JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

O Ingresso do Judeu na Sociedade Européia

A mudança decisiva na história da sociedade judaica começou somente no momento em que seus membros transmutaram seus objetivos sociais transladando-os da sociedade judaica para a sociedade não-judia que os rodeava. Este processo deu início quando os judeus começaram a ver a sociedade não-judia não apenas como uma esfera de atividades econômicas, mas também como uma fonte de gratificações sociais. A conseqüência foi a aproximação da sociedade judaica e da sociedade gentil. A expansão das aspirações sociais do judeu, sem que fosse necessária sua conversão ao cristianismo, tinha como condição o surgimento de uma nova camada social na sociedade gentil. Para este novo estrato, as diferenças religiosas perdiam seu poder restritivo. Esta camada não existia no estado absolutista, mas crescia, se desenvolvia e se cristalizava em uma nova formação social: a cidadania independente. Esta formação nasce com a atividade econômica com orientação para o mercado livre. O estado absolutista se relacionava com esta atividade econômica com tolerância e às vezes até mesmo incentivando-a, enquanto que ao mesmo tempo tentava esvaziar as classes sociais de seu conteúdo político. Ao fazer isto, produziu sem querer, o enfraquecimento da estrutura das classes da sociedade feudal. Os indivíduos que não encontravam a razão de sua existência nem satisfação nos marcos tradicionais existentes, (guildas e grêmios de comerciantes e artesãos, a nobreza em suas profissões e seu ostentoso estilo de vida) aumentavam cada vez mais. Esta população insatisfeita encontrou apoio na livre atividade econômica baseada no cálculo racional das possibilidades do mercado. O surgimento do mercado livre está em relação recíproca com o distanciamento dos indivíduos de suas classes. Estes dois fenômenos: o surgimento do mercado livre e o distanciamento dos indivíduos de suas classes sociais estão condicionados por múltiplos e complicados fatores políticos e técnicos. A descrição detalhada destes fatores se encontram além da finalidade deste presente trabalho.
A sociedade judaica estabelece um contato real com este processo histórico somente em uma etapa tardia, no momento em que a mobilidade na esfera econômica-social deixa de ser um fenômeno isolado. A partir deste momento a independência econômica-social foi condição primordial para a formação de todo um estrato que buscou expressão e justificativa nas concepções e requerimentos teóricos, cujos fundamentos se baseiam em distintas fontes. As explicações sobre o direito de cada homem à independência ilimitada foram tomadas do "direito natural". A filosofia racionalista reconheceu no homem o poder de decidir seus atos baseando-se apenas em seu intelecto e desmatelando os obstáculos impostos pela tradição cultural e religiosa. A ética utilitarista identificou o bom com o útil apoiando moralmente as aspirações práticas do cidadão. Todos os fundamentos do racionalismo e do Aufklarung foram utilizados para esboçar uma nova imagem de mundo, distinta e estranha à realidade histórica existente. Nesta imagem do futuro desapareceram as diferenças entre classes e religões ficando apenas o vínculo do homem ilustrado com seu próximo. Não é surpreendente, então, que o ideal racionalista incluisse também o judeu dentro da sociedade humana imaginada, não como praticante de uma religião nem como membro de uma nação determinada, mas como um homem sem nenhuma característica específica.
A imagem racionalista foi-se criando desde a metade do séc. XVIII em diante, enquanto que a inclusão dos judeus foi feita um pouco mais tarde no último terço deste século. A inclusão dos judeus, porém, na imagem do futuro não modificava o lugar que estes ocupavam na realidade social até então. Uma característica comum à epóca racionalista na França e ao Aufklrung na Alemanha foi que os homens ilustrados especularam sobre princípios que não estavam em suas mãos realizar. O reconhecimento de princípios se manifestou neste momento apenas como um fenômeno secundário: o surgimento em alguns lugares de uma nova base para o agrupamento dos portadores da nova ideologia. Os homens ilustrados que se identificaram com a nova imagem de futuro se reúnem em torno de uma formação social separada. Enquanto que na sociedade de classes cada classe possuía sua camada de intelectuais (escritores, advogados nas cortes do reis, professores para os cidadãos organizados em guildas, estudiosos da lei hebraica na sociedade judaica) surge em seu lugar agora uma nova camada de intelectuais com vida própria aparentemente além de todas as classes. Este estrato social foi definido como "a elite do espírito", quer dizer, como um agrupamento social que exige de seus membros o cultivo dos valores do espírito. A criação desta "elite" é um resultado secundário do desenvolvimento da cidadania independente, apesar de não ser idêntica a esta classe e seus membros não pertencerem à mesma. Estas idéias, uma vez sintetizadas e formuladas, atraíram e fascinaram por seu próprio poder de convicção, pela coerência interna de seu método, por satisfazer a exigência de justiça e pela promessa de uma ordem universal reformulada. A posteriori aderiram também aos ideais do Iluminismo aqueles que não possuíam status de cidadãos: nobres e cleros e até mesmo ministros e reis que até este momento garantizavam a ordem social então aceita.
O começo da influência deste processo sobre a sociedade judaica consiste na identificação social dos judeus ilustrados com os homens ilustrados de todas as nações. Esta identificação é diferente da que aparentemente existia em épocas anteriores em alguns indivíduos, quem desde o ponto de vista de seus vínculos sociais e culturais estavam imersos no mundo da tradição, mas que adotaram uma espécie de segunda consciência ilustrada. Estes indivíduos se distingüiram entre a massa do povo gentil, com a qual se relacionava com despreço, e entre os homens ilustrados das nações que gozavam de sua admiração e consideração. Mas visto que neste caso se falava unicamente de identificação ideológica, isto não produziu conseqüências sociais e significativas. Produziram-se mudanças sociais unicamente naqueles lugares onde o Iluminismo se converte na base de coesão social. Isto sucedeu a meados do séc. XVIII, em especial nos Estados Alemães, nos quais o fato de pertencer a la “ intelligentzia” deixou de ser um símbolo de prestígio pessoal para se converter na causa de pertencer a um grupo definido e determinado. Os homens ilustrados criaram laços entre si através da leitura das mesmas publicações, livros e revistas, reuniões tanto espontâneas como organizadas, e por último por meio da criação de círculos sociais que tinham como único objetivo o cultivo dos valores do Iluminismo em um ambiente social adequado.
Esta nova formação social possui especial importância, desde o ponto de vista do objetivo da nossa investigação, visto que o novo caráter sociológico da mesma permitiu introduzir uma inovação, quer dizer, também os judeus foram aceitos como membros igualitários. O grupo que se reuniu em torno ao reconhecimento dos valores do Iluminismo eliminando os critérios seletivos que podiam limitar o ingresso a membros de uma só religião, visto que eles se situaram além da divisão de classes segundo religiões, contrária a suas concepções racionalistas. Excluir os judeus deste grupo significava um atentado ao fundamento teórico dos princípios em que se baseava a sua existência.
Apesar de que o ingresso dos judeus estava subentendido segundo os critérios mantidos por grupos ilustrados, para os judeus isto constituía uma mudança notável. A mudança não residia obviamente no ato do encontro entre judeus e sim em seu novo fundamento sociológico. Até este momento os encontros tiveram uma finalidade concreta além do próprio encontro. Esta reuniões dos membros dos novos grupos tinham como objetivo o próprio encontro.
Estas reuniões outorgaram a seus membros o sentimento de pertencer a um grupo original e íntimo. Pode-se também supôr que o distanciamento de suas classes e por conseguinte isolamento relativo, foram os fatores que impulsaram os distintos indivíduos a se unir em novas formas de agrupamento. De qualquer maneira eles encontravam sua principal satisfação nas reuniões em si e fixavam objetivos definidos à existência de seus círculos, tais como o cultivo das ciências, a ajuda mútua, etc., sendo estes não mais que objetivos secundários. O objetivo principal e a justificativa destes encontros era o prazer de se relacionar com pessoas de iguais interesses e aspirações. E exatamente aqui está o surpreendente em relação à sociedade judia, cujos membros transladaram parte de seu ser a um terreno social e cultural comum a indivíduos não-judeus.
O acontecer social assim como foi descrito aqui destaca os fatores que constituíram o cenário e a condição para o desenvolvimento da personalidade de Moshe Mendelsohn e muitos outros de menor importância em talento e caráter. Mendelsohn chegou de um modo casual a um grupo de homens ilustrados de Berlim e se integrou a ele até tal ponto que todo seu ser espiritual e sua atividade social estavam definidos e limitados por sua dupla pertenência: por um lado à sua comunidade, a sociedade judaica tradicional e por outro a um círculo de homens ilustrados por meio dos quais pertencia também à sociedade neutra européia.
O fato de que alguém possa se encontrar ao mesmo tempo em dois grupos sociais, considerados pela maioria como dois mundos entre os quais todo o contato se baseava em objetivos concretos e utilitários, admirava a quem o observava. Houve várias tentativas de colocar Mendelsohn em situação de decidir obrigatoriamente entre o mundo judeu e o cristão. A exortação pública de Lavater e Mendelsohn sobre aceitar o cristianismo ou negá-lo é o mais conhecido destas tentativas. Na verdade estas propostas erram de objetivo central, visto que a principal conquista social dos homens ilustrados estava exatamente na criação de uma base neutra que estivesse além dos antagonismos religiosos. O humano-universal constituía um valor em si mesmo sendo o fundamento unificador para todos aqueles que o reconheciam e concordavam. A exigência de decidir entre cristianismo e judaísmo diminui sua urgência e sua gravidade. Surge uma terceira esfera, a esfera da humanidade neutra na qual podiam se integrar membros de distintas religiões. No terreno ideológico se criou esta terceira esfera baseando-se nos valores humanistas universais do Iluminismo e no terreno social nos agrupamentos neutros dos homens ilustrados. Baseando-se em claros testimunhos históricos pode-se determinar que nos Estado Alemães esta terceira esfera se fortaleceu especialmente na década entre 1170 e 1780, aproximadamente.
O fato de pertencer à terceira esfera, a neutra, não propunha a ruptura de seus membros com sua esfera social originária. Na maioria dos casos este novo marco abrangeu apenas parte de seus membros. Em alguns terrenos de sua vida, os cristãos seguiram sendo cristãos e os judeus, judeus. Mendelsohn e outros homens ilustrados como ele conservaram seus vínculos com a vida e os princípios originários. Dividiram sua vida e seu ser entre dois mundos dos quais faziam parte alternadamente. Porém, esta dupla posição não podia ser mantida facilmente. Para muitos judeus o contato neutro com a sociedade não-judia constituía a justificativa para se afastar do judaísmo distanciamento este definitivo. Os agrupamentos de ilustrados, aparentemente neutros, serviram, às vezes, aos judeus ilustrados como estação intermediária e de transição ao cristianismo. O processo de afastamento aconteceu nos famosos salões das mulheres judias da geração que seguiu a morte de Mendelsohn. Os salões de Raquel Varnhagen e Henrietta Herz em Berlim. Os de Feiguele Arnstein e de Tzipora Eskeles em Viena foram a princípio pontos de encontro neutros onde judeus e gentis podiam estar juntos sem prestar atenção às diferenças de origem. Apesar de que o entretenimento constituía um fim em si mesmo, a esfera unificadora dos salões determinou um estilo de costumes e maneiras que negava o modo de vida judeu tradicional de maneira mais contundente que o estilo dos grupos de homens ilustrados em que Mendelsohn participou por exemplo. A verdade é que estes salões copiaram o estilo de vida e as linhas básicas de conduta em voga nas cortes de ministros e reis. Estes marcos nos quais a cultura gentil dominava se revelaram assimiladores. A participação na vida dos salões trouxe como conseqüência a adesão à sociedade gentil, à sua religião e à sua igreja.
Se os novos convertidos ao cristianismo necessitavam um apoio ideológico para a sua decisão aqui encontraram apoio eficiente na teoria que sustentava a existência de um núcleo positivo comum a todas as religiões e que negava toda importância à especifidade das religões históricas. Quem tinha esta concepção podia acreditar que mudando sua religião mudaria apenas um revestimento externo que de qualquer maneira não tinha importância. Um dos dirigentes da comunidade judaica, David Friedlander pensava em base a este fundamento, que a comunidade judaica em sua totalidade podia se integrar ao cristianismo sem necessidade de negar os princípios de sua fé. Em relação aos judeus os quais as tentações sociais os levaram a aceitar a religião dominante no Estado, é claro que esta teoria podia tranqüilizar sua consciência e anular inibições psicológicas.
A neutralização entre a sociedade judia e a não-judia produziu em grande medida a assimilação de grandes partes da primeira no interior da sociedade cristã; porém, se este tivesse sido o único resultado do processo o mesmo não seria uma mudança na vida da sociedade judaica em si. Um número maior de judeus que o dos que se converteram ao cristianismo durante este período foi abandonando a sociedade tradicional durante distintas épocas e apesar disso a sociedade tradicional seguiu de pé.
O distanciamento da comunidade judaica é apenas uma das possíveis respostas diante das condições de neutralização. Mendelsohn mesmo, como se sabe, não foi por este caminho mas tampouco foi capaz de conservar esta dualidade baseada na divisão de dois campos de existência: o campo judeu e o neutro. Desde a polêmica com Lavater (1770) e à medida que se anunciavam as mudanças que se aproximavam da ordem da sociedade classista em geral e da classe judaica em particular, Mendelsohn foi se afastando cada vez mais de sua posição passiva. Sentindo um sentimento de responsabilidade pelo destino da comunidade judaica, se mostrou disposto a aceitar cargos que por sua própria natureza assinalaram novos caminhos para a sociedade judaica. A partir deste momento esta é a posição dos homens ilustrados cuja identificação com a sociedade neutra os discrimina em relação aos filhos da comunidade tradicional mas cujos vínculos com esta, com seus valores e com sua cultura não lhes permitem se separar da mesmo de modo radical. Muitos dos filhos desta geração se viram obrigados a escolher entre a possibilidade de manter os laços com sua comunidade judaica de origem ou sua conversão ao cristianismo. Visto que a decisão dependia do indivíduo submetido à intensa pressão de fatores psicológicos e sociais complexos era impossível pensar que a decisão seria invariavelmente em favor da conversão ao cristianismo. Obviamente houve homens ilustrados que mantiveram um vínculo forte e profundo com o judaísmo até o ponto que a conversão ao cristianismo não era considerada como uma possibilidade teórica concreta. Por outro lado nem todos os homens ilustrados tinham iguais possibilidade de se integrar à sociedade cristã. Os primeiros favorecidos por esta possibilidade eram os grandes capitalistas e em especial seus filhos os quais sua riqueza, ilustração e hábitos de vida os colocaram no mesmo nível dos cristãos de sua idade. Enquanto isso os mais pobres, em especial, aqueles que ainda portavam em seu aspecto e em sua fala o selo de sua origem, tiveram dificuldade de encontrar um porta de entrada até mesmo nos agrupamentos neutros e muito mais nos salões. Apesar das barreiras entre a sociedade judaica e a gentil, se agruparam entre eles mesmos. Como resultado desta situação a dimensão social assegurou a existência desta camada intermediária que saiu da sociedade tradicional judaica mas não teve acesso à sociedade cristã.
Esta camada de homens ilustrados se define agora por sua identificação com sua comunidade de origem mas com reservas em relação a seu sistema tradicional de valores. Seus membros apesar de não participarem nos círculos neutros convertem estes em grupos de referência. Os judeus ilustrados recebem deles e das teorias por eles apoiadas os critérios em base aos quais valorizam a própria realidade judaica. De qualquer maneira, a tradição já não pode mais ser usada como único fundamento para justificar o que existe e o que é aceito. Com os critérios do intelecto, da razão e da natureza – termos que nesta época possuem conotações semelhantes – são avaliadas então as instituições da sociedade tradicional e mais importante ainda, sobre o fundamento de sua identificação com os valores da sociedade neutra, os homens ilustrados imaginam o futuro da sociedade judaica. Aspirando definir o futuro da sociedade tal como eles o compreendem, assumem a autoridade de guiar a comunidade inteira. Considerados como extraviados e transgressores por quem possuía legado à tradição, viam a si mesmos como os pioneiros do futuro e seus mensageiros. A partir da década de 80 do séc. XVIII aparecem como grupo que possui singularidade social e ideológica e reclama o direito de dirigir toda a sociedade, como toda elite social. O surgimento desta nova elite contemporânea à sociedade tradicional constitui um acontecimento social decisivo na história da sociedade judaica deste período.
Iaacov Katz, Masoret Umashber ( Tradição e Crise) Ed. Mosad Bialik, Jerusalém 1963, pág. 290-297 ( em hebraico).

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