O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana
PRÁTICA DA PEDAGOGIA CRÍTICA - " O grito Manso" - Paulo Freire
Tradução do espanhol: Leonardo Calderoni
Antes de tudo, quero agradecer esta demonstração de afeto, de gente que vem de longe, viajando horas, mesmo sabendo que o tempo que temos a disposição é escasso.
Esta tarde vamos tratar do tema da prática educativa, de como viemos compreendendo ou tentando compreender esta prática, nosso compromisso com a vida e o mundo.
Antes de tudo, não é possível exercer a tarefa educativa sem nos perguntarmos, como educadores e educadoras, qual é nossa concepção do homem e da mulher. Toda prática educativa implica esta indagação: o que penso de mim mesmo e dos outros. Faz tempo, em Pedagogia do Oprimido analisei o que ali denominava a busca do ser mais. Nesse livro defini o homem e a mulher como seres históricos que se fazem e se refazem socialmente. É a experiência social a que em ultima instancia nos faz, que nos constitui como estamos sendo.
Gostaria de insistir neste ponto: os homens e as mulheres, como seres históricos, somos seres incompletos, inacabados ou inconclusos. A inconclusão do ser não é, contudo, exclusiva da espécie humana já que abarca também a cada espécie vital. O mundo da vida é um mundo permanentemente interminado, em movimento. Todavia, em determinado momento de nossa experiência histórica, nós, mulheres e homens conseguimos fazer de nossa existência algo mais do que meramente viver. Em certo sentido, os homens e as mulheres inventamos o que chamamos a existência humana: nos pusemos de pé, liberamos as mãos e a liberação das mãos é em grande parte responsável pelo que somos. A invenção de nós mesmos como homens e mulheres foi possível graças a que liberamos as mãos para usá-las em outras coisas. Não temos data desse evento, que se perde no fundo da história. Fizemos essa coisa maravilhosa que foi a invenção da sociedade e a produção da linguagem. E foi aí, nesse preciso momento, no meio desse e outros .saltos. que demos, que mulheres e homens alcançamos esse momento formidável que foi compreender que somos interminados. As arvores ou os outros animais também são interminados, mas não se sabem interminados. Os seres humanos ganhamos nisto: sabemos que somos inacabados. E é precisamente aí, nesta radicalidade da experiência humana, que reside a possibilidade da educação. A consciência do inacabamento criou o que chamamos a .educabilidade do ser.. A educação é, então, uma especificidade humana.
Este inacabamento consciente de si, é o que nos vai permitir perceber o não-eu. O mundo é o primeiro não-eu. Tu, por exemplo, és um não-eu de mim. E a presença do mundo natural como não-eu, vai atuar como um estimulo para desenvolver o eu. Nesse sentido, é a consciência do mundo que cria a minha consciência. Conheço o diferente de mim e nesse ato me reconheço.
Obviamente, as relações que começaram a estabelecer-se entre o nós e a realidade objetiva abriram uma série de interrogantes, e esses interrogantes levaram a uma busca, a uma tentativa de compreender o mundo e compreender nossa posição nele. É nesse sentido que eu uso a expressão .leitura do mundo. como precedente à leitura das palavras. Muitos séculos antes de saber ler e escrever, os homens e as mulheres estavam inteligendo o mundo, captando-o,
compreendendo-o, .lendo-o.. Essa capacidade de captar a objetividade do mundo, provem de uma característica da experiência vital que nós chamamos curiosidade. Se não fosse pela curiosidade, por exemplo, (não) estaríamos aqui hoje.
A curiosidade é, junto com a consciência do inacabamento, o motor essencial do conhecimento. Se não fosse pela curiosidade, não conheceríamos. A curiosidade nos empurra, nos motiva, nos leva a desvendar a realidade
através da ação. Curiosidade e ação se relacionam e produzem diferentes momentos ou níveis de curiosidade. O que procuro dizer, é que em determinado momento, empurrados por sua própria curiosidade, o homem e a mulher em processo, em desenvolvimento, se reconheceram inacabados e a primeira conseqüência disso é que o ser que se sabe inacabado entra em um permanente processo de busca. Eu sou inacabado, a arvore também é, mas eu sou mais inacabado que a arvore porque o sei. Como conseqüência quase inevitável de saber que sou inacabado, me inserto em um movimento constante de busca, não de busca pontual de isto ou aquilo, senão de busca absoluta, que pode me levar à busca de minha própria origem, que pode me levar a uma busca do transcendental, à busca religiosa que é tão legitima como a busca não religiosa. Se há algo que contraria a natureza do ser humano é a não busca e por tanto a imobilidade. Quando digo imobilidade, me refiro à imobilidade que há na mobilidade. Alguém pode ser profundamente móvel e dinâmico mesmo estando fisicamente imóvel e vice-versa.
Dessa maneira, quando falo disto, não falo da mobilidade ou imobilidade física, falo da busca intelectual, da minha curiosidade em torno de algo, do fato de que possa buscar mesmo quando não encontre. Por exemplo, eu posso passar a vida em buscas que aparentemente não são grande coisa e, contudo, o fato de buscar é fundamental para minha natureza de ser buscador. Agora,não há busca sem esperança, e não há porque a condição do buscar humano é fazê-lo com esperança. Por esta razão, sustenho que a mulher e o homem são esperançados, não por obstinados, senão como seres buscadores. Esta é a condição do buscar humano: fazê-lo com esperança. A busca e a esperança formam parte da natureza humana. Buscar sem esperança,seria uma enorme contradição. Por esta razão, a presença de vocês no mundo, a minha, é uma presença dos que andam e não dos que simplesmente estão. E não é possível andar sem esperança de chegar. Por isso, não é possível conceber um lutador desesperançado. O que sim podemos conceber são momentos de desesperança. Durante o processo de busca, há momentos em que alguém se detém e se diz a si mesmo: não há o que fazer. Isto é compreensível,compreendo que se caia nessa posição. O que não concordo é que permaneça nessa posição.
Seria como uma traição a nossa própria natureza esperançada e buscadora.
Essas reflexões que estamos fazendo têm como objetivo falar sobre os marcos essenciais da nossa prática educativa. Como posso educar sem estar envolvido na compreensão critica da minha própria busca e sem respeitar a busca dos alunos? Isto tem a ver com a cotidianidade da nossa prática educativa como homens e mulheres. Sempre digo homens e mulheres porque aprendi há muitos anos, trabalhando com mulheres, que dizer somente homens é imoral. O que é a ideologia! De criança, na escola, aprendi outra coisa: aprendi que quando se diz homem se inclui também à mulher. Aprendi que em gramática o masculino prevalece. Ou seja, se todas as pessoas aqui reunidas fossem mulheres, mas aparecesse somente um homem, eu deveria dizer .todos. vocês e não .todas. vocês. Isto, que parece uma questão de gramática obviamente não é. É ideologia e eu levei um tempo para compreender. Já havia escrito Pedagogia do Oprimido.
Leiam vocês às edições em espanhol dessa obra e verão que esta escrita em linguagem machista.
As mulheres norte-americanas me fizeram compreender que eu havia sido deformado na ideologia machista.
Voltando ao tema: é impossível, a não ser de cair no desespero, deixar de buscar e, portanto deixar de ter esperança. Dizia-lhes também que outro marco fundamental da prática educativa é a inconclusão, dado que é nessa inconclusão que o ser humano se torna educável. Todo educando, todo educador se descobre como ser curioso, como buscador, indagador inconcluso,capaz, contudo, de captar e transmitir o sentido da realidade. É no próprio processo de inteligibilidade da realidade que a comunicação do que foi inteligendo se torna possível.
Exemplo: no momento mesmo que compreendo, que raciono como funciona um microfone, vou poder comunicá-lo, explicá-lo. A compreensão implica a possibilidade de transmissão. Em uma linguagem mais acadêmica diria: a inteligibilidade fecha em si mesma a comunicabilidade do objeto inteligido.
Uma das tarefas mais belas e gratificantes que temos por diante como professores e professoras é ajudar os educandos a constituir a inteligibilidade das coisas, ajudá-los a aprender a compreender e a comunicar essa compreensão aos outros. Isto nos permite intentar uma teoria da inteligibilidade dos objetos. Isto não quer dizer que a tarefa seja fácil. O professor ou a professora não têm o direito de fazer um discurso incompreensível em nome da teoria acadêmica e dizer depois: que se virem. Mas tampouco têm que fazer conceições baratas. Sua tarefa não é fazer simplismo porque o simplismo é irrespeitoso para os educandos. O professor simplista considera que os educandos nunca estarão à altura de compreendê-lo e então reduz a verdade a uma meia verdade, ou seja, a uma falsa verdade. A obrigação de professores e professoras não é cair no simplismo porque o simplismo oculta a verdade, senão a de ser simples. O que nós temos de fazer é conseguir uma simplicidade que não minimize a seriedade do objeto estudado senão que a ressalte.
A simplicidade faz inteligível o mundo e a inteligibilidade do mundo traz consigo a possibilidade de comunicar essa mesma inteligibilidade. É graças a esta possibilidade que somos seres sociais, culturais, históricos e comunicativos. Por esta razão, o quebre da relação dialógica não é só o quebre de um principio democrático, senão que é também o quebre da própria natureza humana. As professoras e os professores democráticos intervimos no mundo através do cultivo da curiosidade e da inteligência esperançada, que se desdobra na compreensão comunicante do mundo. E fazemos isto de diferentes maneiras. Intervimos no mundo através de nossa prática concreta, intervimos no mundo através da responsabilidade, através de uma intervenção estética, cada vez que somos capazes de expressar a beleza do mundo. Quando os primeiros humanos desenharam nas cavernas figuras de animais, já intervinham esteticamente sobre o mundo, e como seguramente já tomavam decisões morais, também intervinham de maneira ética. Justamente na medida em que nos tornamos capazes que intervir, capazes de mudar o mundo, de transformá-lo, de fazê-lo mais belo ou mais feio, nos tornamos seres éticos. Até hoje jamais se soube que, por exemplo, um grupo de leões africanos atirasse bombas sobre cidades de leões asiáticos. Não soubemos até hoje da existência de algum leão que matasse com premeditação. Somos nós, os humanos, os que fazemos estas coisas. Somos nós os que matamos e que assassinamos homens como Mauricio López a quem eu conheci e cuja ausência tanto sinto e por quem tenho respeito, admiração e saudade.
Não foram elefantes os que o fizeram desaparecer Mauricio e tantos outros, foram homens deste país que agiram provavelmente com a cumplicidade de alguma presença gringa. Só os seres que alcançaram a possibilidade de ser éticos se tornam capazes de trair a ética. A tarefa fundamental de educadores e educadoras é viver eticamente, praticar a ética diariamente com as crianças e os jovens, isto é muito mais importante que o tema de biologia, se somos professores de biologia. O importante é o testemunho que damos com nossa conduta. Inevitavelmente cada aula, cada conduta é testemunho de uma maneira, ética ou não, de afrontar a vida. Como trabalho na classe? Como trabalho com meus alunos a eterna questão da inconclusão, da curiosidade? Como trabalho o problema da esperança encurralada pela desesperança? O que eu faço? Baixo os braços? Parto para uma espécie de luta cega, sem saída? Temos de educar através do exemplo sem pensar que por ele vamos salvar o mundo.Que mal me faria a mim mesmo e a vocês si pensasse, por exemplo, que vim ao mundo com a missão de salvá-los. Seria um desastre. Sou um homem igual a todos vocês e como vocês tenho uma tarefa a cumprir e com isso já é o bastante.
O mundo se salva se todos, em termos políticos, brigarmos para salvá-lo. Há algo que está no ar, na Argentina, no Brasil, no mundo inteiro que nos ameaça. Esse algo é a ideologia imobilizadora, fatalista, segundo a qual não temos mais nada o que fazer, segundo a qual a realidade é imodificável. Estou cansado de ouvir frases como esta: .É terrível, no Brasil há trinta milhões de mulheres, homens e crianças morrendo de fome, mas o que podemos fazer, a realidade é esta.. Estou cansado de escutar que o desemprego que se estende pelo mundo é uma fatalidade deste final de século. Nem a fome, nem o desemprego são fatalidades, nem no Brasil, nem na Argentina, nem em nenhuma parte. Eu pergunto aos fatalistas, em um livro que estou escrevendo agora: Por que será que a reforma agrária não é também uma fatalidade no Brasil? Teriam ouvido falar do chamado especulativo do dólar, bilhões de dólares viajando diariamente pelos computadores do mundo de lugar a lugar procurando onde rende mais. Isso tampouco é uma fatalidade. É preciso, dizem os lideres neoliberais, disciplinar estes movimentos especulativos para evitar as crises. Parece que isto sim se pode fazer. Por que será que quando se vêm afetados os interesses das classes dominantes não há fatalismo, mas sempre que aparece como por passe de mágica cada vez que afeta às classes populares? Um dos grandes desafios que temos de afrontar hoje é a confrontação com esta ideologia imobilista. Não há imobilismos na história. Sempre há algo que podemos fazer e refazer. Fala-se muito da globalização. Vocês teriam visto que a globalização aparece como uma espécie de entidade abstrata que se criou a si mesma do nada e frente à qual nada podemos. É a globalização, ponto. A questão é bem diferente. A globalização só representa um determinado momento de um processo de desenvolvimento da economia capitalista que chegou a este ponto mediante uma determinada orientação política que não necessariamente é a única.
Com o que disse até aqui, tratei de responder à questão de como vejo a prática docente frente à realidade histórica atual. Disse-lhes que não há prática docente sem curiosidade, sem incompletude, sem ser capazes de intervir na realidade, sem ser capazes de ser fazedores da historia e, por sua vez, sendo feitos pela historia. Disse-lhes que uma das tarefas fundamentais, tanto aqui como no Brasil e no mundo inteiro, é elaborar uma pedagogia critica. E lhes digo não como alguém que .já foi., lhes digo como alguém que esta sendo. Igual que toda a gente, eu também estou sendo, apesar da idade. Em função e em resposta a nossa própria condição humana, como seres conscientes, curiosos e críticos, a prática do educador, da educadora, consiste em lutar por uma pedagogia critica que nos dê instrumentos para nos assumirmos como sujeitos da historia. Prática que devera basear-se na solidariedade. Talvez nunca como nesse momento necessitamos tanto da significação e da prática da solidariedade. Para terminar, reitero: sigo com a mesma esperança, com a mesma vontade de luta de que quando comecei.
Resisto à palavra .velho., não me sinto velho, em todo caso me sinto utilizado, cheio de esperanças e vontade de lutar.
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