.
Ao que tudo indica, as providências tomada pelo Governo de Portugal trouxeram os resultados almejados, pois documentos de 1526 já se referem a direitos alfandegários pagos em Lisboa sobre açúcar importado do Brasil.
Participação dos judeus na introdução da cana de açúcar
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A suposição de que predominavam os judeus entre esses primeiros colonizadores do Brasil é corroborada pelo fato inconteste de que a indústria do açúcar já vinha sendo, desde muitos anos antes, a ocupação preferencial dos judeus das ilhas da Madeira e de São Tomé, de onde provavelmente foi a cana de açúcar transplantada para o Brasil.
Assim, pois, nesse período de transição, de 1515 a 1530, em que o Governo de Portugal fez os primeiros ensaios de controle e ocupação do território brasileiro, parece ter cabido aos judeus uma parcela fundamental no cumprimento dessa tarefa, como primeiros colonizadores do Brasil.
Expedição de Martim Afonso de Sousa
Verificando que as esparsas expedições de guarda-costa e os reduzidos ensaios de colonização, empreendidos no período de 1515 a 1530, eram insuficientes para afastar do Brasil os traficantes estrangeiros, já agora acrescidos de espanhóis, que, além de negociarem, mostravam intenções de aqui se estabelecerem, o rei de Portugal, D. João III, passou a uma ação decidida, visando a uma colonização sistemática em larga escala e pois a uma ocupação efetiva do território brasileiro.
Assim, em 1530, mandou ele aprestar uma armada com 400 homens, sob o comando do seu amigo Martim Afonso de Sousa, a quem nomeou "Capitão-mór e Governador das Terras do Brasil", dando-lhe autorizações especiais de muita amplitude, que abrangiam "o direito de tomar posse de todo o país, fazer as necessárias divisões, ocupar todos os cargos, exercer todos os poderes judiciários, civis e criminais".
A expedição de Martim Afonso de Sousa, dando cumprimento à sua missão, cobriu, em 2 anos, todo o litoral brasileiro, estendendo-se desde o Amazonas até o rio da Prata.
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Bahia e São Vicente
Merece notar, todavia, que Martim afonso de Sousa concentrou as suas atenções em dois pontos do litoral, pontos esses que perdurariam ao longo de toda a história do Brasil como focos de progresso: o Nordeste (Bahia-Recife) e o Sueste (Rio-S. Paulo).
Tal bicentrismo econômico e social, já pouco comum, raramente se estabelece tão cedo na formação de países como ocorreu no caso do Brasil, onde já em 1530 se delinearam os dois focos, que viriam exercer, com alternância de relevo, uma influência decisiva sobre a história econômica do país, até os nossos dias: o Nordeste predominando nos séculos XVI e XVII - ciclos do pau-brasil e do açúcar; o Sueste se sobressaindo no século XVIII, à época da mineração do ouro; um curto ressurgimento setentrional; e, finalmente, um predomínio meridional definitivo no século XIX, ao influxo da grande agricultura, especialmente da cultura do café; tudo isso, sem prejuízo das perspectivas de franco progresso que tornam a desenhar-se para o Nordeste, embora sem afetar o centro-sul.
Constituindo esse bicentrismo um fato em si notável, acresce, como aspecto paradoxal, a circunstância de que ambos os focos de progresso do país se localizaram longe, e um de cada lado, da região onde se deu o descobrimento.
Evidentemente, não pode satisfazer o argumento da maior proximidade da costa nordestina com relação à Europa, quando comparada com a região de Porto Seguro, pois inclusive não explicaria a preferência dada à região de São Vicente. Antes, deve-se admitir que havia no litoral sul da Bahia condições naturais adversas ao desbravamento e à colonização, não sendo de se excluir o fato de ser o clima daquele trecho da costa por demais chuvoso, quase não apresentando uma verdadeira estação seca no decorrer do ano.
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No que respeita à questão dos judeus do Brasil, a existência dos aludidos dois centros econômicos importantes merece dois reparos: um de caráter essencial, relativo às migrações internas dos judeus, os quais, sempre que acossados pelas perseguições no Nordeste, escolhiam em boa parte como refúgio a província de São Vicente; o outro, de caráter ilustrativo, consiste na circunstância de, em cada um dos aludidos pontos - Bahia e São Vicente (S. Paulo) - ter Martim Afonso de Souza encontrado um judeu influente - respectivamente, Caramuru e João Ramalho - que lhe prestasse decisivo auxílio na sua tarefa colonizadora.
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Capitanias Hereditárias
Tendo verificado, pelas sucessivas expedições dos anos anteriores, a grande extensão litorânea do Brasil e julgando os meios até então empregados insuficientes para assegurar a soberania portuguesa na colônia bem como para promover o seu povoamento, resolveu D. João III, em 1532, criar capitanias situadas ao longo da costa, medida que pôs em prática entre os anos de 1534 e 1536, mediante a divisão do litoral entre Maranhão e Santa Catarina em 14 lotes, de 10 a 100 léguas de costa, doando essas 14 capitanias hereditárias a 12 "donatários", escolhidos entre os nobres e mais valorosos vassalos, os quais deviam explorar e colonizar à sua custa as regiões que lhes haviam sido confiadas, tudo fazendo pelo seu rápido e seguro progresso.
Apresentou-se aí um novo motivo de estímulo para a vinda de judeus ao Brasil. Os donatários, desejosos de imprimir prosperidade às suas capitanias, porfiavam em atrair colonos patrícios e, ainda desta feita, os portugueses cristãos preferiam a Índia, cujos efeitos atrativos perduravam. Não restava aos donatários senão recorrer mais uma vez às famílias israelitas, às quais concediam direitos e vantagens iguais aos dos demais colonos.
Acrescia que os judeus se revelaram excelentes colonizadores: hábeis no trato com o gentio, a cujos hábitos e línguas logo se adaptavam, passando a contar depressa com a sua amizade.
Assim, as possibilidades de progresso das capitanias dependia em bom grau dos judeus, e, graças a esta circunstância, puderam eles gozar de ampla liberdade de costumes.
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Das capitanias, apenas duas se desenvolveram com resultados apreciáveis: Pernambuco e São Vicente, justamente nos já aludidos dois focos de progresso - Nordeste e Sueste.
Prosperidade excepcional conheceu a capitania de Pernambuco, superiormente dirigida por Duarte Coelho Pereira. Tendo verificado, pelas tentativas desenvolvidas nos anos precedentes, que a região era favorável à agricultura - fumo, algodão e cana de açúcar - especialmente para esta última, resolveu Duarte Coelho implantar o cultivo intenso e sistemático de cana e incrementar a indústria açucareira.
Nesse sentido, determinou ele o estabelecimento de grandes plantações de cana de açúcar e a construção de bom número de engenhos, mandando trazer, das ilhas da Madeira e de São Tomé, mecânicos, capatazes e operários especializados - que em sua maioria eram judeus - para dirigirem engenhos e impulsionarem a produção do açúcar.
Merece lembrar o nome do judeu Diogo Fernandes, que foi o maior técnico trazido por Duarte Coelho ao Brasil.
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Governos Gerais
Por vários motivos - tamanho excessivo dos territórios, falta de recursos para repelir os ataques dos selvagens (*) ou as invasões estrangeiras, falta de união entre os donatários - falhou totalmente o sistema de colonização das capitanias, mesmo com as exceções que representavam as de São Vicente e Pernambuco.
(*) Não seriam os antigos brasileiros, chamados pelo autor de "selvagens", que estariam tentando repelir a invasão dos estrangeiros portugueses?
Resolveu, então, D. João III, em 1548, criar um governo geral, com sede na Bahia, capaz de, em torno dele, reunir os esforços dos donatarios, dando-lhes "favor e ajuda" e deles recebendo auxílios, inclusive "gente e mantimentos".
Com a implantação do novo sistema de governo em 1549, não sofreu alteração a situação dos judeus no Brasil, muito embora na mesma ocasião se fixassem no país os jesuítas.
As condições eram tais, que estes se viram forçados a uma política de transigência e prudência, merecendo destacar a atividade do padre José de Anchieta e do primeiro bispo do Brasil - Pero Fernandes Sardinha - que se opuseram energicamente à instalação de tribunais inquisitoriais no país e a quaisquer outras formas de discriminação e perseguição.
Na contingência de ou perderem as esperanças de colonização do Brasil ou levarem a bom termo a missão de que se achavam incumbidas, as autoridades optaram pela última alternativa e, para tanto, tiveram que fazer tábua rasa das exigências do 5º Livro das Ordenações da Inquisição e negligenciar as reclamações dos Inquisidores.
Em 1554, escrevia o padre José de Anchieta "ser grandemente necessário que se afrouxasse o direito positivo nestas paragens". Semelhantemente, o bispo Pero Lopes Sardinha opinava que "nos princípios muitas mais coisas se hão de dissimular que castigar, maiormente em terra tão nova como esta".
Esse panorama de tolerância contrastava vivamente com a onda de ódio e discriminação que varria Portugal, onde crepitavam ininterruptamente as fogueiras dos autos de fé. É assim compreensível o efeito que sobre os judeus de Portugal deviam exercer as notícias ali chegadas sobre a vida judaica no Brasil. Tangidos pela fúria avassaladora de perseguição religiosa, sentiam-se os judeus de Portugal impelidos a tentar vida nova no Brasil, que se lhes afigurava como refúgio seguro, onde poderiam concretizar-se os seus anseios de liberdade, as suas esperanças de paz e de tranqüilidade.
Em tais condições, tudo favorecia o estabelecimento de uma intensa e ininterrupta corrente imigratória de judeus portugueses para o Brasil, onde, prosperando rapidamente, passaram a formar numerosos núcleos, dando mesmo início a uma vida coletiva que com o tempo viria assumir nitidamente características judaicas como o testemunham as esparsas referências encontradas sobre uma sinagoga que funcionava em uma casa de propriedade do cristão-novo Heitor Antunes, na cidade do Salvador - sede do Governo Geral - e sobre uma outra que fazia parte de um centro marrano em Camaragibe, capitania de Pernambuco, capitania esta que inclusive chegou a contar com um "rabi" - Jorge Dias do Caia, cristão-novo, calceteiro.
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As figuras histórico-lendárias de Caramuru e João Ramalho
Martim Afonso de Souza, ao deter-se, como já foi mostrado, com especial interesse nas regiões da Bahia e de São Vicente, teve a sorte de encontrar nesses dois pontos duas extraordinárias figuras, respectivamente Caramurú e João Ramalho, que lhe prestaram decisiva ajuda na sua função desabrochadora da colonização do Brasil.
Esses dois vultos, de vida semi-lendária, justamente considerados os primeiros colonizadores efetivos do país, apresentam viva semelhança quanto ao desenrolar das suas longas existências. Ambos aportaram à costa brasileira como náufragos, e na mesma época, por volta de 1510; ambos tiveram que se acomodar com os indígenas, aos quais acabaram impondo a sua autoridade: ambos integraram-se na vida dos selvícolas, inclusive casando com índias; um e outro realizaram uma prodigiosa obra de pacificação e aproximação entre os indígenas e os representantes do Governo de Portugal; finalmente, a ambos, é atribuída ascendência judaica.
CARAMURU
Acerca do aparecimento de Caramuru - cujo verdadeiro nome era Diogo Álvares Correia - existe a seguinte lenda: Em 1509 ou 1510, um navio português naufragou junto da atual Bahia de Todos os Santos. Quase todos os homens morreram afogados ou foram devorados pelos índios Tupinambás. Entre os poucos deixados para serem sacrificados posteriormente, em espetáculo festivo, estava Diogo Álvares Correia. Quando se aproximava a hora de ser ele sacrificado, uma idéia relampejante salvou-lhe a vida: Disparou Diogo o mosquete que retivera do naufrágio e matou um pássaro em pleno vôo. Os selvagens que presenciavam a cena foram tomados de grande terror, pondo-se a gritar: "Caramuru! Caramuru!", o que, na sua língua, significava "homem do fogo" ou "filho do trovão". (Há quem considere, talvez com mais acerto, que o apelido Caramuru se deriva do fato de ser esse o nome com que os indígenas designavam um peixe comum no Recôncavo da Bahia, a moréia, freqüentadora das águas baixas das locas, numa das quais teria sido encontrado Diogo Álvares depois do naufrágio). Passou logo Diogo Álvares Correia a ser altamente considerado pelos índios que, daí em diante, o respeitavam como a um chefe.
Mais tarde, casou-se Caramuru com Paraguassu, filha do chefe Taparicá, com o que se tornaram mais íntimas e sólidas as suas relações com os indígenas.
Quando da chegada de Martim Afonso de Souza, Caramuru serviu de intérprete e elemento de ligação entre esse primeiro Governador do Brasil e os chefes índios, acertando medidas para a introdução de trabalhos agrícolas na região com o aproveitamento de sementes trazidas por Martim Afonso.
Papel ainda mais saliente desempenhou Caramuru a partir de 1538, no período do primeiro Capitão-mór, D.Francisco Pereira Coutinho, cujo governo decorreu tumultuoso, em virtude de sucessivos desentendimentos entre os portugueses e os indígenas.
Tão grande se tornou a fama de Caramuru e tão alto o seu prestígio junto ao Governo de Portugal, que, ao ser nomeado, em 1548, o primeiro Governador Geral do Brasil - Tomé de Souza - o rei dirigiu-se em carta a Caramuru, pedindo sua imprescindível cooperação, nestes termos:
"Diogo Álvares. Eu, El-Rei, vos envio muito saudar. Eu ora mando Tomé de Souza, fidalgo da minha Casa, a essa Bahia de Todos os Santos... E porque sou informado pela muita prática que tendes dessas terras e da gente e costumes delas o sabereis bem ajudar e conciliar, vos mando que, tanto o dito Tomé de Souza lá chegar, vos vades para êle e o ajudeis no que lhe deveis cumprir e vos encarregar, porque fazeis nisso muito serviço... Sendo necessária vossa companhia e ajuda, encomendo-vos que ajudeis no que virdes que cumpre, como creio que o fareis. Bartolomeu Fernandes a fêz em Lisbôa a 19 de novembro de 1548. Rei".
Caramuru atendeu ao pedido do rei e tão proveitoso foi o auxílio prestado a Tomé de Souza que, em meio a uma plena cooperação dos índios, pôde rapidamente ser fundada, em 1549, a cidade do Salvador, Capital do País, no lugar onde anteriormente Caramuru estabelecera a aldeia "Vila Velha".
Quanto à origem judaica de Caramuru, na falta de quisquer provas, muitos historiadores a admitem levados por simples presunções, inclusive pelo fato de que, segundo muitas indicações, era tradicionalmente israelita o nome de família Álvares Correia.
JOÃO RAMALHO
Embora o historiador Rocha Pombo admita que João Ramalho tenha vindo antes da descoberta do Brasil, possivelmente em 1497, época da expulsão dos judeus de Portugal, a suposição mais aceita é a de ter ele aportado em 1512, salvo de um naufrágio na costa de São Paulo.
Tal como Caramuru no Norte, conseguiu João Ramalho captar depressa a amizade dos indígenas, merecendo especialmente a simpatia de Tibiriçá, o todo-poderoso chefe dos índios Guaianases, que, posteriormente, lhe deu em casamento sua filha Bartira.
Quando, em 1532, Martim Afonso de Souza alcançou São Vicente, lá encontrou João Ramalho que, havia vinte anos, vivia com os indígenas. Induzido pelas informações de Ramalho acerca das características do clima e do solo da região e estimulado pela situação estratégica da baía, Martim Afonso, com a ajuda substancial de João Ramalho, fundou então a primeira colônia agrícola, formada de duas povoações: São Vicente - na planície da ilha do mesmo nome, e Piratininga - na região serrana do continente, ao lado da aldeia de Santo André da Borda do Campo, onde vivia Ramalho com sua família e seus aliados.
Em consideração aos relevantes serviços prestados por João Ramalho à capitania de São Vicente, Martim Afonso conferiu-lhe o título de "guarda-mór", deu-lhe poderes sobre toda a terra de Piratininga e, finalmente, antes do seu regresso para Lisboa, elevou-o ao cargo de "Capitão-mór".
No que toca à origem judaica de João Ramalho, abundam as conjeturas.
Há, de um lado, os que se associam à ilação feita da circunstância de que nunca perticipara João Ramalho dos exercícios religiosos dos jesuítas e de que, ao cair seriamente doente, recusou as consolações religiosas, fatos estes que são interpretados como indicando pertinência judaica.
Entretanto, a maior parte dos adeptos da estirpe israelita de Ramalho liga a sua argumentação ao sinal, em forma de um ferradura, que João Ramalho incluía na sua assinatura, entre o prenome e o nome de família. Sobre o assunto, existe uma verdadeira literatura, sendo as mais desencontradas as interpretações dadas com respeito ao mencionado símbolo. Enquanto alguns o consideram um mero ornamento ou simples talismã, e outros o julgam um hieroglifo que testemunharia a origem egípcia de Ramalho, a maioria o qualifica como letra hebraica; mesmo estes últimos, porém, divergem entre si, achando uns que a letra é um "caf", representando a letra inicial da palavra "cohen" (sacerdote) ou da palavra "cabir" (forte) ou ainda da palavra "cafui" (cristão-novo), ao passo que outros consideram a letra como sendo um "bes", que seria a abreviação da palavra "ben" (filho), significando a assinatura - "João, filho de Ramalho" - e, finalmente, alguns admitem que se trate de um "reich", letra inicial do nome Ramalho.
Como visto, a questão constituiu-se em objeto de amplas discussões e análises de caráter exegético, cujo desenvolvimento evidentemente não apresenta nenhum interesse especial a não ser o incentivo ou a satisfação da curiosidade sobre a ascendência étnica ou religiosa de João Ramalho, esse inconfundível personagem que tanto contribuiu para a colonização de São Vicente.
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O papel dos judeus no período de 1530 a 1570
O período de 1530 a 1570 é talvez o único em toda a história dos primeiros quatro séculos do Brasil, do qual se pode dizer que, no seu decorrer, a evolução da vida judaica se entrosou plenamente com a do país, numa cooperação ativa, uma coexistência pacífica e uma integração harmoniosa.
Para a formação do Brasil, esse período foi decisivo. No seu transcurso, fez-se sentir o poderio da metrópole, primeiro através das capitanias hereditárias e depois por intermédio do Governo Geral, que unificou politicamente o território, exercendo o poder da Coroa sobre o dos capitães-móres; simultaneamente, a língua portuguesa se impôs como elemento de coesão entre os núcleos esparsos do povoamento, coesão essa reforçada pela união espiritual desenvolvida pela extraordinária atividades dos jesuítas.
E é da maior importância que, durante esse excepcional período de expansão, os judeus tenham desempenhado um papel sobremodo honroso e atuante na vida econômica e social do país.
A conjuntura em 1570
No período da colonização sistemática (1530-1570), criaram-se, como ficou visto, todas as condições favoráveis à eclosão de uma sólida comunidade israelita no Brasil:
a) - Suficiência numérica. - O número dos judeus, graças à intensa imigração e ao crescimento netural, alcançou uma proporção razoável em confronto com a população geral, o suficiente para se opor ao risco de assimilação.
b) - Liberdade de culto. - Havia tolerância e liberdade bastantes para que os judeus mantivessem abertamente suas práticas religiosas, ainda que, como é de se supor, algo sincretizadas com o catolicismo.
c) - Refrescamento imigratório. - As sucessivas levas imigratórias de judeus portugueses exerciam um papel reativante, contra-aculturativo.
Graças a tal conjuntura, estavam se desenhando perspectivas seguras para que, nos fins do século XVI, se corporificasse no Brasil uma coletividade judaica, numerosa e estável.
Vários fatores adversos intervieram, porém, para tumultuar esse processo em marcha.
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Dificuldades de emigração judaica de Portugal
Nas vizinhanças de 1570, sobreveio uma alteração na política emigratória de Portugal. Às normas liberais até então vigorantes substituiu-se uma longa série de medidas restritivas, entremeadas de permissões, condicionadas e efêmeras, concedidas a troco de vultosas somas pecuniárias.
Assim, em 30 de junho de 1567, na regência do Cardeal D. Henrique, foi expedido o primeiro alvará qie proibia a saída do reino, por mar ou por terra, a todos os cristãos-novos.
Em 1573, foi essa proibição reforçada por D. Sebastião.
E, embora quatro anos mais tarde, em 1577, o próprio D. Sebastião o revogasse, mediante a contribuição de 250.000 cruzados para o custeio da malograda expedição à África, voltou o alvará a ser revigorado em janeiro de 1580, pelo Rei-Inquisidor D. Henrique.
Nesse mesmo ano de 1580, perdeu Portugal sua independência para a Espanha e, em 1587, foram confirmadas todas as leis anteriores sobre a proibição da saída de judeus.
Em julho de 1601 - dada a péssima situação do erário castelhano - foi, por Carta-Patente, concedida aos judeus licença para sair do reino, a troco de 200.000 cruzados.
Mas, nove anos mais tarde, em março de 1610, foi promulgada uma lei que revogou a concessão de saída, apesar das promessas de que a proibição não mais se repetiria.
Somente em 1627, voltou a ser concedida aos judeus uma permissão condicionada de saída e, finalmente, em 1629, a lei estabeleceu definitivamente a livre saída do reino, benefício para cuja concessão tiveram os judeus que contribuir com a quantia de 250.000 cruzados.
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Tais reviravoltas na política emigratória eram determinadas - abstração feita das freqüentes incompatibilidades entre a igreja e a coroa - pela situação precária das finanças do país, que impelia ao recurso da extorsão de dinheiro judaico, em alternância com a necessidade de reter os judeus no país, eis que, emigrando para outros países, eles concorriam para sua prosperidade, enquanto se depauperava o reino, como chegou a confessá-lo o Conselho de Fazenda nestes termos: "...estar o comércio empobrecendo e terem os homens de mais cabedal deixado o País".
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Apesar de todas as restrições mais acima enumeradas, é fora de dúvida que o êxodo dos judeus de Portugal em busca do Brasil prosseguia intenso. Tais e tão crescentes eram as perseguições a que os judeus se viam expostos, que certamente eles haviam de encontrar meios de contornar as proibições, nos períodos em que não o conseguiam oficialmente através das já mencionadas contribuições de vulto.
Na última década do século XVI, a corrente emigratória dirigiu-se predominantemente para a França e sobretudo aos Países Baixos, onde florescia o comércio e reinava tolerância religiosa, o que permitiu a célere formação de uma ampla comunidade israelita, com centro na cidade de Amsterdã, justamente cognominada de "Nova Jerusalém".
Mas, mesmo nesse período, é de se admitir que continuava a vinda de judeus portugueses ao Brasil. Há indícios de que, de um modo geral, os países europeus, e em especial a Holanda, eram preferidos pelos emigrantes mais abastados, enquanto ao Brasil se dirigiam os pertencentes às camadas sociais mais modestas, sobretudo os que tinham propensão à agricultura.
Fosse como fosse, o certo é que essa simultânea emigração de judeus portugueses, para o Brasil e os Países Baixos, propiciou o estabelecimento de um elo comercial e afetivo entre os judeus brasileiros e holandeses, o qual nos anos seguintes veio a ter importante repercussão político-social, decorrente do conflito de consciência em que se viram lançados os judeus brasileiros em virtude do triângulo Brasil-Portugal-Holanda que passou a dominar os seus interesses individuais e suas aspirações coletivas.
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Os tentáculos inquisitoriais no Brasil
Como visto acima, as sucessivas restrições à emigração dos judeus de Portugal, as quais cobriram todo o período de 60 anos (1570-1630), não foram de molde a afetar substancialmente a entrada contínua de judeus no Brasil, onde prosseguia crescendo seu número e sua prosperidade.
Entretanto, fatores outros passaram a toldar a vida judaica no Brasil, até então tranqüila e serena. Começaram a surgir sinais indiscutíveis de restrição à liberdade, que com o tempo se reforçaram, fazendo definhar a vida coletiva judaica, justamente quando parecia aproximar-se a sua consolidação, e forçando os judeus a retornarem, qual na sua mãe-pátria, a uma vida disfarçada, de forma a guardarem as tradições apenas no recesso da família e assim mesmo com a devida cautela.
A primeira manifestação de intolerância verificou-se logo em 1573, na cidade do Salvador, onde foi instalado um auto de fé. Paradoxalmente, mas talvez de propósito, não era israelita a primeira vítima; era um francês que, acusado de heresia, foi condenado e queimado vivo.
O balão de ensaio não surtiu, porém, os esperados efeitos. Verificado que os espetáculos dos autos de fé em si não exerciam nenhuma emoção especial sobre os selvícolas - habituados, de resto, à incineração de prisioneiros - e que, por outro lado, permanecia incompreensível para os gentios que se queimassem pessoas vivas por respeitarem e servirem outro Deus, o que os levava a simpatizarem com os prisioneiros da Inquisição, esta encerrou brevemente a sua nefanda tentativa.
Pôde assim restabelecer-se o ambiente de tolerância, aliás com o franco apoio da opinião pública.
Entretanto, em 1591, acabou vindo ao Brasil o Santo Ofício, sendo essa missão conhecida como "Primeira visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça".
Na Bahia, permaneceu a Inquisição durante dois anos, até 1593, seguindo então o Inquisidor para Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, onde ficou até 1595.
Decorridos 25 anos, a Bahia, então capital do Brasil, foi, entre 11 de setembro de 1618 e 26 de janeiro de 1619, alvo de uma nova visitação do Santo Ofício, que ficou a cargo do Inquisidor de Évora, o bispo D. Marcos Teixeira.
Diante desta segunda comissão inquisitorial, foram denunciados nada menos de 90 marranos, entre eles muitos senhores de engenhos de açúcar.
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Migrações internas
Merece notar que o Santo Ofício limitou suas visitas ao Nordeste, jamais tendo tentado instalar-se no Sueste do país, talvez para não se expor a um fracasso completo, dado o ambiente hostil que certamente ali iria encontrar.
Essa ciscunstância teria propiciado o primeiro movimento migratório interno dos judeus do Brasil.
É provável que, mesmo anteriormente, se viesse processando, em condições normais, a disseminação dos judeus pelo território brasileiro, e isso sobretudo por motivos econômicos, pois não se ocupavam os judeus somente de agricultura; o seu senso inato de mobilidade e de ubiqüidade certamente os levara a monopolizar o comércio entre os núcleos rurais e urbanos, assim penetrando nas mais recônditas partes do país.
Mas essas haviam de ser migrações lentas, centrífugas e de caráter voluntário.
Já por ocasião dos inquéritos da Inquisição no Nordeste deve ter sido de forma forçada, e em mais rápido rítmo, a saída de judeus daquela região em direção da parte mais liberal do país, onde não medravam preconceitos, e que era sobretudo a capitania de São Vicente - justamente o segundo foco de progresso do país, como ficou indicado páginas atrás.
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Intercâmbio judaico Brasilo-Holandês
Não se sabe ao certo dos motivos das visitações do Santo Ofício ao Brasil, pois tornaram os inquisidores ao reino sem que viessem a lume os efeitos das sindicâncias.
É todavia de se presumir que tivessem fundo político, receosa como se achava a Coroa quanto aos negócios dos cristãos-novos com a Holanda e quanto a certos indícios de que o inimigo encontraria no Brasil aliados e guias.
A conjetura tinha certo fundamento, e os registros da visitação de 1618-1619 revelaram, efetivamente, que, durante cerca de 25 anos, os marranos do Brasil vinham se mantendo em constante comunicação com os judeus confessos de Flandres e, em especial, com os ex-marranos portugueses que tinham escapado para Amsterdã.
As susteitas foram reforçadas mais tarde com a criação da Companhia da Índias Ocidentais, aprovada em 1621 pelo governo holandês. Em face do programa e dos poderes dessa Sociedade - entre os quais se incluíam os de nomear e depor governadores, fazer tratados de aliança com os indígenas, erquer fortalezas e construir colônias - e da circunstância de que o capital da empresa era constituído em grande parte com os cabedais de judeus hispano-portugueses, era lógico desconfiar que o íntimo intercâmbio entre os judeus do Brasil e da Holanda pudesse vir a ajudar os propósitos conquistadores dessa última.
E a primeira prova real da justeza desse receio foi de fato obtida em 1624, quando os holandeses invadiram e conquistaram a cidade do Salvador, capital do Brasil. A população israelita, que na Bahia era então mais numerosa do que em qualquer outra cidade do País, submeteu-se alegremente aos conquistadores, com os quais haviam vindo muitos judeus. Refere-se que cerca de 200 cristãos-novos aceitaram desde logo o jugo holandês e passaram a induzir os demais habitantes de origem judaica a seguirem o seu exemplo.
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O complexo judaico no período 1570-1630
Esse longo período de 60 anos foi altamente favorável ao desenvolvimento e à prosperidade da população judaica do Brasil, mas, em contraste com o período anterior (1530-1570), ele não constituiu uma fase tranqüila de evolução.
Foi um período essencialmente tumultuário, cheio de sobressaltos e de vai-vens que, se não impediram o progresso material dos judeus - os quais em 1600 chegaram a possuir uma ponderável porcentagem dos 120 engenhos então existentes no Brasil - solaparam todavia a sua organização coletiva, que vinha tomando corpo, e feriram fundo as suas esperanças de liberdade. Os fatos e circunstâncias característicos do período em questão podem assim ser recapitulados:
- Perseguição cada vez maior aos judeus em Portugal e restrição à sua emigração para o Brasil, o que provavelmente provocou entre os judeus brasileiros um ânimo adverso para com a mãe-pátria;
- Surgimento de um auto de fé em Salvador (Bahia), embora sem conseqüências sensíveis; bastante, porém, para suscitar entre os judeus brasileiros a idéia de que a nova pátria não estava imune a preconceitos e a eventuais perseguições;
- Vinda de 2 comissões da Inquisição de Portugal, em 1591-95 e 1618-19, com os respectivos processos de acusações e denunciações, o que deve ter levado os judeus brasileiros a um retrocesso na evolução da sua vida coletiva e a uma limitação das práticas religiosas ao âmbito da família e a formas disfarçadas;
- Primeira migração forçada de judeus dentro do país, por motivos de perseguição religiosa - do Nordeste para a capitania de São Vicente;
- Fracasso da invasão na Bahia, em maio de 1624, pois a conquista não chegou a durar um ano, terminando com total derrota dos holandeses em 1º de maio de 1625.
Em decorrência de todos esses fatos, os judeus do Brasil foram sendo, cada vez mais, dominados por um sentimento de frustração, vendo se esboroarem as suas ilusões e esperanças quanto à segurança e tranqüilidade do seu porvir na nova terra.
Desiludidos com a mãe-pátria - onde seus parentes e correligionários sofriam privações e perseguições tremendas - e já agora decepcionados com a própria Nova Lusitânia, onde tudo a princípio parecia sorrir-lhes, mas onde passavam a avolumar-se indícios hostís, os judeus do Brasil, instintivamente, na procura de algum outro ponto de apoio, sentiam-se impelidos a um intercâmbio cada vez mais estreito com os judeus portugueses residentes na Holanda, onde a liberdade, nos fins do século XVI, era absoluta em todos os terrenos.
Era a possibilidade que eles vislumbravam de vir a ser melhorada a sorte dos judeus do Brasil graças à intervenção de uma outra potência - no caso a Holanda!
Fases da comunidade judaica sob a ocupação holandesa
A esperança dos judeus no Brasil de que sua sorte melhoraria graças a alguma forma de intervenção holandesa não falhou. Finalizando uma série de tentativas frustradas com que visavam tornar a conquistar a Bahia no decorrer do ano de 1627, os holandeses, após verificarem que a façanha seria mais exeqüível em Pernambuco - ponto pior defendido e mais fácil de ser depois fortificado - atacaram-no em 15 de fevereiro de 1630 com uma poderosa esquadra de 70 navios, tripulada e guarnecida por 7.000 homens, iniciando assim a ocupação do Nordeste brasileiro, a qual iria durar até 1654, centralizada na próspera capitania de Pernambuco.
Esse período singular da vida judaica no Brasil é de ser considerado em inteira conexão com a ocupação holandesa, com ela tendo começado e também tido fim, quase abruptamente.
Mas, o que impressiona não é simplesmente essa coincidência, senão a rapidez com que os judeus lograram constituir no Nordeste do Brasil uma comunidade das mais florescentes do mundo de então. De fato, cabe descontar a tumultuada fase de 1630 a 1635, em que se processou a consolidação da conquista e que foi assinalada por lutas incessantes, que a resistência tenaz dos pernambucanos tornou inevitáveis; outrossim se deve deduzir a fase de decadência do domínio holandês, a qual se estendeu de 1645 a 1654; resta, assim, o período de 1635 a 1644, que abrangeu o governo liberal e progressista do Conde Maurício de Nassau, espaço esse de apenas 10 anos, o qual, entretanto, bastou aos judeus para alçarem a um nível excepcional a sua vida econômica, social e cultural, dentro do arcabouço de uma organização coletiva.
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Aspectos da atividade econômica dos judeus
A ocupação holandesa do Nordeste do Brasil introduziu profundas modificações na vida econômica dos judeus, alargando o seu âmbito, diversificando os seus ramos ocupacionais e erguendo a sua potencialidade a um grau singular.
Antes da conquista holandesa, os judeus exerciam, em larga escala, as atividades de plantadores de açúcar, mas os donos de engenho representavam apenas uma percentagem razoável, e os magnatas não passavam de uma escassa minoria. No mais, a colônia judaica era constituída de pequenos comerciantes e de profissionais manuais mal remunerados.
Com o advento dos holandeses e a decorrente implantação de uma grande tolerância religiosa, o panorama foi se alterando. Levas ininterruptas e judeus afluiam a Pernambuco de vários países, especialmente da Holanda, trazendo cabedais, experiência comercial e um prodigioso espírito de realização.
Esses judeus vindos da Holanda - e que em grande parte eram ex-refugiados de Portugal, Espanha e França - tinham a vantagem de falar vários idiomas: espanhol, francês, ladino e holandês, afora o mais importante - português, que era a língua falada no Brasil; era-lhes fácil assim servir de intérpretes para os 7.000 homens do exército e da marinha holandeses, constituídos de mercenários - holandeses, ingleses, franceses, alemães, polacos e outros - que não falavam o português.
De simples intérpretes, foram rapidamente passando a cambiadores e comerciantes, de um modo geral a intermediários, profissão que se tornou quase monopólio dos judeus, com os quais não podiam competir os pequenos negociantes e operários brasileiros e flamengos.
Por volta de 1638, aproveitando-se do confisco dos engenhos pertencentes aos portugueses, feito pelos governantes holandeses, que puseram essas propriedades em hasta pública, os judeus fizeram grandes aquisições por preços irrisórios.
Não tardou assim que os judeus se tornassem grandes proprietários urbanos e rurais, controlando a vida econômica da Nova Holanda; merece lembrar, como testemunho disso, que a principal rua do Recife era conhecida como "rua dos Judeus" (depois de 1654 - "rua da Cruz") e o porto era chamado "cais dos judeus".
Um documento da época, vazado em linguagem pitoresca, ainda que algo exagerada, dá um retrato expressivo da rapidez com que se efetuou a ascensão econômica dos judeus no Brasil Holandês:
"Haviam vindo com os holandeses, quando tomaram a Pernambuco, alguns judeus, os quais, não trazendo mais do que um vestidinho roto sobre si, em breve se fizeram ricos com seus tratos e mofatras, o que sabido por seus parentes, que viviam em Holanda, começaram a vir tantos, e de outras partes do Norte, cada um com suas baforinhas, que em quatro dias se fizeram ricos e abundantes, porque, como os mais deles eram portugueses de nação e haviam fugido de Portugal por temor da Santa Inquisição, e juntamente sabiam falar a língua flamenga, serviam de línguas entre os holandeses e portugueses e por esta via grangeavam dinheiro, e como os portugueses não entendiam os flamengos, nem eles aos portugueses, e não podiam negociar nas compras e vendas, aqui metiam os judeus a mão comprando as fazendas por baixo preço e, logo, sem risco nem perigo, as tornavam a revender aos portugueses com o ganho certo, sem trabalho algum".
A prosperidade dos judeus na Nova Holanda não se processou todavia sem incômodos. O acréscimo do seu bem estar e o desenvolvimento extraordinário do seu poderio econômico despertaram inveja e geraram uma perigosa inimizade da concorrência cristã.
Se tais ondas de ódio coletivo não tiveram maiores conseqüências, o fato se deve à ação equilibrada de Maurício de Nassau, que, durante a sua regência de sete anos, trabalhara honestamente para fazer a união de todas as oposições religiosas na colônia, distribuindo justiça imparcial: era o primeiro a exigir reparação quando provadas infrações legais cometidas por judeus, mas também sabia defendê-los com o seu braço poderoso quando os via vítimas de atiçamento.
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Aspectos sócio-culturais da vida judaica. Isaac Aboab da Fonseca
Sob o domínio holandês, criaram-se no Nordeste do Brasil todas as condições favoráveis à eclosão de uma sólida comunidade judaica com vida coletiva de características próprias: a)liberdade de culto; b)suficiência numérica e concentracional; c)continuidade imigratória; d)superioridade cultural.
a) - LIBERDADE DE CULTO. - Já quando de sua organização, a Companhia das Índias Ocidentais havia declarado que toda e qualquer crença seria respeitada na Nova Holanda. Ao assumir o governo o conde Maurício de Nassau, a promessa, que já vinha sendo posta em prática parcialmente, tornou-se realidade.
No dizer de Hermann Wätjen: "Aos judeus o Conde tolerante permitiu guardarem a santidade do sábado, havendo feito promulgar que os cristãos dos dois credos deveriam considerar o domingo como o dia do Senhor. No mais, o Governador tinha o ponto de vista de deixar cada um ser feliz da sua forma em Pernanbuco".
Estava, assim, implantada a condição básica para que pudesse desabrochar uma comunidade judaica no Brasil holandês.
b) - SUFICIÊNCIA NUMÉRICA E CONCENTRACIONAL. - A tolerância religiosa, embora indispensável, não era condição bastante. Fator complementar, da maior importância, foi o crescimento numérico suficiente da população judaica e sua concentração preponderante numa área restrita, tendo a cidade do Recife como centro.
Trata-se aí, efetivamente, de duas circunstâncias essenciais para que um grupo étnico ou cultural logre conservar as características próprias, sem se deixar absorver pelo meio dominante.
E o certo é que, sob o domínio holandês, a população judaica cresceu desmesuradamente, concentrando-se em Recife, bastando dizer que, enquanto essa cidade, em 1630, apenas possuía 150 casas, já em 1639 ali existiam 2.000. Havia judeus em tamanho número que, à primeira vista, se tinha a impressão de uma cidade puramente judaica.
Esse crescimento populacional dos judeus do Brasil resultou principalmente da intensa imigração que se operou naquele período, vindo para o Brasil - qual para uma terra da Promissão - judeus de vários países, sobretudo da Holanda, de cujo porto Amsterdã partiam continuamente naus carregadas de judeus e conversos, sendo que só de uma feita, em 1642, embarcarm 600. A intensidade da emigração de judeus dos Países Baixos para o Brasil ressalta de uma nota escrita por Francisco de Souza Coutinho, embaixador de Portugal na Holanda, em 1644, ao conde de Vidigueira: "Esta terra é a mãe dos cristão-novos, e daqui vão para o Brasil".
Aos imigrantes do estrangeiro, cabe ainda acrescentar os judeus que, de outras partes do próprio Brasil, vinham para Pernambuco, em busca de liberdade religiosa.
Não se sabe exatamente o número de judeus no Brasil holandês, inclinando-se a maioria dos historiadores para a elevada cifra de 5.000.
Ainda que esse numero seja exagerado - parecendo mais prudente adotar o de 1.500 - o certo é que, no apogeu do desenvolvimento da comunidade judaica da Nova Holanda, os judeus representavam cerca de 50% de toda a população civil, que então orçava em 3.000.
Para se ter uma idéia da importância de que, naquele tempo, se revestia um núcleo israelita de 1.500 almas, basta lembrar que a própria comunidade judaica de Amsterdã, no seu pleno fastígio, não era mais numerosa.
c) - CONTINUIDADE IMIGRATÓRIA. - Trata-se de um fator supletivo, de grande ação anti-assimilatória. E o que se verificou, durante mais de dois decênios de domínio holandês, foi justamente - em vez de um restrito número de imigrações maciças - uma ininterrupta entrada de judeus, refrescando permanentemente o espírito de grupo dos judeus já aqui residentes.
d) - SUPERIORIDADE CULTURAL - Igualmente, constitui fator contra-aculturativo a superioridade cultural do grupo considerado, em relação ao meio dominante. E, no caso em foco, não resta dúvida de que os judeus imigrados - especialmente os oriundos da Holanda - eram elementos de expressão cultural bastante superior à existente no Brasil naquela época.
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Em face das condições favoráveis acima apontadas, é compreensível que fosse evoluindo a passo rápido a vida social dos judeus em Pernambuco, até assumir a forma de uma coletividade organizada.
Nesta altura, havia duas sinagogas - uma no Recife, a outra em Santo Antônio - e um cemitério próprio, na Boa Vista. Possuiam os judeus pernambucanos uma comunidade sagrada - Cahal Cadoch - chefiada por uma diretoria, sendo conhecidos os componentes de uma delas: David Senior Coronel, Dr. Abraham de Mercado, Jacob Mucate e Isaac Castanho.
Havia ainda a Congregação Sur Israel do Recife, que mantinha um Pinkes (livro de atas) e baixava hascamot (regulamentos). Assim, os "regulamentos" revistos em 1648 estabeleciam que todos os judeus residentes no "Estado do Brasil" e todos os futuros imigrantes tornavam-se automaticamente membros da Comunidade Judaica e deviam inscrever os seus nomes no Pinkes como demonstração de que aceitavam os regulamentos.
Também na ilha de Itamaracá formou-se uma comunidade presidida por um rabino próprio, Jacob Lagarto, que foi, aliás, o primeiro escritor talmúdico na América do Sul.
Em tal ambiente de segurança e de organização coletiva, a consciência de grupo avultou, chegando as festas judaicas a serem celebradas publicamente com procissão nas ruas.
O auge desse desenvolvimento sócio-cultural - de fundo predominantemente religioso - foi atingido pelos judeus de Pernambuco em 1642, quando providenciaram a vinda da Holanda de um insigne líder espiritual, Isaac Aboab da Fonseca, que veio acompanhado do "hazan" Moisés Rafael de Aguiar.
ISAAC ABOAB DA FONSECA. Era Isaac Aboab originário de Portugal, de onde emigrara para Amsterdã aos 7 anos. Nesta cidade, por suas qualidades excepcionais, fez brilhante carreira, alcançando altas posições, inclusive a de membro do rabinato.
Quando se tratou de enviar um chefe espiritual para o Brasil, foi ele o escolhido pelo presidente da comunidade holandesa, o que, aliás, serve para corroborar a importância que então se atribuia à coletividade israelita do Nordeste brasileiro.
Ao chegar ao Brasil, já encontrou Aboab uma vida judaica florescente, um campo amplo para aplicar a sua experiência e o seu alto saber.
Desdobrou-se ele em várias atividades, destacando-se os seus admiráveis discursos sobre leis e costumes judaicos, cujo êxito era devido não só aos seus vastos conhecimentos, senão ainda à sua extraordinária eloqüência e ao fato de dominar a língua portuguesa.
Ao lada das suas atividades rabínicas, continuou Isaac Aboab no Brasil os seus trabalhos literários, tendo escrito, em colaboração com o rabino Moisés Rafael de Aguiar, a obra "Miimei Iehuda", que trata da vida cultural dos judeus brasileiros.
Permaneceu Isaac Aboab fielmente à testa da comunidade brasileira até a sua "débâcle" em 1654.
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Decadência e "débâcle"
Em 1645, começa a entrar em declínio a vida judaica no Brasil. A bem dizer, já a data de 6 de maio de 1644 - em que Maurício de Nassau, após uma série de desinteligências com a Companhia das Índias Ocidentais, deixa o governo - marca o início simbólico dessa fase que iria terminar um decênio mais tarde com a melancólica liquidação da pujante comunidade que se havia implantado - aparentemente com tanta solidez - no Nordeste do Brasil.
A saída de Nassau - esse espírito culto e apaixonado pelos supremos ideais políticos, que se afeiçoara ao Brasil, onde, não obstante as violências da guerra, tentara introduzir adiantados processos administrativos e instituições liberais - favoreceu sobremodo o nascimento da insurreição pernambucana, pois, em substituição àquele notável estadista que havia grangeado as simpatias gerais da população, ficara a administração do domínio holandês entregue ao Supremo Conselho do Recife, composto do negociante Hamel, do ourives Bass e do carpinteiro van Bollestraten, indivíduos completamente incapazes para a missão.
Inutilmente, Nassau, no seu testamento político, havia apontado a tolerância como uma das diretrizes mais importantes do Governo. O triunviriato que o sucedeu implantou um regime opressor e tirânico, inclusive passando a tratar os católicos como infiéis, dificultando aos seus sacerdotes a celebração de missas e expulsando os frades do país, por suspeitá-los beleguins do Governador da Bahia.
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Os judeus de Pernambuco cedo deram-se conta do que a nova situação viria representar para eles. Previram facilmente que, sem a política tolerante e apaziguadora do príncipe de Nassau, seria inevitável o enfraquecimento e a queda do domínio holandês, ficando eles irremediavelmente expostos à sanha dos insurrectos pernambucanos.
Em vista disso, iniciaram o processo de retorno à Holanda, tendo emigrado em alguns anos cerca de metade da população judaica, sobretudo os negociantes mais ricos. O comércio começou então a decair, o dinheiro passou a escassear e as tropas já se recusavam a combater; ainda mais - mediante suborno, os soldados holandeses desertavam com freqüência para o exército português, que, em verdadeira antítese, possuía moral elevadíssima.
Para agravar a situação, a Holanda, que então se achava em guerra com a Inglaterra, não podia prestar a necessária ajuda à colônia decadente e os reforços, que todavia lhe mandava, eram insuficientes e extemporâneos.
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Embora a conjuntura se apresentasse nitidamente desfavorável aos holandeses, os judeus que permaneceram em Recife - cerca de 700 - resignaram-se a aguardar até o último instante o desfecho da luta, ficando fielmente ao lado dos holandeses e com eles compartilhando de todos os horrores do longo cerco da cidade.
O que os sitiados tiveram de suportar nesse período foi descrito de modo comovente pelo chefe da comunidade israelita, rabino Isaac Aboab da Fonseca, que assistiu, do início ao fim, ao combate desesperado:
"Livros não seriam capazes de descrever os nossos sofrimentos. O inimigo espalhava-se nos campos e no mato, espreitando aqui despojos e ali vidas. Muitos de nós morreram de espada na mão, outros por carência de víveres. Jazem agora na terra fria. Nós, que sobramos, estávamos expostos a morrer de qualquer maneira. Os que antes estavam habituados a iguarias, sentiam-se felizes quando conseguiam pão seco o mofado para acalmar a fome".
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Sobre a atitude de inteira fidelidade aos holandeses, assumida pelos judeus remanescentes de Recife, não faltam pronunciamentos desfavoráveis. Há, com efeito, quem a considere uma espécie de deslealdade ou ingratidão ao Brasil. É um erro que cabe corrigir.
Merece notar desde logo que o Brasil não estava propriamente em jogo. Aos judeus impunha-se escolher entre dois ocupantes, entre duas potências estrangeiras: Portugal e Holanda. De um lado - o país que perseguia, expulsava e queimava vivos os judeus; do outro - a nação que agia para com os judeus, tanto na metrópole como nas colônias, com a maior tolerência religiosa. De um lado - a inquisição e os autos de fé; do outro - a liberdade de consciência.
Entre dois senhores - não havia outra possibilidade de escolha!
E, aliás, procedendo como procederam, os judeus guardaram uma linha de impecável coerência. Eles que, por todas as formas a seu alcançe, ajudaram os holandeses a conquistar o nordeste brasileiro, na esperança, não desmentida, de obterem no Brasil um lar tranqüilo, não poderiam abondonar os aliados e protetores da véspera, no momento em que a sorte começava a faltar-lhes.
Tal como souberam os judeus da Nova Holanda armar os seus sonhos - que chegaram a ver em boa parte realizados - também mostraram saber suportar a sua ruína, lutando bravamente até a queda final da sua cidadela, com o que se haveria de encerrar o ciclo mais fastigioso, embora efêmero, da vida judaica no Brasil colonial.
O grande êxodo
Com a queda de Recife e subseqüente capitulação dos holandeses, entrou em plena desagregação a comunidade israelita no nordeste do Brasil.
Viram-se então os judeus dessa região, após vários anos de privações e sofrimentos, em face de uma dolorosa encruzilhada: permanecer no Brasil, onde presenciaram a calamitosa destruição da sua vida coletiva e dos seus bens pessoais, e onde os ameaçavam os horrores de uma implacável perseguição - não obstante o arranjo feito pelos holandeses com os portugueses no sentido de ficarem impunes os judeus remanescentes - ou emigrar em busca de refúgio, onde pudessem reconstruir as suas vidas.
Uma pequena parcela resignou-se à permanência no Brasil, dispersando-se pelo seu território, enquanto o grosso optou pela emigração. Destes, um grupo - constituído provavelmente dos mais ricos e mais relacionados na Holanda, entre eles o próprio chefe da comunidade rabino Isaac Aboab da Fonseca - decidiu retornar a esse país - ilha de liberdade no vasto oceano de intolerância que então era o continente europeu - ao passo que a maioria, a parte mais pobre, preferiu enfrentar o desconhecido, aventurando-se em direção das mais longínquas paragens das três Américas.
Os que regressaram à Holanda, ali se reintegraram na comunidade israelita, sem deixarem maiores vestígios. Os outros, pulverizados entre diversas colônias francesas, inglesas e holandesas das Américas, lançaram nas novas pátrias a afirmação pujante da sua vitalidade, contribuindo eficazmente para o desenvolvimento econômico das mesmas e implantando aglomerações judaicas, uma das quais viria a ser nos tempos modernos a extraordinária comunidade israelita dos Estados Unidos da América do Norte.
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O destino dos fugitivos nas colônias americanas
O êxodo dos judeus brasileiros para as colônias européias nas Américas tomou três rumos: Guianas, Antilhas e Nova Holanda (América do Norte), dos quais o segundo foi que atraiu a maioria.
Guianas. - De começo, um grupo de judeus fugitivos, sob a direção de David Nassib, fixou-se em Caiena (1657), donde, por ter sido hostilizado pelos habitantes locais, passou mais tarde para Surinam, que naquele tempo era uma colônia inglesa, somente vindo a ser conquistada em 1667 pelos holandeses.
Em Surinam, os judeus contribuíram substancialmente para o desenvolvimento da colônia, à base da cultura da cana de açúcar, e, graças à absoluta liberdade de que gozavam, foram crescendo em número e se organizando em uma comunidade duradoura que, em fins do século XVIII, chegou a contar mais de 1.300 almas. O núcleo mais importante - com 1.045 judeus numa população de 2.000 - ficava nos arredores de Paramaribo e era conhecido como "Savana Judea".
Antilhas. - A primeira leva de judeus procurou atingir a Martinica, que gozava da fama de ser bem administrada pelo governador Parquet. Este, entretanto, embora a princípio disposto a aceitá-los, resolveu, por influência dos jesuítas, não permitir o desembarque, o que fez com que os forasteiros, em número de 900, seguissem para Guadalupe, onde foram acolhidos e, bem depressa, prosperaram.
Mais tarde, Parquet, arrependido, permitiu que outras levas de judeus se estabelecessem na ilha, a qual passou então a experimentar enorme progresso na agricultura e no comércio.
Outro grupo atingiu Barbados, onde já havia alguns cristãos-novos trazidos pelos ingleses e que, acrescidos agora dos judeus brasileiros, deram um forte incremento à indústria do açúcar.
Finalmente, vários outros grupos estabeleceram-se em Jamaica e São Domingos, dedicando-se, como sempre, à sua tradicional ocupação - indústria açucareira.
Graças a esse concurso dos judeus foragidos do Brasil, conseguiu a América Central estabelecer o seu monopólio no mercado mundial de açúcar, monopólio esse que antes estava nas mãos do Brasil.
Forneceram, assim, aqueles judeus às colônias centro-americanas os elementos de riqueza que, por influência da desastrada política dos monarcas portugueses, o Brasil desprezara!
América do Norte. - Um grupo de judeus, numericamente pequeno, porém de importância significativa para a história dos judeus no Novo Mundo, deixou Recife, logo depois da sua queda, em direção à longínqua Nova Amsterdã (atual Nova York), então capital da Nova Holanda norte-americana.
Quando esse grupo de 23 judeus, levado pelo navio de guerra francês "St. Charles", acampou em 12 de setembro de 1654, à margem do Hudson, era sua esperança encontrar ali boa acolhida, por se tratar de uma colônia holandesa. Entretanto, o governador da colônia, Pierre Stuyvesant, autócrata e anti-semita, fanático e inflexível em matéria de religião, exigiu a retirada desses "inimigos e blasfemadores do nome de Cristo". E foi somente graças à intervenção da Companhia das Índias Ocidentais - em cujo seio acionistas judeus exerciam influência - que afinal se permitiu a permanência dos 23 judeus brasileiros na aldeia de Nova Amsterdã, com a condição de que "os pobres entre eles fossem mantidos por sua própria nação", que não exercessem cargos públicos, que não se dedicassem ao comércio a varejo, e que não fundassem congregação.
Evidentemente, tais restrições passaram em breve a ser letra morta, pois, decorridos apenas dois anos, já haviam os judeus, sob a liderança de Asser Levy, conseguido adquirir um terreno para um cemitério próprio.
Pouco mais tarde, tendo os ingleses se apoderado em 1664 das colônias holandesas da América do Norte, os judeus passaram a gozar de absoluta liberdade de consciência, podendo assim consolidar a sua comunidade e disseminar-se pelo país, onde, com o correr dos séculos, viria desenvolver-se a maior das coletividades israelitas do mundo, tendo como principal centro a cidade de Nova York, justamente a antiga aldeia de Nova Amsterdã onde, em meados do século XVII, um punhado de judeus brasileiros fugitivos estabelecera a primeira aglomeração judaica da América do Norte.
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A acomodação no Brasil
Como já foi mencionado, o êxodo que se verificou após a expulsão dos holandeses não abrangeu a totalidade da população judaica do nordeste do Brasil. Certo número de marranos resolveu permanecer na terra que havia aprendido a amar, confiando não só no compromisso estipulado no tratado de capitulação dos holandeses no sentido de que os judeus remanescentes não seriam molestados, como ainda no ambiente de relativa tolerância religiosa que então reinava em Portugal.
Contribuiu para tal ambiente a influência do padre jesuíta Antônio Vieira, enérgico, persistente e abnegado defensor dos judeus. O ardor com que lutou pela sua causa provinha-lhe da convicção de que os judeus não podiam ser jamais um perigo para Portugal: e de que, ao contrário, eles eram a energia vital da nação, tornando-se assim urgente chamar de volta os judeus expulsos ou foragidos com o fim de revigorar as forças empobrecidas. O mais importante dos trabalhos que escreveu em defesa dos judeus intitulava-se: "Proposta feita a el-rei D. João IV, em que se lhe representa o miserável estado do reino e a necessidade, que havia, de admitir os judeus mercadores, que andavam por diversas partes da Europa".
Graças à visão esclarecida e aos esforços do padre Antônio Vieira, fundou-se, em 8 de março de 1649, a Companhia Geral do Brasil, semelhante à Companhia anteriormente criada pelos holandeses, tendo os cristãos-novos ricos do país subscrito grande número de ações da nova sociedade. Como contrapartida, obtiveram os cristãos-novos várias concessões tais como a isenção do confisco dos seus bens e facilidades para comerciarem e se transportarem ao Brasil.
Em tais condições, compreende-se que, com a retirada dos holandeses do Brasil, e apagados os primeiros ressentimentos, pudessem os judeus remanescentes difundir-se pacificamente pelo território brasileiro, inclusive em áreas do próprio Nordeste, reduzindo ao mínimo as aparências da sua origem judaica.
É certo que, decorridos alguns anos, tendo falecido D. João IV em 1656, a Inquisição conseguiu pôr termo à tolerância anteriormente instituída para com os judeus e - sem se esquecer de vingar-se do padre Vieira - fez recrudescer as perseguições. Estas culminaram com a promulgação da lei de 9 de setembro de 1683, que determinava a expulsão dos cristãos-novos e a aplicação da pena de morte aos que voltassem ao país.
Os efeitos dessa nova onda de perseguições não alcançaram todavia de forma sensível o Brasil, tendo até contribuído para que se intensificasse a vinda dos cristãos-novos acossados em Portugal.
E, assim, pôde a população do Brasil, não somente recompor-se do tremendo abalo sofrido com a desagregação pós-holandesa, mas ainda experimentar um razoável crescimento numérico.
Do exposto, cabe concluir, portanto, que a segunda metade do século XVII foi um período de lenta e discreta acomodação dos judeus no Brasil: um período certamente sem brilho e sem quaisquer manifestações de vida coletiva judaica, mas também sem grandes abalos, sofrimentos e disabores.
Apogeu da inquisição portuguesa e sua repercussão no Brasil
A acomodação, tão bem levada a efeito pelos judeus brasileiros na segunda metade do século XVII, não logrou transpor o umbral do século seguinte, quando, afinal, a Inquisição de Lisboa, cujas garras até então mal haviam conseguido arranhar a população judaica do Brasil, acabou estendendo sobre este país a sua implacável rede de perseguições.
Essa onda de terror que, com algumas intermitências, se desdobrou por longos 70 anos, com especial virulência nos períodos de 1707 a 1711 e 1729 a 1739, conferiu à primeira metade do século XVIII as características de época negra da história dos judeus no Brasil.
Várias razões, entre essenciais e subsidiárias, contribuiram para esses trágicos eventos.
Em primeiro lugar, a perseguição aos cristãos-novos em Portugal atingira então justamente o seu apogeu, assumindo ali a obra vandálica da Inquisição aspectos verdadeiramente pavorosos. "Despovoavam-se extensas zonas do país e a Europa contemplava atônita uma nação que se destruía à ordem de broncos frades". Não admira, pois, que tal fúria infrene acabasse também repercutindo nesta banda do oceano.
Por outro lado, os judeus brasileiros, graças ao seu ajustamento econômico e social, operado na segunda metade do século XVII, haviam voltado a constituir uma parcela das mais opulentas da colônia; havia, pois, bens a confiscar, e com facilidade!
E, se isso não bastasse, fôra designado bispo do Rio de Janeiro - D. Francisco de São Jerônimo, que exercera, em Évora, o cargo de qualificador do Santo Ofício, ali se distinguindo pela sua intolerância religiosa e pelo seu rancor contra a raça hebréia.
Tão furiosa passou a ser então a caça aos judeus brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro e na Paraíba, que, só entre 1707 e 1711, mais de 500 pessoas foram levadas prisioneiras para a Inquisição de Lisboa.
O pânico se fez geral, paralisando por completo o desenvolvimento das relações mercantis da colônia com a metrópole, e a esta causando tão sérios prejuízos que a coroa portuguesa afinal se viu forçada a proibir que prosseguisse o confisco dos engenhos de açúcar, na maioria pertencentes a indivíduos de origem judaica.
Sucedeu então uma relativa acalmia, que, entretanto, não chegou a durar 20 anos. Tendo neste interregno os judeus se refeito dos abalos anteriores e mesmo voltado a enriquecer graças ao incremento da exploração das minas de ouro e do comércio de diamantes, recomeçou a sanha dos inquisidores, atraídos pelas renascidas perspectivas de maciços confiscos.
A nova fase de perseguições, mais intensa durante o decênio 1729-1739, prosseguiu, praticamente até 1770, quando outras condições vieram extirpar, e para sempre, o cancro da inquisição, que tanto manchara a história de Portugal e tanto fizera decair esse grande império dos tempos manoelinos.
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Até hoje não se sabe ao certo quantos judeus oriundos do Brasil caíram vítimas da Inquisição de Portugal.
Há quem avalie em apenas 400 o número dos judaizantes brasileiros processados, dos quais não mais de 18 teriam sofrido a pena capital; são cifras relativamente modestas, não perfazendo senão 1 a 2% do total de processos e condenações da Inquisição nos seus 230 anos de funcionamento em Portugal. Mas, tal estimativa parece longe de dar uma idéia exata da extensão que na verdade a tragédia assumiu, pois que, ainda hoje, existem nos arquivos da Torre de Tombo, em Lisboa, 40.000 processos da Inquisição, cujos mistérios aguardam o trabalho paciente dos que se disponham a investigá-los para revelar à história toda a sua hediondez.
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Antônio José da Silva: "O Judeu"
Entre as vítimas brasileiras da Inquisição portuguesa, na fase da sua mais nefanda atuação, figura Antônio José da Silva, nascido no Rio de Janeiro, em 1705, e que, por consenso geral, é considerado descendente de judeus.
Aos oito anos de idade, transladou-se ele com seu pai para Lisboa, aonde acabava de ser enviada como prisioneira a sua mãe, acusada como fôra de judaísmo pelos agentes da Inquisição.
Em Portugal, freqüentou Antônio José colégio e universidade, sempre revelando excepcionais dotes de inteligência e invulgar pendor literário. Em poucos anos, seu espírito criador enriqueceu a literatura portuguesa de numerosas peças teatrais de singular valor, galgando ele os mais altos degraus da fama e da popularidade.
Como de suas peças, genialmente arquitetadas, com freqüência extravasasse um sarcasmo sem rebuços contra a torpe atividade da Inquisição, esta o marcou e não mais descansou no afã de eliminá-lo.
E ela conseguiu o seu intento, não obstante o prestígio imenso do poeta. Tentara a princípio intimidá-lo, confiscando-lhe os bens e esmagando-lhe os dedos - ato este praticado na igreja de São Domingos em 13 de outubro de 1726 - na esperança de que assim não mais viesse a manejar a sua pena mordaz. Vendo, porém, que com isso ainda mais haviam acirrado o seu ódio ao monstruoso tribunal, os inquisidores enredaram Antônio José da Silva numa complicada trama de denúncias e falsos testemunhos, entre os quais o de que ele ria do nome de Cristo, jejuava às segundas e quintas-feiras, vestia roupa limpa aos sábados, e rezava o Padre Nosso substituindo, no fim, o nome de Jesus pelo de Abraão e do Deus de Israel.
E assim, inapelavelmente condenado à pena capital em 11 de março de 1739, foi Antônio José da Silva - cognominado "O Judeu" - queimado, em 21 de outubro do mesmo ano, na praça pública, não tendo faltado sequer alguns requintes de crueldade: foram obrigadas a assistir ao ato - a sua mãe, septuagenária, sua mulher e sua filha de quatro anos.
Uma das maiores expressões da genialidade judaico-brasileira acabava de pagar com a preciosa vida o seu inconformismo com a bestialidade da Inquisição!
Disposições liberais em Portugal
O Marquês de Pombal
Em 1770, teve início um novo ciclo para a vida judaica no Brasil, sem nenhuma semelhança com todo o seu passado. As cinco décadas seguintes constituem uma fase de transição para uma política liberal, que não mais sofreria retrocessos, ampliando cada vez suas conquistas até a eclosão definitiva em 1824, após a proclamação da independência do Brasil e sua constitucionalização.
Em Portugal, o cenário mudara e a Inquisição acabava de entrar nos seus últimos estertores, golpeada de morte pelo clarividente e poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido como o Marquês de Pombal.
Já em 5 de outubro de 1768, como medida precursora, havia esse estadista excepcional desarmado os denominados "puritanos", isto é, os nobres que timbravam em não se alinhar a sangue suspeito de cristão-novo: determinou o Marquês um prazo de 4 meses àqueles que tivessem filhos em idade casadoura, para que procedessem a enlaces com famílias até então excluídas.
Poucos anos depois, em 25 de maio de 1773, conseguiu ele junto ao rei, D. José I, a promulgação de uma lei que extinguiu as diferenças entre cristãos-velhos e cristãos-novos, revogando todos os decretos e disposições até então vigorantes com respeito à discriminação contra os cristãos-novos. As penalidades pela simples aplicação da palavra "cristão-novo" a quem quer que fosse, por escrito ou oralmente, eram pesadas: para o povo - chicoteamento em praça pública e banimento para Angola; para os nobres - perda dos títulos, cargos, pensões e condecorações; para o clero - banimento de Portugal.
Finalmente, um ano mais tarde, em 1 de outubro de 1774, foi a referida lei regulamentada por um decreto, que sujeitava os veredictos do Santo Ofício à sanção real.
E assim, com essa restrição, estava praticamente anulada a Inquisição portuguesa.
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Sobre o especial empenho do Marquês de Pombal junto ao rei em favor da extinção de quaisquer discriminações contra os cristãos-novos, encontra-se na "História Universal do Povo Judeu" de S. Dubnov, a seguinte conjetura: "Mas, consta que o rei manifestou o desejo de que os marranos fossem pelo menos reconhecíveis por um sinal especial. Então, Pombal tirou três chapéus amarelos, dos que usavam os judeus em Roma, explicando que um seria destinado a ele próprio, outro ao inquisidor geral e o terceiro ao rei, visto como ninguém - disse ele - podia estar certo de que nas suas veias não corria o sangue dos marranos".
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Repercussão no Brasil
Tratado de comércio de 1810
Proclamação da Independência do Brasil
A repercussão das disposições pombalinas no Brasil foi automática e eficaz. Após setenta anos de perseguições tremendas, estavam os cristãos-novos brasileiros ansiosos de se igualarem aos demais habitantes do país, dos quais, na realidade, freqüentemente em nada se distinguiam, a não ser pela discriminação que lhes era imposta. Assim, nesse ambiente já por si propício - favorecido ainda pelos intensos cruzamentos étnicos e processos transculturativos que se vinham verificando naquela época, graças à mutação econômica parcial da base agrária para a de mineração - o liberalismo da nova lei foi um franco estímulo à completa assimilação dos cristãos-novos.
Bem entendido, esse processo de integração não se fez de pronto, nem de maneira cabal, pois que não desaparecera a desconfiança com relação às reviravoltas políticas da coroa portuguesa.
Tanto assim que, masmo 25 anos mais tarde, quando, pelo tratado de comércio formado em 19 de fevereiro de 1810, na cidade do Rio de Janeiro, entre a Inglaterra e Portugal, foi dado mais um passo à frente no caminho da liberalização, ficando oficialmente proibidas as atividades da Inquisição no Brasil, o governo de Porgutal ainda receava os judaizantes.
É como se explica que, no mesmo artigo nº 12 do aludido tratado, em que se dispunha que:
"nem os vassalos da Grande Bretanha, nem outros quaisquer estrangeiros de comunhão diferente da religião dominante dos Domínios de Portugal, serão perseguidos ou inquietados por matérias de consciência, tanto nas suas pessoas, como nas suas propriedades, enquanto eles se conduzirem com ordem, decência e moralidade, e de uma maneira conforme aos usos do País e ao seu estabelecimento religioso e político",
acrescentou-se:
"porém, se se provar que eles pregam ou declamam publicamente contra a religião católica, ou que eles procuram fazer prosélitos ou conversões, as pessoas que assim delinqüirem poderão, manifestando-se o seu delito, ser mandadas sair do País..."
Foram necessários mais outros 15 anos para que, alcançada a independência do Brasil em 1822 e promulgada a constituição de 1824, desaparecesse, pela via aberta da assimilação, o problema judaico brasileiro.
Não será demais lembrar que foi marcante a contribuição dos próprios judeus brasileiros para o movimento que viria trazer a sua extinção como grupo pela completa integração na coletividade nacional. Assim o testemunha o historiador Rocha Pombo: "Os primórdios da rebeldia para constituir uma nação independente tiveram por parte dos israelitas e dos sues descendentes destacada contribuição", e assim o reforça o historiador Adolfo Varnhagen: "Os judeus foram os pioneiros da independência do Brasil. A sua valiosa contribuição, a sua tenacidade de raça eleita, de povo perseguido, constituiram os alicerces onde colocou-se o lábaro ardente da esperança na Libertação do Brasil do jugo da mãe-pátria".
Assimilação profunda da população judaica autóctone
Uma vez constitucionalizado o país e implantada a total liberdade de consciência, nada mais restava que pudesse sustentar a sobrevivência da população judaica, já bastante reduzida em conseqüência da assimilação que se vinha operando, lenta mas continuamente, nos 50 anos precedentes, à sombra do crescente liberalismo pós-pombalino.
Esses judeus remanescentes, cujo espírito coletivo já estava muito debilitado - pois, como mencionado atrás, eles quase só se consideravam judeus em virtude da discriminação vinda de fora - tão logo perceberam que desta vez a liberdade viera em caráter duradouro, cortaram aquela última amarra, de odioso fundo discriminatório, que os prendia ao passado judaico e difundiram-se rapidamente no seio da população geral, com a qual, de resto, já se achavam inteiramente identificados, sob todos os aspectos histórico-culturais.
(A título de curiosidade, aliás expressiva, merece notar que, não obstante essa integração total, muitos assimilados continuaram, pelos anos afora, a declinar a sua condição de ex-cristãos-novos, sendo mais notável o fato de que, mesmo depois de decorrido mais de um século, em pleno meado do século XX, encontram-se todavia descendentes de cripto-judeus que, com certo sentimentalismo, evocam a sua origem e testemunham o seu enternecimento pelos sofrimentos dos antepassados comparecendo aos templos israelitas por ocasião das principais cerimônias religiosas do ano).
O único fator que, nessa conjuntura criada após a Constituição de 1824, talvez ainda lograsse reacender a chama pretérita e preservar aqueles judeus da assimilação total, teria sido uma imigração maciça e homogênea de judeus, de nível elevado e de tradições afins.
Mas essa hipótese única, assim mesmo de efeito problemático, inexistiu de todo, pois que, depois da Independência, enfraqueceu de muito o movimento de imigração no Brasil, sendo que a imigração judaica praticamente se anulou. Evidentemente, não se pode levar em nenhuma conta os judeus esporadicamente encontrados de permeio com grupos imigrantes europeus. Tais elementos isolados, oriundos provavelmente de esferas israelitas já bastante assimiladas da Europa ocidental, passaram a atuar no país de forma exclusivamente individual, sem nenhum resquício de comportamento grupal e sem a menor manifestação de hábitos e tradições judaicos.
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Surgimento do foco judaico da Amazônia
Cabe, apenas, abrir um parênteses para uma exceção de valor pouco mais que simbólico, verificada no extremo norte do país.
Logo após a Independência, principiaram a afluir para a Amazônia elementos judaicos provenientes do Marrocos. Tratando-se de uma imigração de origem nova, sem qualquer afinidade histórica ou cultural com a população brasileira da região, e dado o clima liberal criado pela Constituição de 1824, fácil e cômodo foi a esses judeus marroquinos conservarem sua religião e tradições, cedo vindo a fundar - no ano de 1828 - uma sinagoga, de nome "Porta do Céu", na cidade de Belém do Pará.
Essa aglomeração judaica da Amazônia, que, com o decorrer dos anos, foi sendo ampliada de maneira contínua com elementos oriundos da mesma região norte-africana, difundiu-se pelos pontos estratégicos do grande rio, passando a desempenhar um papel relevante no desenvolvimento econômico da região, bem como no intercâmbio comercial com o estrangeiro.
Entretanto, esse agrupamento judaico da longínqua Amazônia, pouco numeroso, aliás, e isolado, cultural e materialmente, das regiões vitais e mais adiantadas do país, não podia, evidentemente, exercer nenhuma influência sobre o judaísmo indígena que então já entrava na sua fase de total oclusão.
Por isso mesmo, a existência da minúscula comunidade do extremo norte do país não tira, de modo nenhum, ao período 1824-1855 a sua característica inconfundível, que é a de se ter, no seu decurso, processado a profunda assimilação da população judaica remanescente após a Independência do Brasil.
Imigração ocidental (Norte da África e Oeste europeu)
Na segunda metade do século XIX, por volta de 1855, começou a modificar-se a situação judaica no Brasil.
A população israelita, até então reduzida unicamente ao remoto agrupamento amazonense, passou a crescer em número e a espalhar-se pelo território brasileiro.
Sem prejuízo do prosseguimento da imigração judaica norte-africana para a região amazônica, foram chegando para o Rio de Janeiro - de onde irradiavam para os estados vizinhos, especialmente para São Paulo e Minas Gerais - judeus procedentes de vários países da Europa Ocidental - franceses, ingleses, austríacos e alemães, sobretudo alsacianos - a tal ponto que, em 1857, já sentiram a necessidade de fundar uma sinagoga.
As duas aglomerações - da região amazônica e do Rio de Janeiro - não mantinham entre si quaisquer relações de grupo e apresentavam, aliás, características diferentes.
A coletividade amazônica era mais estável, eis que os judeus marroquinos vinham para o extremo norte do Brasil com a intenção de ali se radicarem, tendo eles, em conseqüência, alargado com o tempo o seu campo de atividades, de molde a abranger não somente o comércio interno e o de exportação e importação - este especialmente de tecidos - mas também o setor de navegação e da exploração de seringais, afora a participação nas atividades públicas e no exercício de cargos oficiais.
Já no sul, os judeus, originários do oeste europeu, vinham antes com o objetivo de prosperar e de em seguida regressar aos países de origem, embora muitos acabassem permanecendo no Brasil, fosse porque não houvessem logrado o desejado enriquecimento rápido, fosse porque já se sentissem dominados pelo apego à nova terra. Em face daquela predisposição inicial, limitavam-se os judeus do Rio de Janeiro e dos estados vizinhos às ocupações comerciais, sem nenhuma tentativa de integração em outras atividades econômicas, de feição mais estável e caráter mais fundamental, e muito menos procuravam imiscuir-se na vida pública do país.
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Imigração oriental (Mediterrâneo oriental e Leste europeu)
Na última década do século XIX, a imigração judaica cresceu de vulto, multiplicando-se os países de procedência e também as regiões em que os imigrantes passavam a fixar-se no Brasil.
Enquanto, até então, os imigrantes judeus provinham quase exclusivamente do Norte da África e do Ocidente europeu, já agora, afora aquelas regiões, chegavam levas de judeus oriundos do Mediterrâneo oriental - Grécia, Turquia, Síria e Líbano (sefaradim) e da própria Palestina (sefaradim e asquenazim) - e ainda da Rússia e países vizinhos do leste europeu, localizando-se de preferência na zona sueste do país - Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais - mas também se disseminando por muitos outros estados, tanto do Sul como do Nordeste.
Ficou assim o Brasil, no final do século XIX, pontilhado de núcleos judaicos multicolores.
Conquanto ainda não existissem quaisquer ligações de grupo mais firmes entre essas diversas aglomerações judaicas, e nem mesmo se houvessem ainda estabelecido coordenações locais entre os elementos israelitas policrômicos - que tinham línguas, tradições e interesses diferentes - é entretanto fato digno de registro que, ao findar o século XIX, já existia no Brasil uma coletividade judaica em potencial, que abarcava todo o território nacional; uma rica infra-estrutura, sobre a qual viriam em breve apoiar-se as vastas e homogêneas ondas imigratórias do leste europeu - Bessarábia, Ucrânia, Lituânia, Polônia - as quais, nas primeiras décadas do século XX, ergueriam no Brasil o arcabouço de uma sólida comunidade israelita.
Um relance retrospectivo sobre o passado dos judeus no Brasil - compreendendo judeus propriamente ditos, cripto-judeus, cristãos-novos e meros descendentes de judeus - revela uma trajetória honrosa, pontilhada sem dúvida de dissabores e de sofrimentos, mas também repleta de sucesso, traduzido em contribuições positivas e fundamentais para o desenvolvimento do país e para a formação do seu povo.
Na exploração das costas brasileiras, no desbravamento do interior, no progresso da lavoura, do comércio e das indústrias, no avanço das artes e das ciências, enfim nos movimentos ideológicos de emancipação política da terra - em tudo os judeus deixaram marcas indeléveis da sua participação ativa, e tudo eles impregnaram do seu senso progressista e dos seus valores de cultura.
Por outro lado, o seu dom de grande mobilidade e sua notável capacidade de adaptação e convivência deram margem permanentemente a cruzamentos em alta escala, fazendo com que os judeus entrassem poderosamente na composição étnica nacional e transmitissem ao brasileiro de hoje largos contingentes éticos, antropológicos e culturais.
Conquanto não guardem propriamente continuidade com as populações israelitas de antanho, os judeus brasileiros do século XX, como coletividade, têm todos os motivos para se apropriarem de tal patrimônio histórico e de se terem por partícipes da nacionalidade.
Eis que seus ancestrais, por quatro séculos, foram deixando um legado precioso ao país. Quatro séculos: nem sequer um dia menos que a própria história do Brasil.