Fragmentos das ideias de Emmanuel Lévinas
O Outro
"O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo ‘tu’ ou ‘nós’ não é um plural de ‘eu’. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum." (extraído de LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988, p.26.)
O rosto
"O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a idéia do Outro em mim, chamamo-lo, de fato, rosto. Esta maneira não consiste em figurar como tema sob o meu olhar, em expor-se como um conjunto de qualidades que formam uma imagem. O rosto de Outrem destrói em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele me deixa, a idéia à minha medida e à medida do seu ideatum – a idéia adequada. Não se manifesta por essas qualidades, mas kath'autó. Exprime-se. " (extraído de LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988, p.38.)
A idéia do Infinito
"Voltando à noção cartesiana do infinito – ‘à idéia do infinito’ colocada no ser separado pelo infinito – retém-se a sua positividade, a sua anterioridade relativamente a todo o pensamento finito e a todo o pensamento do finito, a sua exterioridade em relação ao finito. Foi a possibilidade do ser separado. A idéia do infinito, o transbordamento do pensamento finito pelo seu conteúdo, efetua a relação do pensamento com o que ultrapassa a sua capacidade, com o que a todo o momento ele apreende sem ser chocado. Eis a situação que denominamos acolhimento do rosto. A idéia do infinito produz-se na oposição do discurso, na socialidade. A relação com o rosto, com o outro absolutamente outro que eu não poderia conter, com o outro, nesse sentido, infinito, é no entanto a minha Idéia, um comércio. Mas a relação mantém-se sem violência – na paz com essa alteridade absoluta. A ‘resistência’ do Outro não faz violência, não age negativamente, tem uma estrutura positiva: ética. A primeira revelação do outro, suposta em todas as outras relações com ele, não consiste em apanhá-lo na sua resistência negativa e em cercá-lo pela manha. Não luto com um deus sem rosto, mas respondo à sua expressão, à sua revelação. " (extraído de LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988, p.176.)
O desejo metafísico
"«A verdadeira vida está ausente.» Mas nós estamos no mundo. A metafísica surge e mantém-se neste álibi. Está voltada para o «outro lado», para o «doutro modo», para o «outro». Sob a forma mais geral, que revestiu na história do pensamento, ela aparece, de facto, como um moviemento que parte de um mundo que nos é familiar - sejam quais forem as terras ainda desconhecidas que o marginem ou que ele esconda - , de uma «nossa casa» que habitamos, para um fora-de-si estrangeiro, para um além. O termo desse movimento - o outro lado ou o outro - é denominado outro num sentido eminente. Nenhuma viagem, nenhuma mudança de clima e de ambiente podem satisfazer o desejo que para lá tende. O Outro metafisicamente desejado não é «outro» como o pão que como, como o país em que habito, como a paisagem que contemplo, como, por vezes, eu para mim próprio, este «eu», esse «outro». Dessas realidades, posso «alimentar-me» e, em grande medida, satisfazer-me, como se elas simplesmente me tivessem faltado. Por isso mesmo, a sua alteridade incorpora-se na minha identidade de pensante ou de possuidor. O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro." (extraído de LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988, p.21.)
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A in-condição humana
"Podemos mostrar-nos escandalizados por esta concepção utópica e, para um eu, inumana. Mas a humanidade do humano – a verdadeira vida – está ausente. A humanidade no ser histórico e objetivo, a própria aberta do subjetivo, do psiquismo humano, na sua original vigilância ou acalmia, é o ser que se desfaz da sua condição de ser: o des-inter-esse. É o que quer dizer o título do livro: ‘de outro modo que ser’. A condição ontológica desfaz-se, ou é desfeita, na condição ou incondição humana. Ser humano significa: viver como se não se fosse um ser entre os seres. Como se, pela espiritualidade humana, se invertessem as categorias do ser, num ‘de outro modo que ser’. Não apenas num ‘ser de modo diferente’; ser diferente é ainda ser. O ‘de outro modo que ser’, na verdade, não tem verbo que designe o acontecimento da sua in-quietude, do seu des-inter-esse, da impugnação deste ser – ou do esse – do ente. (...) De fato, trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade, isto é, a partir da posição ou da de-posição do eu soberano na consciência de si, deposição que é precisamente a sua responsabilidade por outrem. (...) Tal é a minha identidade inalienável de sujeito ." (extraído de LEVINAS, E. Ética e Infinito: diálogos com Philippe Nemo. Trad.: João Gama. Lisboa: Edições 70, 1988, p.92-93.)
Ser, guerra e totalidade
"A face do ser que se mostra na guerra fixa-se no conceito de totalidade que domina a filosofia ocidental. Os indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem eles saberem. Os indivíduos vão buscar a essa totalidade o seu sentido (invisível de fora dela). A unicidade de cada presente sacrifica-se incessantemente a um futuro chamado a desvendar o seu sentido objetivo. Porque só o sentido último é que conta, só o último ato transforma os seres neles próprios. Eles serão o que aparecerem nas formas, já plásticas, da epopéia. " (extraído de LEVINAS, E. Ética e infinito: diálogos com Philippe Nemo. Trad.: João Gama. Lisboa: Edições 70, 1988, p.10.)
A responsabilidade frente ao Deus ausente
"Deus que vela sua face não é, pensamos, uma abstração de teólogo nem uma imagem de poeta. É a hora em que o indivíduo justo não encontra nenhum recurso exterior, em que nenhuma instituição o protege, em que a consolação da presença divina no sentimento religioso infantil se nega também, em que o indivíduo apenas pode triunfar em sua consciência, ou seja, necessariamente no sofrimento. Sentido especificamente judeu do sofrimento que não toma em nenhum momento o valor de uma expiação mística pelos pecados do mundo. A posição de vítimas em um mundo em desordem, ou seja, em um mundo onde o bem não chega a triunfar, é sofrimento. Ele [o sofrimento] revela um Deus que, renunciando a toda manifestação solícita, convoca à plena maturidade do homem responsável integralmente. Mas no mesmo instante, este Deus que vela sua face e abandona o justo à sua justiça sem triunfo – este Deus longínquo – vem do interior. Intimidade que coincide, para a consciência, com o orgulho de ser judeu, de pertencer concretamente, historicamente, estupidamente ao povo judeu. “Ser judeu, isso significa... nadar eternamente contra a imunda e criminosa correnteza humana... Eu sou feliz em pertencer ao povo mais infeliz de todos os povos da terra, ao povo cuja Thorá representa o que há de mais elevado e de mais belo nas leis e ensinamentos.” A intimidade do Deus viril se conquista numa provação extrema. Por minha pertença ao povo judeu que sofre, o Deus longínquo se torna meu Deus. “Agora eu sei que tu és verdadeiramente meu Deus, pois tu não saberias ser o Deus daqueles cujos atos representam a mais horrível expressão de uma ausência de Deus, militante.” O sofrimento do justo por uma justiça sem triunfo é vivido concretamente como judaísmo. Israel – histórica e carnal – tornando-se novamente categoria religiosa." (extraído de «Aimer la Thora plus que Dieu», In: LEVINAS, E. Difficile Liberté: essais sur le judaisme. Paris: Albin Michel, 1963/ Librairie Générale Française, 1984 (Le Livre de Poche), p.201-206.)