JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

A tradição judaica narra que a primeira tentativa de trazer a Bíblia hebraica para o convívio com outro idioma precisou de certa ajuda do seu Autor. Setenta sábios judeus que conheciam a língua grega teriam sido convocados para executarem a tarefa, sem qualquer contato entre eles. Terminadas as traduções, comparados os trabalhos, todos estavam absolutamente idênticos. A presença do sopro divino teria garantido que o resultado da tarefa dos mestres se mantivesse fiel à Sua obra. Verter os textos que compõem a biblioteca chamada Bíblia tem sido, desde sempre, uma oportunidade que, tanto aponta desafios quanto desvela em cada palavra as intenções de quem as executa.
O filosofo Emanuel Lévinas, que muito se empenhou em fazer o pensamento hebraico falar a língua da filosofia ocidental, sempre insistiu na ideia de que o judaísmo que conhecemos é a Bíblia lida pelo Talmúd. Ou seja, a sua longa tradição de interpretá-la. Pautada no preceito de que cada geração produz os próprios intérpretes, fato que mantém a abertura e o dinamismo da escritura, a espiritualidade judaica se fez ato ligado às letras. Prática que a diferenciou de revelações divinas vinculadas ao êxtase de pessoas especiais. A tradição judaica preferiu trazer o texto bíblico ao mundo dos homens, que nele interferem através da linguagem que produz pensamento. Sem esta característica interpretativa, as narrativas bíblicas teriam se transformado numa ordem engessada pela sacralização da escritura.
Numa conferência dedicada à Cabaláh, Jorge Luiz Borges assinala que o ocidente conhece os clássicos, enquanto a Toráh inicia a tradição do livro santo. Mas, por ser santificada, a Bíblia abarcaria a totalidade dos mundos possíveis, o que conduziu os seus leitores a buscarem sentidos ocultos em seu texto. Deste modo, ao invés de permanecer intocável em sua sacralidade, ela se transformou em leitura aberta. Ao afirmar que não existem antes e depois em se tratando da escrita da Toráh, os antigos rabinos criaram uma hermenêutica que lhes permitiu aproximar palavras que nunca dialogariam entre si. O que, por sua vez, ao fazer convergir diferentes tempos da escrita, deu ao leitor o poder de produzir um agora inovador.
Princípio talmúdico que influenciou Walter Benjamin e o fez pensar na possibilidade de rupturas inesperadas no desenrolar da historia. Ao invés de caminharem em linha reta, como pensa a razão iluminista, tanto os textos quanto a vida dos homens comportariam possibilidade súbitas de transformações na sua trajetória, experiência semelhante às manifestações que, sem aviso prévio ou evolução dialética, despertaram a nossa esperança durante o mês de junho do ano passado.
Na esteira da tradição interpretativa, o livro do Bereshít - Gênese agora editado se transforma em obra inédita para os leitores brasileiros. Publicado em 1994 pelo rabino argentino Marcos Edery, vem à luz em português com uma tradução primorosa, diretamente do hebraico, realizada por Davy Bogomoletz. Traduzir a Bíblia requer audácia e muita honestidade intelectual. Logo na Introdução, o Rabino Edery relata o seu esforço em manter o vigor do idioma original na sua tradução ao espanhol. Esforço igual ao que encontramos nesta edição, que se aproxima, por meios diversos, da transdução dos primeiros capítulos do Gênese realizada por Haroldo de Campos, o seu Gesta da Origem. Seja pela via poética que buscou reconstruir a potência originária em outra língua, seja pelo caminho da atenção a cada palavra, que deve ecoar o idioma em que foi escrita, ambos revelaram o mesmo propósito: a fidelidade ao texto criador.
A lealdade ao modo hebreu de lidar com o texto bíblico se encontra presente em cada linha desta edição bilíngue. Não somente por manter-se fiel à língua originaria, mas, também, ao fazê-la acompanhar, versículo por versículo, por comentários rabínicos que sempre caracterizaram os estudos judaicos da Bíblia. Nesta experiência que nos é oferecida, de podermos participar de um debate normalmente só acessível aos que frequentam academias, reside grande parte do seu ineditismo. Sejam as academias de estudo rabínico, a Yeshiváh, sejam elas as universitárias – voltadas aos estudos bíblicos, este tipo de conhecimento tem estado distante do leitor falante do português. Um salto que nos introduz num espaço surpreendente, onde cada palavra se torna decisiva. Os copistas da Toráh consideravam que um único erro ortográfico poderia destruir o mundo conforme o conhecemos. Ou, quem sabe, subitamente criar outro em seu lugar.
Não faltam, na presente edição, verdadeira obra artesanal que precisou de anos de trabalho de toda uma equipe, os exemplos enriquecedores do propósito editorial de nos levar ao encontro do vigor talmúdico. Ao não se deter diante do risco da heresia, um rico debate ao redor das sutilezas dos textos foi capaz de criar situações que nos surpreendem. O que percebemos, ao ler os comentaristas presentes nesta tradução da bíblia hebraica, produz em nós a esperança em um mundo capaz de resistir às tentações de sacralizar textos e deixá-los petrificados por redundâncias ideológicas. O que os tornaria imunes ao pensamento critico e criador.
A importância da desconstrução dos discursos unificadores fica explícita no episódio que envolveu o Rabi Eliezer Ben Hircanos num debate com outros sábios do Sinédrio. Querendo resolver a discussão a seu favor, ele invocou um julgamento “vindo de cima”. Em resposta, uma voz se fez ouvir, anunciando que a razão estava com ele. Sem duvidarem da autenticidade da revelação ou do valor dos argumentos do douto rabino, os companheiros rejeitaram a intromissão divina e expulsaram o companheiro do seu meio, uma espécie de suprema corte dos nossos dias. A razão deste gesto extremo, arrojado, está expressa no argumento de que “A Toráh não está no céu”: Desde que foi concedida aos humanos, passou a ser tratada como assunto terreno.
Como bem sabemos, interesses humanos sempre se intrometem quando se trata de lidar com a palavra da revelação. O rabino Edery relembra na Introdução os cuidados que precisou ter para se diferenciar de “interesses doutrinários” contidos em versões da Bíblia em circulação. Como exemplo, ele nos traz o eco de uma estratégia politica e ideológica expressa na maneira de lidar com a palavra hebraica ‘zéra’. Curiosamente, ela aparece como ‘raça’ no contexto do tema da circuncisão, e de outros modos em outros lugares quando, na verdade, significa ‘semente’ ou ‘descendência’, e não ‘raça’, palavra que não existe na língua hebraica.
É de extremo interesse para o leitor brasileiro, presenteado com este trabalho, ter em mente o quanto a tradução da Bíblia acabou por se transformar num campo de batalhas ideológicas. De um lado o cristianismo nascente, interessado em comprovar os seus direitos às promessas divinas dadas aos hebreus e de outro estes, por sua vez atentos em se manterem fiéis ao pacto originário enquanto filhos de Jacó. Um embate linguístico marcado por perseguições reais, motivadas pela resistência dos judeus em aceitarem pontos de vista propostos pela religião que se anunciava herdeira de Abraão. Embate travado ao redor da interpretação de versículos bíblicos, como aquele que narra a difícil gravidez de Rivkáh-Rebeca, e da previsão divina de que ela estaria carregando em seu ventre dois povos que permaneceriam em disputa. (Gen. 25:23) A profecia anunciava que ao final da contenda o primogênito serviria ao mais novo. Pela ótica cristã, os filhos mais novos no cenário histórico, agora autoproclamados continuadores do Pacto Abrãamico, esta previsão lhes diria respeito. Postulando uma equivalência ao filho Jacó, o verdadeiro Israel, esta interpretação reduz os judeus a descendentes de Esaú, o irmão mais velho do par de gêmeos.
Considerando que Esaú seria pai dos Idumeus, inimigos mortais dos hebreus, esta interpretação serviria estrategicamente para denegrir o filho mais velho aos seus próprios olhos. Luta por uma primogenitura que não permaneceu restrita aos dois descendentes da mesma família. A disputa interpretativa ao redor do testamento divino expandiu-se, alguns séculos mais tarde, através da entrada de Maomé e seus seguidores no palco da História Santa. Considerados pelo Alcorão como descendentes de Ismael, igualmente filho de Abraão e irmão de Isaac, os povos árabes que adotaram o Islã passaram a participar na disputa por uma herança que não admitia partilha.
A opção dos editores pela obra do Rabino Edery é também uma oportunidade ímpar de travarmos contato com a construção da subjetividade judaica. Amos Oz, o escritor israelense bem conhecido do público brasileiro, publicou em 2012 pela Yale University Press um ensaio intitulado “Jews and Words” (Judeus e Palavras). Apesar de seu ateísmo declarado, ele identifica na adesão milenar às narrativas hebraicas da Bíblia, e ao seu estudo – que manteve viva a língua original, o verdadeiro traço identitário dos que hoje se definem como judeus.
Sejam eles descendentes de kazares dos Urais, como argumenta o israelense, professor Shlomóh Sand, autor de A Invenção do Povo Judeu, que, evidentemente, pensou e escreveu em hebraico quando construiu a sua obra, ou filhos de um mix de etnias, de vassalos dominadas por outros povos, de casamentos que diluíram qualquer resquício supostamente racial, até violações e conversões forçadas, são parte das possibilidades constitutivas de um passado dos que ao longo do tempo têm se definido enquanto parte do povo judeu. E narrado as suas origens remetendo-a a uma obra escrita numa mesma língua unificadora. No final das contas, argumenta Amos Oz, esta adesão persistente a uma língua que cruzou milhares de anos navegando no bojo da Bíblia hebraica, foi o que marcou de maneira indelével o traço constitutivo da subjetividade judaica.
Adesão à uma língua e a um modo de estudar o texto postos, finalmente, à disposição de quem estiver disposto a entrar em contato com a raiz hebraica da cultura ocidental.
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Prof. Dr. Paulo Blank, é psicanalista e membro associado do Programa Transdisciplinar de Estudos Avançados da ECO-UFRJ.

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