Yom Teruach: o tocar do shofar em Rosh Hashaná - Jayme Fucs Bar
Nos tempos bíblicos, havia dois começos de ano. O primeiro no mês de Nissan — na primavera — em que comemorávamos o início do ano agrícola e a saída da Casa de Israel da escravidão do Egito. O segundo era no mês de Tishrei — no outono —, que celebrava o fim do ano agrícola e marcava a criação de toda a humanidade, simbolizada por Adam e Hava.
Outra curiosidade é que o chamado Rosh Hashaná, o nome da festa que
conhecemos hoje, era conhecido nas fontes da Torá com outro nome: “Yom Teruah” ou “a Lembrança da Teruah”. O nome “Teruah”, em hebraico, se refere ao ato de tocar o shofar. Na verdade, essa era a festa de tocar a trombeta.
Por que tocar trombeta (shofar) e qual o seu significado?
Na Torá, apesar de estar claro que o ato de tocar o shofar em Rosh Hashaná é uma mitzá, não há uma resposta muito clara sobre os motivos por trás do toque, mas o judaísmo é brilhante em sua sabedoria, pois nos faz refletir e pensar. Sempre há alguém que procura dar uma resposta e oferecer interpretações para essas questões.
Um deles é o mestre Rambam — Maimônides —, que nos dá uma resposta curta, mas bastante complexa sobre essa questão. Ele escreve assim: “Tocar o shofar é um dos preceitos que está além de nossa capacidade de compreensão humana”. O interessante é que Rambam usou esse mesmo conceito “além da nossa capacidade humana” quando fala sobre Deus! Mas por que Rambam coloca o ato de tocar o shofar na mesma esfera de Deus? Será que Rambam via, o som melancólico do shofar como uma forma de manifestação divina?
Para Saadia Gaon, o Rosh Hashaná e o toque do shofar representam o dia em que se anuncia o início da criação da humanidade. É Saadia Gaon que nos diz que “da mesma forma em que se tocam trombetas no dia da coroação de um rei de carne e osso, nós devemos tocar o shofar para coroá-Lo o Rei do Universo”.
Outra relação com o toque do shofar é o sacrifício de Isaac, que também aconteceu no mês de Tishrei, quando Abrão estava disposto a sacrificar a vida de seu filho por uma ordem divina e, no último instante, o sacrifício foi substituído por um carneiro, que tinha seus chifres presos num arbusto. Seus chifres [shofar] nos relembram que somos todos parte inseparáveis dessa unidade.
Bernardo Kliksberg nos chama a atenção para esse conceito de “unidade”. O Único será a base dos princípios do judaísmo. Isso quer dizer que “Todos os seres humanos são iguais no mais amplo transcendente, somos iguais desde a nossa origem, somos iguais na responsabilidade uns com os outros”.
De acordo com a tradição da Torá, Rosh Hashaná não é somente um dia importante para os judeus, e sim para a toda a humanidade, pois é o dia do juízo da consciência de todos os seres humanos, em que colocamos sob julgamento nossos atos. Por isso é que Rosh Hashaná também é conhecida como o “Dia do Julgamento”. Esse é o dia em que não somente comemoramos o “Ano Novo”, e sim julgamos nossos atos perante a humanidade.
Então, por que somos julgados em Rosh Hashaná e perdoados em Yom Kipur?
O judaísmo, como uma cultura milenar de grande sabedoria, oferece para nós o Rosh Hashaná como um momento de reflexão para que possamos parar e julgar nossos próprios atos. De forma consciente, o Rosh Hashaná permite que saibamos pedir de forma consciente o perdão para os outros e para nós mesmos em Yom Kipur!
Muitos dos sábios judeus enfatizam o papel do shofar relacionando com o momento em que se anuncia que estamos entrando em um dia especial para cada um de nós, uma oportunidade para que possamos ter uma “sessão celestial especial”, na qual poderemos realizar interiormente o nosso próprio julgamento. O tocar melancólico do shofar é a fórmula de nos levar às profundezas de nossas almas. Como nos queria dizer Maimônides: através do shofar, sentimos em nossos corações uma partícula divina, que pode abrir nossos pensamentos para uma chamada a “melhorar nossas ações uns com os outros”.
O famoso filósofo judeu Fílon de Alexandria definiu o significados do tocar do shofar com base no que o Povo de Israel passou no Monte Sinai: “E houve trovões e relâmpagos e nuvem pesada sobre o monte e o som do shofar muito forte estremeceu todo o povo que estava no acampamento”.
De acordo com Fílon, o toque do shofar no Monte Sinai foi um alerta não somente ao Povo de Israel, e sim para toda a humanidade, um grito para o fim das guerras e da violência, um grito da esperança de paz e prosperidade. Para Fílon, as orações de Rosh Hashaná são “a condenação das maldades no mundo, um pedido da extinção de todos os regimes que geram as desgraças e tirania”.
Há uma história, no Talmud, que expressa de forma brilhante a ideia do tocar o shofar em Rosh Hashaná. Conta-se que o filho de um rei tinha ido pelo mau caminho. Seu pai lhe mandou uma mensagem, rogando-lhe, por meio do toque do shofar: “Volta, filho”. O filho responde: “Como posso voltar? Estou envergonhado de voltar à tua presença”. Então, o pai manda-lhe outra mensagem por meio de outro toque do shofar, dizendo: “Volta até onde conseguires, e eu irei encontrar-te no restante do caminho”.
Rosh Hashaná é o ato de poder ouvir no toque do shofar as palavras ocultas que vêm de seu som, palavras que chegam de formas diferentes para cada um de nós, como nesse conto do Talmud, em que o toque do shofar simboliza não ter medo de voltar até onde conseguirmos, pois, se fizermos isso, teremos com certeza alguém para encontrar mesmo nos lugares mais sombrios e terríveis do mundo.