“FREUD E O SIONISMO” — UM DES-ENCONTRO HISTÓRICO — Resenha (Jacquy Chemouni, Imago, Rio de Janeiro, 1992)
Davi L. Bogomoletz — psicanalista.
Rio de Janeiro. Agosto de 1992.
Disse Einstein sobre a Teoria da Relatividade: ‘Se eu estiver certo, os alemães dirão que sou alemão, e os franceses, que sou filho da humanidade. Mas se eu estiver errado, os franceses me chamarão de alemão, e os alemães, de judeu..,”
Na História da Psicanálise, o item “Sionismo” é quase irrelevante, se comparado com as majestosas dimensões histórica e psicanalítica do item “Judaísmo”. E pelo outro lado, para a História Contemporânea do Povo Judeu, a importância de Freud, do judeu Freud, é quase nula. Muito já se escreveu sobre a relação entre a psicanálise, seu ‘inventor’ Freud e o povo do qual ele descende. Surge agora em português este “Freud e o Sionismo”, analisando um aspecto específico dessa relação — a postura de Freud frente ao sionismo, o movimento judaico de libertação nacional, criado exatamente em Viena, onde vivia Freud, por um judeu vienense e assimilado como ele, Herzl, na última década do século dezenove, a mesma época em que Freud apertava os últimos parafusos nas fundações de sua própria criação. Em certo momento, diz o autor, os dois homens moraram na mesma rua. Mas parece que nunca se encontraram. Ironias.
Freud jamais aceitou publicamente o Sionismo. Por que? A meu ver, para esse gigante da alma humana, nos dois sentidos da expressão, o Sionismo deve ter parecido mais uma derrota que uma conquista. A meu ver, Freud queria ser reconhecido, respeitado, queria sentir-se em casa justamente naquele mesmo meio fio enlameado onde um moleque anti-semita (futuro general da Wehrmacht? Das SS?) atirou à sarjeta o chapéu novo de seu humilhado pai. Suspeito que só ali, naquele mesmo lugar onde o crime foi cometido, é que Freud aceitaria receber as desculpas da humanidade e perdoá-la, e então sentir-se aceito. E isto implicava em continuar sentado em Viena, suportando as humilhações subseqüentes, porque sair dali seria o mesmo que perder a possibilidade da desforra. Freudianamente falando, poderia haver nisto um deslocamento para os anti-semitas do seu próprio ódio ao pai (vide “Um Transtorno da Memória no Coliseu de Atenas”) mas o que importa é que eu quase VEJO Freud em pé, numa esquina de Viena, olhando em volta e murmurando entredentes: “Daqui só saio vingado - ou morto!”).
Ao longo do livro vai ficando claro que Freud foi “fechando” com o Sionismo político à medida que o Nazismo foi fechando o destino dos judeus. Muito antes de 1938 (quando Freud cedeu e exilou-se na Inglaterra) já era bastante óbvio que o Nazismo não era um pesadelo do qual seria possível acordar. Mas essa barbárie, esse delírio ululante das multidões assassinas eram justamente o inimigo pessoal de Freud! Dos moleques da infância de seu pai a Hitler instalado no Reichstag não só nada mudou, como pelo contrário — confirmaram-se todas as suas hipóteses. Os monstros habitantes do inconsciente haviam adquirido corpo! O Mal Estar na Cultura, Totem e Tabu (a horda primitiva e o assassinato do pai), O Futuro de uma Ilusão, Para Além do Princípio do Prazer (a idéia do instinto de morte, que funcionaria como uma hipótese explicativa para tanta ferocidade), Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (a perda da identidade — e da capacidade de julgamento no interior do corpo grupal), todos estes trabalhos (a parte social da obra de Freud) estavam confirmados pelo Nazismo. Lá estava a selvageria latente do “homo sapiens”, que Freud não se cansava de desancar. “O verniz de civilização a mim não engana”, dizia ele.
Ceder a “eles”, fugindo para uma terra própria? Ora, isto equivaleria a dar o braço a torcer! Não, um homem como Freud não faria isso. Sua última “obra” escrita em solo austríaco — o “recibo’ exigido pela Gestapo, comprovando que ele não foi molestado de modo algum, e que ele arremata num ápice de sarcasmo: “recomendo vivamente a Gestapo para quem dela possa necessitar...” — deixa claro que, além da guerra entre anti-semitas e judeus, havia uma outra, entre Freud e os anti-semitas, símbolo máximo do primitivo, do patológico que há no bicho—homem (pelo que este tem de racista, não pelo que tem apenas de anti-judaico). E Freud ganhou a sua guerra. Os nazistas se curvaram a ele: Houve outros tirados com vida do inferno nazista (Bettelheim, por exemplo), mas Freud foi o único — que eu saiba — a sair cuspindo sobre as baionetas que o expulsavam.
Ao longo da leitura, o livro de Chemouni revela-se fascinante por direito próprio. Não é, definitivamente, o esmiuçamento obsessivo de um pontinho à margem, mostrando-se na verdade uma pesquisa extremamente criativa que, a partir desse ponto à primeira vista pouco relevante, pinta uma ampla paisagem sócio—político—histórico—psicológica não só da relação Freud—Sionismo, mas de um capítulo muito pouco conhecido na vida do judeu Sigmund e do movimento intelectual por ele criado. Por exemplo, quando aborda um aspecto da juventude de Freud pouquíssimo divulgado até então — a época em que este, estudante universitário, faz parte de um clube cultural nacionalista austríaco — na verdade alemão. Entusiasmado com o valor universal da cultura alemã, capaz de produzir um Goethe, e abominando, como o fizeram tantos judeus inteligentes da época, a estúpida e injustificável rejeição dos judeus pelos descendentes desse e de outros gigantes do humano, Freud também bateu-se por ser aceito. No entanto, foram todos eles rejeitados, e muito antes de surgir a “Solução Final” já estava claro (e para Freud isto ocorreu em 1878, ano em que é dissolvida a associação estudantil de que fazia parte) que a rejeição era “final”, imune a qualquer argumento. Diz Chemouni: “A obra de Freud permite compreender que o anti-semitismo não é um simples efeito de mutações políticas ou econômicas, como muitas vezes se crê, mas resulta de tensões e de conflitos psíquicos, reais e fantasmáticos, que traduzem tão tragicamente as relações entre judeidade e germanidade.” (Pág. 39). Ou seja: Freud enfrentava, acima de tudo, uma doença, a “sua” doença, a doença da alma que ele foi o primeiro a compreender, descrever, e por fim combater com alguma eficácia.
O Sionismo era simpático a Freud, sem dúvida, mas não para ele próprio. O homem que lutou quase sozinho contra os monstros do lado escuro da mente lutou também quase sozinho contra a besta anti-semita. Via-se hostilizado por um fogo cruzado — de um lado o alvejavam por seu judaísmo, e de outro por sua psicanálise, e ele sabia que havia algo em comum a essas duas “rejeições”. Não fosse ele judeu, os europeus o rejeitariam por causa da psicanálise. Não fosse a psicanálise, ele seria recusado enquanto judeu. Conclui-se que ele tinha uma briga contra a estupidez humana em geral, essa contra a qual mesmo os deuses lutam em vão. As duas frentes de sua luta complementavam-se, pois.
Ele próprio conta que, ainda jovem, elegeu como seu grande herói o cartaginês Aníbal, o semita que enfrentou e quase derrotou o Império Romano (europeu). Esse Freud—Aníbal não queria uma província distante que fosse sua. Queria que Roma — a Europa — desistisse de rejeitá-lo, o admitisse como um igual, reconhecesse o valor de sua obra. Porque não foi enquanto judeu que Freud criou a psicanálise, e sim enquanto médico, e portanto como um representante do gênero humano, já que a medicina não tem pátria nem nacionalidade, e a psicanálise não tinha como objeto a miséria psíquica dos judeus, mas de toda a humanidade. E teria que ser nestas condições — universais — que Freud exigia ser reconhecido, assim creio. Por isso não se engajou no movimento sionista, participou dele apenas como “torcedor individual”, nunca “organizado”, mas o apoiou e estimulou o mais que pôde, pelo que conta Chemouni. E mais não pôde, porque numa Europa epidemicamente anti-semita dava-lhe horror a idéia de ver a psicanálise jogada ao lixo por ser obra de um judeu, como a genética foi jogada ao lixo pelos soviéticos, que tentaram criar uma genética “proletária”. O fato é que os dois movimentos, a psicanálise e o sionismo, quisessem ou não, fincaram raízes e, como se diz, “vingaram”. Contestadores houve para ambos — e esta é uma constatação, não necessariamente uma correlação. O fato é que ignorar os vínculos de Freud com o Judaísmo enquanto cultura, e com o sionismo, fruto tardio dessa cultura, (como fez Jones, por exemplo), equivale a fazer, conscientemente ou não, o jogo de seus velhos inimigos anti-semitas.
Historiador e psicanalista ele próprio, Chemouni relata brilhantemente a história do des—encontro entre Freud e seu vizinho Herzl. Uma pesquisa densa, surpreendente e oportuna para judeus, para psicanalistas e para todos aqueles que desejam ser eles mesmos. Pois os rugidos do nazismo fazem-se ouvir novamente pelo mundo afora. Com o seu crescimento, estarão todos ameaçados — os judeus por serem judeus, e a psicanálise por espiar criticamente para dentro da alma humana, buscando dissolver, ali, as formações narcísicas onipotentes, negadoras da diferença e do outro, e também do próprio eu, que afinal não existe sem o outro. Esses fenômenos emocionais, como se sabe, são as matérias primas para a confecção do uniforme nazista. No nível apenas individual, incomodam os que estão por perto, e são sempre bem vindos ao divã do analista. Mas quando se tornam multidão e legitimam-se mutuamente, ganhando força política, de negadores do outro transformam-se em seus assassinos. E então é a própria humanidade que se torna sua vítima. Na época, os judeus eram apenas o primeiro “obstáculo” rumo à homogeneização do mundo. Agora é o lúmpen—proletariado imigrante terceiro—mundista, refugiado da miséria. Mas isso nada muda – basta constatar que os “inimigos” da matilha pseudo nazista de São Paulo, por exemplo, são os homossexuais, os nordestinos, os negros – e os judeus, naturalmente.
Como penúltima mensagem em vida, quase um “último desejo”, Freud publica o “Moisés e o Monoteísmo”. Ao dizer que Moisés não era hebreu, e sim egípcio, Freud deixa a meu ver implícita a seguinte mensagem: “Parem com isso, judeus. Vocês não são exclusivos, nem são filhos únicos de um Deus especial. Vocês e sua cultura são patrimônio da humanidade, já que o nascimento mesmo dessa cultura deveu-se a alguém que nem era um de vocês. Esqueçam essa história de “eleitos”. No máximo vocês foram os guardiões. Mas o tesouro que vocês guardam pertence a todos, à espécie humana, e isso muda tudo. Se vocês esvaziarem o narcisismo inflado por tantas coisas (boas e más), o anti-semitismo também perderá o seu gás. E então poderemos viver onde quisermos, e não precisaremos mais de um país.”
A mensagem me parece legítima, exceto sua conclusão.
Ocorre que esta é, de fato, a conclusão a meu ver infeliz de Chemouni: “A Terra Prometida moderna — ou do judeu moderno, como Freud — ignora a geografia. Ela só reconhece como território a espiritualidade, único domínio a ser conquistado. Uma vez estabelecida essa Terra, judeus e gentios nada poderão fazer a não ser converter-se a ela. Este é o significado do empreendimento freudiano.” (pág. 203). Assim fala Chemouni, ressuscitando o sonho de Ahad Haam, o ideólogo do belo sionismo “ideal”, mais na idéia que no chão.
Teria Chemouni esquecido que, para apartar a briga entre o lobo e a ovelha, seria mais inteligente convencer primeiro o lobo da ilegitimidade da briga, para depois convencer a ovelha? Não, ele não esqueceu. Mas ele o “lembra’ pelo lado do avesso, no parágrafo seguinte: “Roma, também, compartilha esse imaginário. Desde sua criação não tenta ela conquistar espiritualmente o mundo? É a opinião de Franz Rosenzweig, quando afirma que sua (de Roma) Terra Prometida é o mundo inteiro, e sua arma conquistadora, a conversão.” Chemouni diz aqui “Roma, a cristã”, mas por incrível que pareça, perde de vista a ressonância histórica do termo “Roma, o Império esmagador” — que em primeiro lugar esmagou a nacionalidade judaica. Chemouni dá a impressão de, mais uma vez, incidir na estupidez histórica de convencer a ovelha a deixar de se defender do lobo. Triste fim para um brilhante livro.
Enquanto psicanalista, eu posso entender Freud, sua luta pessoal e sua intenção – na sua época. Mas não posso entender Chemouni. Enquanto judeu de carne e osso, que ele também é, não tenho dúvidas: um povo inteiro sem Freud ainda vale mais que um Freud em troca de um povo inteiro. E o sionismo — Israel — é a única garantia de que esse povo continue inteiro, enquanto o Messias não vem – ou não volta... Qualquer pessoa diria o mesmo sobre seu próprio povo. É só sobre o povo alheio que as pessoas se dão ao luxo de serem liberais. Salvo alguns idealistas judeus incorrigíveis, disfarçados de intelectuais ferozmente objetivos, como parece ser o autor, que ainda conseguem ser “liberais” mesmo às custas de sua própria carne. Lamento. Assim como a identidade pessoal descende do narcisismo, a identidade nacional deriva do narcisismo nacional, o Nacionalismo. Não se deve, porém, matar o doente para acabar com a doença. Não é esta a mensagem da psicanálise, e muito antes pelo contrário. A solução pessoal de Freud morreu com ele, em 1939, e eu sempre me perguntei o que teria ele dito caso tivesse vivido mais uns cinco anos.
O fato é que a beleza do internacionalismo até hoje só convenceu a algumas maiorias dominadoras — nunca a uma minoria dominada. Conclusão inevitável: é o lobo que deve desistir de devorar, não cabe à ovelha desistir de se defender.
E se me perguntarem: E isto vale também para os palestinos? Eu respondo: Vale sim — enquanto uma ovelha em si mesma. Mas não enquanto a ponta da pata do lobo pan-islâmico.