JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Aqui também acontecem anjos. por Paulo Blank
Reflexões sobre a Parachá Vaietzé.

Sair e expandir-se parecem ser tão próprios do pensamento quanto a força que nos chama a fincar raízes para experimentar a segurança na imobilidade do já sabido. Tensão recorrente da vida humana e que, na tradição judaica, surge como elemento fundador da maneira de pensar a partir do movimento em direção ao fora. A tal ponto esta tendência está presente, que tanto o princípio da humanidade quanto a longa historia de Israel, começam pela saída do lugar seguro e a conseqüente exposição ao mundo.
Adão e Eva, os primeiros habitantes das letras bíblicas, são também os primeiros seres a saírem de seu paraíso para um mundo de criação no trabalho e procriação nos filhos. Experiência de vida que se inicia nos primórdios da humanidade bíblica e se concretiza na palavra GaLuT, em geral traduzida como exílio. É preciso lembrar a origem deste termo na mesma raiz hebraica que origina a palavra LeGaLoT, des-cobrir. Nesta leitura o assim chamado “exílio” torna-se equivalente a estar a des-coberto e fora do lugar conhecido e protetor. No entanto, o percurso de Israel na história demonstrou que estar fora é também uma maneira de abrir-se para o mundo que acontece para além das quatro paredes familiares do já pensado. Eis aí o sentido originário de uma palavra que, enquanto exílio, para muitos se confunde com a melancolia devastadora do abandono, na tradição de Israel aponta para a transformação que se torna possível a partir do desterro do solo familiar.
Mobilidade territorial tantas vezes reafirmada em orações que lembram ao povo a expressão bíblica “Arameu Nômade era meu Pai”. Afirmação da Torah quando ela organiza os ritos a serem realizados depois da entrada em Canaã na retomada do sedentarismo. Na confissão declarada em voz alta, durante o ritual da entrega ao santuário da primeira colheita anual, o hebreu deverá reafirmar o seu compromisso com a origem errante. Confissão pública quando ele deveria declarar-se filho de um nômade Arameu errante chamado Abraão. Arameu que pactuou com um Deus sem forma e lugar e que jamais retornaria à casa paterna, e aos ídolos locais que ele destruiu antes de partir. Arameu que se fez IVRI (Hebreu) por ser aquele “que veio do outro lado do rio”.
No limite oposto desta forma de ver o mundo, Ulysses partiu da Grécia em longa estrada de acontecimentos para, por fim, retornar a sua Ática, onde Penélope se esforçava por não deixar o tempo passar. Toda vez que a amada, cativa de sua saudade, progredia em direção à conclusão da tessitura que urdia em seu tear, ela desfazia a trama para recomeçar. A sua trama era recomeçar sempre para não sentir a falta do amado, submetendo aquela ausência dolorosa a um eterno presente igual a si mesmo. Tempo e falta parecem ser a mesma coisa em se tratando da vida humana.
Enquanto Ulysses retornava ao mesmo e já conhecido torrão natal, Abraão partia numa viagem sem retorno em direção a todas as diferenças do mundo saindo de sua casa para poder errar. Uma modalidade do pensamento que reaparece na relação que temos com o texto da Torah. Texto que, a um só tempo, reflete e funda uma maneira de olhar quando o leitor se deixa envolver por um Livro infinito em suas possibilidades. Livro que dá passos ao pensamento se lido dentro do modo que o Talmud ensina ao afirmar que cada geração tem seus intérpretes, Dor dor vedorshaiv. Ao interpretar o texto revelado por um Deus criador que se manifesta em qualquer lugar, o leitor do Livro dos livros se opõe ao pensamento sedentário. Por outro lado, quando o leitor se mantém ligado aos deuses locais, enraizados na natureza que o cerca, ele é obrigado a negociar com eles a sua proteção diante dos seus medos. Temores que são despertados sempre que a vida é percebida como vontade de expansão. Libertada da limitação de um território demarcado, a mente nômade se arrisca a errar e o espírito humano pode encontrar surpresas. O horizonte sempre se renova para o pensamento que caminha. Nomadismo e sedentarismo, duas forças que nos habitam e onde o livro, criação humana por excelência, se transforma na terceira margem de um rio que corre. Âncora móvel que nos acompanha no deslocamento pelas distâncias da vida vivida.
Participando na caminhada da Torah, o leitor do capítulo 28 do Genesis, com o qual se inicia a leitura semanal chamada de Vaitze (E Saiu), encontra Jacó partindo de Beer Sheva a caminho de Haran. Novamente um sair que antecipa a descoberta. Quando não nos limitamos a uma história, mas participamos ativamente da leitura semanal da Torah, percebemos que dispomos de um texto que se renova a cada vez que é lido e são consultados outros leitores que nos antecederam. Outros intérpretes que um dia, como nós, entraram na conversa infinita e dela passaram a fazer parte. Desta maneira, quando a mente se deixa levar em companhia dos personagens bíblicos, suas falas, seus preceitos, os ensinamentos talmúdicos, o texto transforma-se em corpo. São reflexões que penetram o dia a dia participando da construção do espírito na comunhão com a escritura.
Jacó, saindo de Beer Sheva, cidade à beira do deserto, deitou-se, ao cair da noite no que a Torah chama de “O lugar”. Ali ele tomou “... das pedras do lugar, e colocou sob a cabeça e deitou-se naquele lugar. E sonhou, e eis que uma escada estava apoiada na terra, e seu topo chegava aos céus, e eis que anjos de Deus subiam e desciam por ela. E eis que Deus estava parado perto dele. E despertou Jacó do sonho e disse - Certamente o Elohim esta neste lugar e eu não sabia- E temeu e disse- Que atemorizador é este lugar! Este não é outro senão a casa de Deus e este é o portão dos Céus” (Genesis 28: 10-18)
Um lugar despojado, como era despojada a pedra em que apoiava a cabeça no lugar de um travesseiro macio. Num lugar como este, Jacó reflete que ali havia Deus e ele não sabia. Naquele solo árido os anjos lhe aparecem em sonho, seguidos de uma voz sem forma. Serão estes anjos que não param de subir e descer ao longo da escada, anjos semelhantes àqueles outros dos quais nos fala o Talmud? Anjos que são criados a cada segundo, marca de um tempo único que irrompe no tempo linear e que não se repetirá mais. Tempo fugaz quando toda a criação, uma vez mais se reinventa e se consuma diante da eternidade de Deus. Uma palavra que concentra o verso, a imagem que traz em seu bojo um quadro a ser pintado, a situação que engloba todo um texto num único momento que logo se desfaz. Serão estes anjos súbitos, a inspiração que de repente nos visita no meio do fazer diário?
Impossível ler a reflexão de Jacó sem pensar em Heráclito, e no episódio dos visitantes que foram até a sua casa para observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno e permaneceram de pé, olhando para a simplicidade de um homem a quem esperavam ver em atitude condizente com a sua fama de pensador obscuro. Heráclito vendo que não entravam e reparando em seus olhares impressionados lhes diz “Entrem, mesmo aqui os deuses também estão presentes”. Há algo entre Jacó e Heráclito, homens de tradições tão diferentes, que chama a nossa atenção para o tema da criação. Ambas as histórias falam de um acontecimento de revelação num ambiente de total despojamento e sem qualquer rito ou circunstancia.
Pensadores pensam, escritores escrevem, pintores pintam, e Jacó sonha e se defronta com uma revelação divina sem que algo de muito especial tenha que preceder o momento de ruptura entre a simplicidade da pedra e a experiência incomum. Não será também este o caminho do ato criativo, quando alguém dedicado ao seu fazer diário, de repente, experimenta a revelação sob forma da inspiração? Naquele momento tão único quanto o anjo que canta e desaparece, o olhar sobre aquilo que era comum como uma pedra, se transforma e também desaparece ou é capturado e reconduzido ao esforço criativo. Ato cotidiano, comum, como era comum a postura do grande Heráclito na simplicidade de sua casa. Será que no dia a dia ordinário da vida sedentária, se faz o extra-ordinário do errar nômade e nele a possibilidade de um olhar diferente sobre o mesmo de sempre? Seria esta a revelação inspiradora tão desejada e tantas vezes mitificada? Afinal, o que fez Jacó além de sair de Beer Sheva em direção a Haran?
Revelação é uma palavra que remete a uma dimensão de nossas vidas chamada muitas vezes de mistério, espiritualidade, sensitividade, dom, palavras que apontam para uma qualidade incomum. Com estas palavras busca-se afirmar um estado especial, que só poderia ser alcançado por pessoas também especiais, que assim teriam um acesso especial aos segredos do mundo invisível, atravessando a cortina do mundo visível e ordinário. Mas é interessante dar-se conta que a palavra Re-velação indica que no momento em que algo é desvelado, posto, portanto, na condição descoberta, outra dimensão deste algo é novamente velada e encoberta! Como se houvesse na própria palavra uma advertência a ser percebida por aqueles que aspiram ultrapassar a natureza das coisas visíveis através da inspiração reveladora. Não se iludam, pois o mistério permanece velado. Se desejarem entrar nos mistérios que vão alem do comum, saibam que os Deuses se revelam junto a pedras duras e em ambientes despojados e o fazem apesar do desejo daqueles que desejam alcançá-los.
Será disto que também trata a história de Enoch, o sapateiro que se transformou no anjo escriba de Deus? A cada martelada que dava Enoch não se limitava a juntar o couro superior com o solado inferior. Ao fazê-lo enquanto meditava em assuntos místicos, sem saber, unificava o mundo superior ao mundo inferior, transformando o trabalho duro em um gesto sublime de Tikun, o concerto e a reunificação dos mundos que estão rompidos desde a catástrofe que aconteceu no interior da criação. Sem perceber, ele atraia as correntes da energia divina superior para o mundo de baixo. O simples martelar fez com que o próprio sapateiro se transformasse junto com a unificação que causava pela ação comum de seu trabalho. Súbito, o Enoch terreno viu-se transfigurado em Metraton, o anjo escriba, mostrando como a ação não intencional do homem pode causar uma transformação cósmica e pessoal, desde que ela esteja inserida em um ato que, embora comum, é realizado por um coração unificado na ação conjunta do corpo e da mente. Ao transformar o ordinário de um trabalho árduo em um momento extraordinário de transfiguração de um humano em ser espiritual, Enoch realizou esta passagem sem ritual ou fórmulas mágicas que pudessem ser organizadas em algum método a ser repetido por outros. Tal qual Jacó encontrou a revelação sem procurá-la.
Momentos de iluminação quando o desejo humano de desvendar mistérios consegue liberar fagulhas, os restos da primeira luz que se precipitaram durante a catástrofe da criação e permanecem encobertas por cascas à espera de sua libertação, como nos ensinou em bela metáfora cabalista o Rabino Isaac Luria. Serão estes resquícios o mesmo que anjos súbitos que são criados com a única função de louvar à criação e depois desaparecerem? Como se todos os tempos estivessem, então, contraídos naquela fagulha momentânea? Será este o sentido de revelação que volta a velar-se na infinitude momentânea do mistério? Seria aqui o lugar de pensar a criação como uma Utopia da Transformação? A possibilidade de um momento único onde um mundo se cria num instante concentrando seguido pelo seu desaparecimento? Neste caso, o concerto do mundo rompido, conhecido na cabalá como o TIKUN do estado de catástrofe no qual vivemos, deixaria de ser um tempo futuro e incerto e se transformaria na possibilidade de um agora dotado da mesma potencia criativa de um anjo súbito? A idéia da u-topia como lugar nenhum (u-nenhum, lugar-topos) seria então arejada através do vento desencadeado pelo intenso movimento das asas de um anjo inesperado que, invadindo o dia a dia, transforma um lugar comum naquele obscuro “O lugar” mencionado pela passagem da Torah.
É quando fala deste “O lugar” que o texto da Torah se torna enigmático, fato que foi percebido pelos mestres do passado. Quando ela diz que Jacó “chegou ao O lugar” ao invés de simplesmente “um lugar”, do que estaria falando? Rashi, o comentador bíblico, seguiu antigas leituras talmúdicas e viu ali uma alusão ao lugar onde, segundo os talmudistas, foi vivido o quase sacrifício de Isaac e, mais tarde, construído o templo de Jerusalém. Ao transformarem o “O LUGAR” do encontro narrado pela Torah em um lugar premeditado teriam aqueles sábios revelado uma resistência em aceitar o comum da pedra? Ao dizer que aquele “O LUGAR” denominado por Jacó de Beit El, A Casa de Deus, seria uma repetição de um lugar já existente numa dimensão espiritual, não teriam os sábios do Talmud resistido à outra visão que admitiria a revelação fora dos limites do rito organizado e das paredes suntuosas do templo de Jerusalém? Será que eles temiam a oposição do ordinário ao extravagante e excitante do ritual realizado tanto nos templos de então quanto nos de hoje? Este tipo de intensidade, é claro, pode facilitar a sensação da revelação e ajudar a ultrapassar as portas do céu na medida em que toma de assalto a razão através da força das emoções desencadeadas pelos ritos. Chamar para si a autoridade sobre a simplicidade da pedra de Jacó, colocada na fundação do templo, teria a intenção de não deixar nem mesmo uma única pedra fora do controle do ritual? Será que desta maneira queriam afirmar que a revelação tem método e dono, como quem diz que, só aqui, na organização de um tempo consagrado podem acontecer os anjos?
Pergunta que só quer relembrar que é fora do templo instituído que a revelação persistiu. Apesar do lugar santificado no interior mais interno da construção suntuosa realizada pelos arquitetos fenícios, é na rua e pela boca de profetas escolhidos que a revelação continuaria a acontecer. Em sentido inverso, Jacó precisou despertar do sonho para dizer que ali, no mundo do real, havia um Deus e ele não sabia. É no ordinário da pedra e não no extraordinário do templo e do sonho que a fala divina marcou o seu lugar. É no livro da Torah e de seus interpretes que a revelação se fez permanente quando o templo foi destruído e Israel posto a descoberto e espalhado pelos ventos do mundo. Saindo do lugar extraordinário do templo de Jerusalém para o ordinário do texto, Israel deixou-se levar a trabalhar e procriar através de uma visão onde os anjos se dão em qualquer lugar onde exista um texto e alguém disposto a ler e ser lido por ele.
Retomando Heráclito explanado por Martin Heidegger em seus seminários, ao falar da passagem da sala e do fogo onde acontecem os deuses, o pensador alemão que, no entanto, não soube resistir à aparência do extraordinário e do extravagante transmitida pelo nazismo, conseguiu perceber a grandeza do filósofo grego ao dizer daquela estória que “não é preciso evitar o conhecido e o ordinário e perseguir o extravagante, o excitante e o estimulante na esperança ilusória de, assim, encontrar o extraordinário”. Formulação que resume tanto o acontecimento de Jacó quanto a passagem de Heráclito embora exista entre eles uma diferença fundamental. Diante da busca da revelação de um Deus o filho de Israel jamais apontaria o fogo. Ao invés disto indicaria a Torah como o lugar onde habita o divino. Não a Torah dos livros que se consumiram atirados ao fogo do nazismo, mas a Torah da infinitude de um texto que não se deixa aprisionar ou queimar, um lugar nômade que não se extingue em formulações trancafiadas. O Infinito do mundo contraído no finito do texto não poderia arder no fogo ao qual Heidegger prestou homenagem em seu silêncio e colaboração enquanto escrevia estes seminários sobre Heráclito. Torah lida e deslida fazendo de cada leitor um profeta e de cada leitura uma revelação.
Hoje, neste Shabat em que se dá o encontro de Jacó com o desconhecido da revelação na simplicidade da pedra, homenageamos os escritores aqui presentes. Escritores de um esforço dedicado que lhes permite penetrar, por um momento que seja, no diálogo infinito que, como um rio, nos atravessa e envolve. Rio de um conversa infinita da qual todos fazemos parte e que, desaguando nesta sala onde agora nos encontramos, nos autoriza a dizer, com toda a certeza, aqui também acontecem anjos.

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Fontes Consultadas.
The Beginning of Desire, Reflections on Genesis de Avivah Gottlieb Zornberg
Lévinas a utopia do humano de Catherine Chalier
Mas allá del versículo de Emmanuel Levinas
La cabala y su simbolismo de Guershom Sholem
Torah, a lei de Moisés, traduzido pelo Rabino Meir Matzliah Lelamed e publicado pela Ed Sefer
Heráclito de Martin Heidegger
El Angel de La História de Stephane Moses
Chumash Bereshit com Comentários de Rashi.
Sobre o conceito de historia, Walter Benjamin
Sheva Shanim shel Sichot AL Parachát hashavua, Yeshaayau Leibowitz.

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