O tema é difícil, peço em meu interior para que a inspiração envolva as palavras e nosso entendimento.
Qual é o problema? . Se for atacado, se me humilham, se estou sujeito a agressões de todo tipo, como posso defender-me delas sem a violência? Como posso frear uma força sem contrapor outra força similar? Se um poder quer me sufocar, ou a meu grupo e, além disso, esse poder me difama pelos meios de comunicação, que outra opção me deixa que não a de deter essa violência de algum modo? Como pode fazer o débil para enfrentar-se à violência do forte?
Ninguém quer a violência, mas como a violência é exercida sobre a gente, sua utilização fica sempre justificada. A violência para frear a violência tem um sabor de legitimidade. “A Não Violência está bem quando estamos entre gente civilizada, mas quando temos na frente uns trogloditas escutamos dizer: fique calado senhor não violento e nos deixe colocar ordem na desordem”. Acho que este é mais ou menos o tema em questão. Como ser não violento no meio de um mundo violento.
A violência, não é algo a mais em nossa forma de vida da qual possamos prescindir assim tão fácil. É um modo de ação social que vem de longe na história humana, é uma reação ao temor e ao medo bastante natural e bastante animal. A violência tem raízes profundas em nós e não é questão de erradicá-la por decreto. A organização social está baseada na violência. Violência monopolizada pelos estados e em última instância pelos exércitos. Quando a sociedade entra em pânico os exércitos reagem. Quando o temor se apodera da pessoa, também a violência se apodera dela. Podemos dizer de nós somos gente boa e pacífica, mas se de repente algo põe em perigo o que é meu, o que me dá estabilidade, se alguém entra furtivamente para arrebatá-lo, a violência emerge desde as camadas tectônicas da minha consciência e um símio violento me substitui e ocupa meu corpo e estará pronto para reagir. Se o que me ataca é muito poderoso, então contenho minha violência que transformada em ressentimento e em ódio buscará sua revanche. Ali espera a vingança aninhada culturalmente para se satisfazer quando a oportunidade se apresentar.
É que algum de nós que vive imerso na sociedade violenta, pode dizer que está livre dela? Por acaso não exercemos violência?
Nas origens da Não Violência um senhor chamado Mahavira, contemporâneo do Buda, decidiu chegar até as últimas conseqüências sem exercer a violência. Assim não podia caminhar para não pisar as formigas que poderia encontrar a seu passo, e assim em 30 anos alimentando-se mal e movimentando-se mal, obteve a iluminação. Ainda hoje, alguns Jainistas, herdeiros das doutrinas de Mahavira, varrem o solo onde caminham antes de pisá-lo.
Para não exercer violência no meio de um sistema violento, não deveríamos pagar nem receber salários, deveríamos pular fora de toda regulamentação estatal, não pagar impostos, porque com isso que os estados pagamos eles se armam até os dentes... Teríamos que isolar-nos totalmente da sociedade e, seguramente, em vez de chamar-nos místicos nos encerrariam em seus hospícios.
A violência está em todas as partes. A exploração, a manipulação, a discriminação, também são formas de violência que se acumulam em quem as sofre até essa pessoa explodir fisicamente. A taxa de juros dos crediários para a saúde, educação e moradia, também é uma forma de violência. Quando ocorrem os desbordes nos estádios de futebol, com as etnias religiosas na China ou na Amazônia peruana, isto nos surpreende porque não vemos a acumulação dessas outras formas de violência às que as povoações estão submetidas. Todo bando contrário é sempre o violento e o bando da gente é o justo que foi obrigado a utilizá-la.
Isto não é fácil de mudar, é uma crença que está muito enraizada. Intuímos que a violência não se corresponde com o humano. Mesmo que suspeitemos que a violência seja algo que ele arrasta desde seu antepassado hominídeo, não vemos possibilidade de sair dela. Além disso, qual seria o motivo para sair dela, já que a humanidade chegou até aqui e não tem sido necessário erradicar a violência. Foi possível controla-la, dirigir os impulsos violentos, se estabeleceu até um sistema de justiça para usá-la com certa racionalidade. Alguns morrem quando a violência sai de controle, mas todos morreremos algum dia, por uma razão ou outra. Deveria haver um motivo muito poderoso para mudar essa direção da consciência.
Algumas vezes essa crosta de sofrimento e dor que cobre nossa vida é atravessada por raios que iluminam espaços de liberdade, de amor, de amizade, de solidariedade, de tu, tu que importas muito, ás vezes, muito mais do que muito.
Algumas vezes um mundo novo aparece ante meus olhos e me vejo a mim mesmo e me desconheço, parecesse que não sou eu, mas a felicidade me invade e isso me faz pensar que não tudo é medo, não tudo é sofrer, não tudo é violência. Se tão só esse raio que às vezes me atravessa pudesse alargar o buraco da crosta que me apanha e que nos apanha, se isso fora possível, tudo seria muito diferente. Se isso fora possível, a vida teria um sentido para ser vivida.
Estamos falando dos temas fundamentais da vida humana. A reflexão em torno ao tema da violência nos enfrenta ao sem-sentido da vida, e se minha vida não tem sentido e se tudo termina com a morte, não haverá energia suficiente para tentar um salto humano.
Silo, que é muito importante na formulação atual deste problema, iniciou sua mensagem em 1969 explicando que um manto de violência tinha se estendido na humanidade e que não havia forma de sair dela. Que a violência está na própria consciência, que sua raiz é o sofrimento e que se sofre pelo temor à solidão, o temor à doença e o temor à morte. Que esse temor tratamos de resolvê-lo por meio de nossos desejos, nossas ilusões e esperanças, e que enquanto mais desproporcionados são nossos desejos, mais aumenta nosso sofrimento e nossa violência. Assim iniciava Silo seu ensinamento e depois exporia a parábola do carro do desejo, de suas rodas chamadas de ‘prazer’ e ‘dor’ e de um cavalo, chamado ‘Necessidade’, que ficava esgotado quando o carro do desejo estava muito carregado. Com o passar dos anos, estas frases encontrarão um extenso desenvolvimento em uma filosofia, uma psicologia e em uma mística.
O medo ao nada e à morte é a substância da violência, é do que ela é feita. Mas não é o medo o que fundamenta o humano. Não é a morte o que lhe dá significado, mas a necessidade de imortalidade e de transcendência. Se a faísca da imortalidade estivesse guardada no fundo do coração humano, como uma brasa adormecida que necessita de um sopro para acender-se, e se esse sopro de repente a acendesse e quisesse sair de seu mundo distante para tingir o mundo humano;
Se não desse o mesmo uma ação que outra, porque certas ações acendem o fogo interno e outras ações o apagam. Se o ser humano fosse a yesca em que aninha a faísca divina e sua ação fosse a pedra que a acende, se esse fogo interior fora tão intenso que iluminasse o mundo que olho; Se tudo estivesse banhado por um fogo de Essência e Sentido e se isso me preenchesse dos pés à cabeça, não quereria apagá-lo nunca. O ato moral é tal porque acende a faísca divina no interior do ser.
A Não violência é um estilo de vida, uma busca do sagrado, a manifestação do que é verdadeiramente humano. Não é simplesmente um ato político, é, sobretudo, um ato moral, é a busca de um novo ser humano, é a presença do futuro, é o encontro com um ser que ainda não é. A Não Violência é a força que transformará ao mundo porque faz com que me transforme a mim mesmo para não converter-me naquilo com o que luto.
Cada vez me resulta mais difícil esclarecer o tema, que posso dizer que seja sincero. Não posso dar uma cátedra, não sei como eu agiria, posto em situação de violência. Também não é um dogma, não posso exigir ao outro que atue como a mim parece, só posso decidir pela minha forma de atuar.
Sinto-me obrigado e pressionado a tomar bandos todos os dias, a tomar posições que não gosto; cada decisão, cada ação é uma referência para algum outro que está perto de mim, e para aqueles que me observam, minha decisão é importante. Não posso julgar o que fará o outro, eu não tenho nenhuma certeza de ter a razão, nem do que é melhor para os demais e para a sociedade. Busco outra coisa, há algo a mais e quero que esse algo a mais se expresse em minha ação. Não quero exercer a violência, não quero ser parte dos grupos que a exercem e tento encontrar o caminho, mesmo que muitas vezes me veja apanhado em um bando. Quero que em meu atuar se expresse algo novo, algo diferente, os melhores sentimentos. Não quero colaborar com o conhecimento que leva à destruição, quero saltar sobre meu ressentimento e quero que sejam os sentimentos mais formosos os que se expressem quando estou com outros.
Não quero impor minhas verdades, mas quero sentir-me livre para poder atuar de acordo com elas. Na situação de pressão na qual vivo cotidianamente, quero encontrar a liberdade interna para atuar como ser humano, para reconhecer o ser humano nos demais. E, através da minha ação chamá-lo, fazer com que apareça, e se não é possível fazê-lo aparecer no presente, deixar a pegada de uma ação que possa ser reconhecida no futuro, uma ação que diga que o humano é possível de ser expressado.
Mas não posso escolher por ti, assim como não podes escolher por mim. Assim como não posso escolher por ti também não te posso julgar, mas não peça que te acompanhe, não peça que te apóie, farei minha escolha e farei vazio ao poder, melhorarei a mim mesmo para que o poder deixe de interessar-me. Superarei meus desejos de poder, aprenderei a retroceder e tratarei que minha ação mostre algo que ainda não existe, mas que existirá no futuro. Minha ação anunciará o mundo por vir, o ser humano do futuro.
Apenas ouço os passos da Marcha da Paz e a Não violência, são suaves, não retumbam como tambores de guerra, são soldados que a ninguém vencerão, mas ali reconheço o eco do procurado, o almejado, algo pelo que vale a pena viver.
Obrigado amigos.
Dario Ergas, 18 de Julio 2009.
Na Fundação Laura Rodriguez -Chile
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