JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

ESTUDO COMPARATIVO SOBRE O CONCEITO DE DIÁLOGO NO PENSAMENTO FILOSÓFICO E PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE E DE MARTIN BUBER por : Suzana Cortez1

INTRODUÇÃO
Como um dos principais elementos que compõe o pensamento educacional brasileiro,
o diálogo está presente na maior parte das Teorias Educacionais enquanto norteador dos
princípios das práticas pedagógicas, configurando-se como condição fundamental neste
processo. Por dentro da riqueza de reflexões pedagógicas encontradas nos diversos autores,
optamos neste estudo por uma análise mais aprofundada da descrição teórica e vivência do
diálogo a partir da visão de Paulo Freire e Martin Buber, nas suas diversas obras.
Dessa forma este estudo tem como objetivo a exploração da conceituação de “diálogo”
na perspectiva dos estudos teóricos tanto filosóficos quanto educacionais de Paulo Freire e de
Martin Buber ao longo de suas obras. As duas teorias no âmbito do que propomos estudar
defendem a importância da presença do diálogo nas relações inter-humanas, porém como já
antes afirmamos, possivelmente são conceituados mediante o pensamento e o contexto
pessoal e histórico de cada autor. Do ponto de vista teórico o método mais indicado no nosso
caso será o método hermenêutico de interpretação textual, e no sentido mais específico a
interpretação da conceituação do que vem a ser o diálogo para cada um dos autores referidos.

PAULO FREIRE
Esta parte do estudo tem como objetivo a exploração da conceituação de ‘diálogo’ na
perspectiva dos estudos teóricos de Paulo Freire ao longo de sua obra. Sendo assim,
tentaremos compreender a conceituação de diálogo como elemento básico da Teoria
Educacional freireana nos seus aspectos de permanência e mudanças ao longo da sua obra.
A dialogicidade no pensamento freireano é um dos pontos nodais de sua teoria. Este
conceito perpassa por todo seu método teórico-prático. O diálogo, mais do que uma conversa
entre dois, ou um mero ouvir, ou ainda o discursar, é em Freire uma atitude que deve ser
priorizada nas relações humanas. O diálogo para ele é de onde parte as relações pedagógicas,
vistas por um viés crítico, autônomo, livre, ético e por tudo isso, conceituado por ele como
uma postura problematizadora.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco, no Curso de Mestrado em
Educação. suzicortez@hotmail.com

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Apresentaremos neste estudo uma análise mais direcionada de obras significativas de
diferentes fases de Freire que demonstram suas preocupações e estudos de ordem dialógica.
Para os fins desse projeto apresentaremos as análises já feitas das obras: Educação como
Prática da Liberdade, Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Autonomia. Para tal
separamos em grandes blocos àquelas obras de Freire que se aproximam na conceituação e
outro bloco para as obras que se distanciam ou mesmo apresentam novo viés para esta
conceituação temática.
Neste primeiro bloco separamos as obras Educação Como Prática da Liberdade e
Pedagogia do Oprimido, estando orientadas pelo “pano de fundo” das décadas de 1950 e
1960. São construções das idéias fundamentais de Paulo Freire e encontra-se num mesmo
patamar das interpretações do conceito de diálogo em Freire. Foram os acontecimentos e suas
conseqüências histórico-políticas desta época que influenciaram estes escritos.
Em sua obra Educação Como Prática da Liberdade, Freire expressa o fundamento de
toda sua práxis: a comunicação enquanto ação especificamente do homem. Para que esta
comunicação/diálogo seja possível é necessário cuidar para que as palavras não caiam no
verbalismo ou mesmo se tornem vazias. Os sujeitos envolvidos devem antes se apropriar da
autenticidade/verdade para adquirirem o caráter genuíno do diálogo e, para tal, implicaria uma
postura crítica e reflexiva diante das palavras e ainda diante do mundo. Este mundo refere-se
a “uma realidade objetiva, independente dos homens, possível de ser conhecida” (FREIRE,
1971, p. 39). Outra condição está fundada na não exclusão do outro no mundo que o cerca.
Esta postura está descrita no sentido de aceitação mútua entre os sujeitos que dialogam, na
maneira crítica com que percebem o mundo e como se comportam socialmente e
politicamente diante deste.
É com este pensamento que Freire tenta demonstrar através de seu método prático
pedagógico o caminho para a libertação dos oprimidos (aqueles que estão à margem da
sociedade e submetidos ao poder de coerção dos opressores/detentores do poder) pela tomada
de consciência crítica e pelo desenvolvimento da vontade de lutar. É uma tentativa de resgatar
os oprimidos para seu caminho de humanização, para o qual originalmente todo o homem está
destinado.
Em Pedagogia do Oprimido Paulo Freire trata do diálogo enquanto ação estritamente
pertencente ao homem como uma vocação ontológica e histórica dos homens de serem mais
(1987, p. 57). Está voltada para a comunicação entre indivíduos/sujeitos de igual condição.
Esta idéia central a respeito do diálogo atravessa todas as obras aqui estudadas. Podemos
verificar que há uma permanência desta caracterização.

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Assim como em Pedagogia do Oprimido, na obra Educação Como Prática da
Liberdade, Freire aprofunda mais na descrição dos fundamentos do diálogo enquanto
condições fundamentais/ essenciais para este realizar-se.
Na Pedagogia da Autonomia a conceituação modifica-se no sentido de explicitamente
admitir o posicionamento de abertura entre os pólos como condição ao diálogo. Este
aprofundamento torna o diálogo não somente como um ato comunicativo entre sujeitos, mas
uma ação não preconceituosa de aceitação daquilo que está diante de nós. Esta admissão do
diferente não cabe ao diálogo entre opressores-oprimidos uma vez que estes na sua
constituição intelectual e política estão em posicionamentos opostos. Está aqui intencionada
uma abertura entre os oprimidos, embora diferentes, são iguais quando assumem os mesmos
interesses, unindo-se numa mesma causa: a libertação de si e dos outros.
Paulo Freire é categórico ao afirmar a condição de simpatia entre os pólos como
fundamento para suceder o diálogo. Esta condição é um tópico permanente em suas
afirmações. Isto explicaria a necessidade daquilo que indicamos como ‘suicídio de classe’.
Assim voltamos ao ponto inicial, onde os sujeitos para estabelecerem o diálogo genuíno
precisam posicionar-se numa mesma base de pensamento, devem ter amor entre eles, fé um
no outro o que seria impossível nas categorias apresentadas por Freire, entre opressor e
oprimido.
Podemos chegar a admitir uma separação sutil de dois blocos nas obras aqui
analisadas. Estariam, portanto, divididos entre uma conceituação de diálogo que perpassa
quase todo o pensamento pedagógico de Paulo Freire, e uma concepção que incluiria uma
dimensão diferenciada. Neste primeiro bloco incluem-se as obras: Educação como Prática da
Liberdade e a Pedagogia do Oprimido. No outro bloco a Pedagogia da Autonomia
contemplando sob nosso olhar, um viés sutil de um caráter de abertura ainda pouco
comentado por Freire. Este aspecto diferencial traz em si uma mudança aproximativa de uma
postura dialógica que se inclui o diferente, criando uma atmosfera de aceitação não
preconceituosa e, portanto, inclusiva.
A explicação mais aproximativa para estas mudanças que podemos observar está
relacionada ao contexto político-social e ao amadurecimento do pensamento pedagógico de
Paulo Freire. O contexto político-social das diferentes épocas – desde o final da década de
1960, a década de 1970 e nos anos 1990 – contribuíram para o desafio de estruturar seu
pensamento. É perceptível a influência política que as idéias de Freire sofreram. Ele mesmo
admite ser o ato pedagógico essencialmente uma ação política. Todo esse jogo político e forte
influência de suas idéias marcaram o cenário e o momento de desenvolvimento do

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pensamento pedagógico de Freire. No tocante ao diálogo é por tais razões que algumas
temáticas, já relatadas anteriormente irão surgir no discurso freireano somente após algumas
críticas e revisão destas.
É interessante relatar que Paulo Freire consegue apresentar coerência de sua teoria
com a sua prática independente das fases de sua vida. Mesmo fora do Brasil atravessando
momentos importantes na política de outros países ele esteve por dentro dos princípios que
sempre defendeu. Na sua obra Pedagogia da Autonomia, Freire revela algumas das críticas
feitas à sua teoria. Importante dizer que ele para algumas delas firmou ainda mais o seu ideal
sem abrir mão dele.

MARTIN BUBER
Martin Buber nasceu em Viena aos oito de fevereiro de 18782. Como uma das
primeiras recordações de sua vida, Buber, com apenas três anos de idade, vivenciou a
separação de seus pais. Após o divórcio partiu aos quatro anos para Lemberg, na Galícia,
região onde moravam seus avós paternos. Sua mãe por motivos desconhecidos,
verdadeiramente o abandonou. O fato do divórcio dos seus pais fora um acontecimento tão
marcante na vida do pequeno Buber que está indicado relatar como ele o vivenciou. A família
não lhe trazia explicações por aquela separação e seu desejo em rever sua mãe foi guardado
em seu íntimo. Buber, ainda muito pequeno, inquieto em saber o paradeiro de sua mãe,
estando ele na galeria que cercava todo o pátio da casa de seus avós, questionara à menina que
lhe prestava cuidados sobre a volta de sua mãe. A menina, respondendo sinceramente, afirma
que sua mãe não voltaria. Ocorreu neste momento através de um processo intuitivo o real
entendimento de que sua mãe não voltaria mais.
Aos 14 anos Buber voltou a morar com seu pai, porém o contato com sua mãe,
desfeito desde muito criança, só fora refeito após 20 anos, quando já adulto, casado e com
filhos. Este reencontro foi igualmente marcante na vida de Buber, embora, de tão frustrante,
tenha se mostrado um real desencontro. Este triste fato, que ao mesmo tempo serviu de ponto
de partida para sua busca de vivenciar momentos autênticos de encontro entre seres humanos,
foi relatado por ele no seu livro autobiográfico da seguinte forma:
Mais tarde construí para mim mesmo o sentido da palavra
‘desencontro’, através da qual estava descrito, aproximadamente, o
fracasso de um verdadeiro encontro entre seres humanos. Quando,

2 Os dados sobre vida e obra do autor foram coletados da introdução do livro: Eu e Tu (1979), escrito pelo
tradutor da obra, Newton Aquiles Von Zuben e ainda na obra Encontro: Fragmentos Autobiográficos (1991).

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após outros vinte anos, revi minha mãe, que viera de longe visitar a
mim, minha mulher e meus filhos, eu não conseguia olhar nos seus
olhos, ainda espantosamente bonitos, sem ouvir de algum lugar a
palavra ‘desencontro’ como se fosse dita a mim. Suponho que tudo o
que experimentei, no decorrer da minha vida, sobre o autêntico
encontro, tenha a sua primeira origem naquela hora na galeria.
(BUBER, 1991, p. 8).
Buber, ao lado de seu avô Salomão Buber, renomado estudioso da tradição e literatura
judaicas de Viena, e junto desta família, teve a oportunidade de experimentar a união da
tradição judaica autêntica e o espírito liberal da Haskalah3. Salomão Buber foi um dos líderes
do Haskalah na Galícia, no início do século XX. Foi neste ambiente que Buber tomou respeito
pelo estudo, aprendeu o hebraico, teve a oportunidade de ler os textos bíblicos e teve contato
com a tradição judaica.
A relação, o diálogo na atitude existencial do face-a-face, é o fato primordial do
pensamento de Martin Buber. Sua filosofia do diálogo/ da relação é o que norteia sua
reflexão. Em sua obra Eu e Tu, Buber expressa toda sua compreensão sobre o diálogo. A
relação dialógica perpassa os aspectos filosófico, religioso, político ou existencial, servindo
como foco central de sua mensagem. O que pode ser mais admirável nas suas obras é a
completa conexão com sua vida. Buber vivenciava este profundo e verdadeiro diálogo entre
sua vida e reflexão. Dessa forma compreendemos que a relação dialógica mencionada por
Buber antes fora vivenciada para depois se constituir em sistema conceitual, o que demonstra
a ligação das suas experiências pessoais na construção do seu pensamento.
Buber é conhecido tanto pelo seu estudo filosófico do diálogo quanto pelo seu estudo
sobre o Hassidismo, sobretudo pela sua obra “Die Erzaehlungen der Chassidim” em tradução
portuguesa, “Histórias do Rabi”. O profundo contato que Buber manteve neste movimento da
mística hassídica, trouxe perceptíveis influências, porém para ele este contato é mais do que
influências ou molde do seu pensamento. Relacionando-se pedagogicamente em situações
humanamente significativas, a relação pedagógica existente entre o Tzadik e seus hassidim4,

3 Geralmente, "haskalah" indica o movimento entre os judeus que teve início no fim do século XVIII na Europa
Oriental voltado ao abandono da exclusividade no seguimento das normas e tradições judaicas. Admitiu-se a
aquisição de conhecimento, maneiras e aspirações de vida moderna das nações que gentilmente permitiram a
residência dos judeus. Em um senso mais restrito, o termo denota o estudo do hebraico bíblico e partes da
literatura hebraica poética, científica e critica. O termo é algumas vezes usado para descrever o estudo critico
moderno de livros religiosos judeus, tais como o Talmude e o Mishna, quando usado para diferenciar esses
estudos modernos de antigos métodos usados pelos judeus ortodoxos. Seus aderentes são comumente chamados
de Maskilim.

4 Os tzadikim são os líderes espirituais do hassidismo, e os hassidim os fiéis desse movimento encontrado dentro
do judaísmo.

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questiona com isso boa parte das teorias modernas da educação nas suas tendências
generalizadoras e técnicas.
Em sua principal obra Eu e Tu (1979), Martin Buber faz um estudo sobre as relações
que o homem vivencia em sua existência. As diferentes relações que o autor analisou indicam
que o mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade das atitudes que este pode
apresentar em relação àquele. A atitude na relação é um ato essencial que varia de acordo com
a palavra-princípio proferida. Esta palavra-princípio proferida define sua existência, define o
que se é pela atitude. Cada atitude é atualizada por um das palavras-princípio: Eu-Tu - que
representa as relações, que o autor de fato considera humanas - ou Eu-Isso - relações em que o
outro está sendo considerado objeto.
O Eu-Tu e Eu-Isso são as duas maneiras de ser, de existência pessoal em que o homem
está inserido. Mesmo sendo, na percepção do autor, a relação Eu-Tu a original, não é essa que
nos tempos atuais prevalece. Ao contrário, a grande preocupação de Buber é exatamente o
fato de que as relações Eu-Isso sempre absorvem mais o ser humano a ponto de que as de Eu-
Tu parecem esquecidas pela maioria das pessoas. Podemos considerar o objetivo central da
obra de Buber fazer os homens relembrarem da relação Eu-Tu e suas repercussões positivas
no mundo Eu-Isso. O Eu de uma palavra-princípio é diferente do Eu de outra. Isto não
significa que existem dois “eus”, mas a existência de duas possibilidades do Eu se manifestar.
São dois princípios da existência humana: dialógico e monológico, respectivamente.
O Eu de Eu-Isso usa a palavra para conhecer o mundo, ordená-lo, transformá-lo,
defini-lo. Este mundo é objeto de uso e de experiência. Nessa relação vejo a outra pessoa
como uma coisa, com definições, delimitações. Porém se vejo o outro sem percebe-lo como
objeto, estabelece-se uma relação Eu-Tu. À primeira vista parece um ato impossível de
realizar, ver o outro, mas não como objeto. Estamos acostumados a fazer de tudo um objeto
de percepção, de pensamentos ou de imaginação. Na relação Eu-Tu não vou deixar de ter
essas percepções. Mas nada delas continua com uma importância específica, discriminatória.
O que importa é ver além das características particulares o lado da pessoa, o cerne vivo da sua
existência. Trata-se, portanto, de uma outra maneira de perceber a pessoa. É a percepção dela
na sua totalidade. Para que a relação Eu-Tu aconteça e seja um momento dialógico é
necessário o elemento da totalidade. Esta totalidade do Eu que profere a palavra-princípio
deve ser compreendida como um ato totalizador, uma visão de todo o ser.
Buber acredita que o mundo do Isso é indispensável para a existência humana, porque
é nele onde podemos entender o outro. Não se deve entender a atitude Eu-Isso como negativa
ou inferior, ao contrário, ela é uma atitude do homem frente ao mundo e é através dela que

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podem acontecer as atividades sociais, culturais e científicas da humanidade. A relação Eu-
Isso se torna negativa quando o homem não consegue disponibilizar-se para o outro tipo de
relação para o Eu-Tu.
As relações Eu-Tu foram por Buber divididas em três esferas. A primeira esfera é a
relação Eu-Tu com a natureza. Não se tem uma linguagem adequada no âmbito dessa relação,
porque, de certa forma, a natureza não emite a palavra. Quando aceitamos a natureza como
Tu, não o fazemos através de palavras, mas a proferimos através de todo nosso ser. Na relação
Eu-Tu com a natureza, não é a natureza que se modifica diante do Eu. Para que a natureza
torne-se um Tu para o homem, a forma em que ele se relaciona com ela tem que modificar.
Nessa relação a natureza não é mais objeto de prazer, de utilidade, de exploração.
Encontramos-nos unidos com ela na sua totalidade. Buber ainda na adolescência vivenciou o
dialógico concretamente, esta relação Eu-Tu com a natureza, quando na casa de seu avô,
alisava seu cavalo favorito e num dado momento algo lhe ocorreu. Ele entrou numa relação
dialógica com seu cavalo, neste momento o cavalo se tornou presente para ele em sua
totalidade, assim como ele para com seu cavalo. Ambos se entenderam em seu íntimo e não
havia nenhum interesse, enxergando um ao outro como um ser próprio, único e inteiro. Assim
é a relação dialógica, ela por “graça” acontece.
A segunda esfera está na vida com os homens. Pode-se receber e endereçar a palavra-
princípio Eu-Tu. Este Tu está relacionado ao diálogo, à participação efetiva e recíproca de
ambas as partes. A terceira esfera é a vida com os seres espirituais. É a relação com Deus.
Para Buber a relação com Deus não leva o homem para fora da sua vida concreta. Na verdade
ela acontece por dentro de qualquer relação Eu-Tu com a natureza e com os outros homens.
Não existe para ele um acesso direto a Deus. Deus se manifesta através do Eu das duas
primeiras relações. Desta forma, cada relação verdadeira toca no Tu-Eterno, cai fora de tempo
e espaço como limites do nosso pensamento.
Esse fato tem conseqüências em relação a nossa intenção de vivenciar o Eu-Tu. Não é
um acontecimento que está no nosso domínio, não podemos fazer acontecer essa relação.
Buber afirma que “o Tu encontra-se comigo por graça” (1979, p.12); não é através de uma
procura que é encontrado. Longe de poder gerar essa relação temos que aguardar que ela
aconteça. Existe somente uma forma de favorecer esse acontecimento. Podemos desenvolver
uma postura de abertura diante do encontro de Eu e Tu. Mais adiante indicamos algumas
atitudes que de fato podem ser consideradas apropriadas a uma abertura que favorece a
relação Eu-Tu. Nem por isso podemos esperar permanecer nesta relação. Ela sempre será
passageira, momentânea. Mesmo assim, esses momentos não ficam sem repercussão nos

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estados Eu-Isso que fatalmente seguem a relação Eu-tu. Ao contrário, a única forma de
humanizar sempre mais a vida no Eu-Isso é iluminá-la a partir dos momentos Eu-Tu. Meta da
recordação da relação original do Eu-Tu, portanto, é uma modificação das relações Eu-Isso, a
modificação da vida cotidiana a partir das vivências autênticas entre o Eu e o Tu.
Buber, em um de seus estudos na obra Do Diálogo e do Dialógico, distinguiu o
fenômeno social e o inter-humano, como ele às vezes chama a relação Eu-Tu. O fenômeno
social é “a coexistência de uma multiplicidade de homens, o vínculo que os une um-ao-outro,
tem como conseqüência experiência e reações em comum” (1982, p. 136). Para Buber o inter-
humano é “uma categoria particular da nossa existência que está diante de nós” (1982, p.
136), porém para que o homem possa desfrutar dos momentos de inter-humano, deve primeiro
compreende-lo tornando-se consciente desta particularidade.
Buber explica como se estabelecem as relações dialógicas inter-humanas que
extrapolam o sentido social das relações mais comuns. Existem coisas que acontecem entre
duas pessoas, por exemplo, que não possuem características sociais. Quando duas pessoas se
entreolham e se desprende do mundo a sua volta, e que naquele momento existe somente o
outro para si. Este vínculo não se constrói por uma questão social de interesse comum, eles
podem não possuir uma ligação ou amizade entre si, mas algo lhes toca sem nenhuma
pretensão ou motivações interesseiras, e havendo reciprocidade e uma profunda comunicação,
sem que um tivesse o outro como objeto. Isto exemplifica o acontecimento de uma relação de
inter-humano, ou seja, uma relação dialógica entre EU e TU, como foi nomeada por Buber.
Para que haja uma conversação genuína é necessário ver o outro como ele é, tendo
conhecimento do fato que o outro é uma pessoa de maneira única e própria, ou seja, deve
acontecer aceitação do outro como se é, sem interesse quanto à outra pessoa. Sendo assim, o
homem pode dirigir a palavra com sinceridade e, através de uma percepção do outro enquanto
totalidade, uma relação inter-humana se estabelece.

PRIMEIRAS INDICAÇÕES PARA UMA REFLEXÃO CONCLUSIVA
O diálogo enquanto objeto de nosso estudo é categoria central nas teorias de Paulo
Freire e de Martin Buber. Muito embora as duas teorias defendam e desenvolvam o aspecto
dialógico nas relações inter-humanas, o fazem de maneiras distintas. Pudemos perceber que,
de fato, essas diferenças, ora aparentes, estão distanciadas entre si pela influência e
propriedade de cada autor. Cada um deles apresenta uma maneira particular em estruturar o
pensamento dialógico, porém, tanto para Freire como para Buber, o diálogo é um
aproximador entre os indivíduos e a sua atuação e vivência corresponde a repercussões

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positivas. Para Freire estas repercussões estão voltadas mais para o âmbito educacional e
político-social, enquanto Buber, as repercussões voltam-se para a vida como um todo
inclusive no âmbito espiritual. Buber compreende e percebe o ser humano possuidor de
diversas dimensões: emocional, educacional, psicológica, ética e etc. Porém, todos eles
vivendo numa integralidade. É desta maneira integral que tenta incluir a dimensão espiritual
no processo pedagógico.
Paulo Freire considera Martin Buber um teórico aproximado à sua conceituação e
discussão dialógica, porém podemos adiantar que Martin Buber de forma mais geral apresenta
o diálogo numa perspectiva mais espiritual, dimensão esta não estudada por Freire. Para nós
as maiores divergências entre os autores estão presentes na precisão de afinidades entre os
pólos dialógicos nas relações descrita por Freire. Já em Buber a relação acontece
independente do posicionamento político, ético, ideológico dos pólos envolvidos. Outro
aspecto nesta comparação está na maneira como esta relação acontece. Para Freire existe uma
maneira do diálogo se estabelecer através de mecanismos práticos. Por exemplo: deve existir
uma intencionalidade dos indivíduos envolvidos na relação. Com vimos em Buber o aspecto
da “graça” é o que orienta e permite à relação estabelecer-se. A relação educacional deve
basear-se na postura dialógica enquanto princípio, assim diz Freire. No pensamento de Buber
as relações pedagógicas e dialógicas são momentos distintos e com repercussões distintas.

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10

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