O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana
ismo conhecido na história, antes do nazismo. Em nome da religião e do nacionalismo, a Igreja e o Estado promoveram uma feroz perseguição à uma minoria judaica, convertida ao catolicismo, e aos seus descendentes, reduzindo-os à condição de parias. Uma certa facção desses convertidos, denominada cristãos-novos (ou marranos) respondeu à repressão com uma férrea resistência ao catolicismo, sendo odiada por não aceitar a salvação oferecida pela Igreja, por não querer reconhecer os maravilhosos mistérios da teologia cristã, por questionar que três equivalem a um, por não reconhecer que um homem possa ser Deus e que um filho possa nascer de uma virgem. Historiadores, antropólogos, filósofos, psicanalistas, têm refletido sobre o comportamento, e a ‘psiquê’ desses marranos, e as razões da sua tão longa sobrevivência. Edgard Morin, Yirmiyahu Yovel, Richard Popkin, António Damásio, Jean-Pierre Winter[1] buscaram no marrano a chave para a compreensão do pensamento de alguns pensadores como Spinoza, Montaigne, Santa Tereza, Tirso de Molina e outros. De Spinoza partiu a mais lúcida crítica contra o fanatismo religioso, numa época em que Portugal estava mergulhado no mais profundo obscurantismo. Sendo ele próprio descendente de judeus convertidos, Spinoza é hoje compreendido pelos seus biógrafos como marrano. E são unânimes os spinozistas em afirmar que somente é possível entender sua filosofia e sua mensagem sobre o mundo e a sociedade, se entendermos o seu destino como marrano[2]. O mundo e a religião foram para Spinoza sempre um problema. Cresceu em uma comunidade judia, viveu num bairro judeu, freqüentou escola judaica e teve formação talmúdica. Aprendeu o hebraico, apesar de seu idioma materno ser o português. Conhecia a Cabala, e como viveu em um tempo embebido de fantasias messiânicas e milenaristas, referiu-se com desprezo à sua charlatanice. A questão que preocupou Spinoza foi a sobrevivência dos judeus – durante séculos, apesar de todas as humilhações e perseguições –, a qual procurou responder em seu Tratado teológico-político[3]. Apesar de toda sua formação judaica, Spinoza não aceitou o judaísmo que lhe transmitiram seus mestres rabinos, tanto os askhenazi como os sefaradi. Recusou a Menasseh ben Israel, sefaradi, latinista, elegantemente pintado por Rembrandt, recusou Levi Morteira, ashkenazi, de espessa barba branca, abrigado numa longa capa preta, a moda dos judeus do leste, também pintado por Rembrandt. As categorias religiosas do seu tempo não satisfaziam a Spinoza, e desde muito jovem começou a escrever críticas ao fanatismo e às superstições de todas as religiões. Essas críticas não podiam ser aceitas pelos ortodoxos líderes das comunidades judaicas de Amsterdã, e em 27 de julho de 1656, Spinoza foi excomungado e expulso da sinagoga. Suas idéias foram apontadas como “horríveis heresias”. Spinoza saiu de Amsterdã e foi morar sozinho em uma aldeia onde ficava o cemitério da comunidade portuguesa. Um fato importante marca a personalidade de Spinoza: apesar de ter rompido com o judaísmo e com a religião, continuou judeu, porque para o seu entendimento, ser judeu não implicava forçosamente em ser religioso. Mas como era a Holanda onde nasceu Spinoza e onde floresceu a mais importante comunidade portuguesa sefaradi da Europa? A Holanda foi o primeiro estado na Europa que adotou uma política de tolerância religiosa, fruto de uma nova concepção da consciência burguesa. Foi o primeiro Estado da Europa que fez a revolução contra a ordem feudal da Idade Média. Na arte holandesa já está refletida essa mentalidade. Em vez de glorificar os símbolos do mundo extraterreno glorificava a vida, a existência, e cria o retrato, a paisagem e a natureza morta. A Holanda estava voltada para o mundo, empenhada na conquista do mercado e no domínio dos mares. Foi o único lugar da Europa, no século XVII, onde se podia expressar o pensamento com relativa liberdade. As religiões não calvinistas eram permitidas se fossem praticadas com descrição, e as práticas judaicas autorizadas se oficiadas veladamente. Não era permitido defender o judaísmo publicamente nem praticar o proselitismo. Apesar da relativa liberdade religiosa, havia temor na comunidade portuguesa, e a vida dos emigrantes judeus não era totalmente segura. Os calvinistas eram extremamente religiosos e em um falso momento os judeus podiam ser mal interpretados. Os Judeus eram visitas úteis, mas não cidadãos iguais. Sempre havia o risco de perder as liberdades civis. Portugueses fugitivos, para todas as regiões onde se exilavam, carregavam seu grande sonho: a liberdade. A Holanda ofereceu-lhes essa liberdade, apesar de não ser tão ampla como muitas vezes supomos. Mas permitia-se a livre leitura, o debate das novas idéias, e tolerava-se a prática de diferentes religiões. E principalmente, era possível repensar a natureza humana. Se Spinoza tivesse nascido e crescido em Portugal,talvez a sua filosofia jamais tivesse vindo à luz. Para termos um espelho do mundo contraditório no qual viviam os cristãos-novos, quero lembrar que, no ano em que a América foi descoberta, milhares de judeus se converteram voluntariamente na Espanha, para poder ficar na pátria. Em Portugal o quadro foi diferente, foram forçados ao batismo e impedidos de partir. Muitos judeus, depois de convertidos, se tornaram leais católicos e tudo fizeram para se integrar na sociedade cristã. Seguiam obedientemente a religião oficial, casavam-se com cristãos e passavam grandes donativos para as Igrejas. Com a conversão forçada rompeu-se o elo comunitário, separaram-se as famílias, e teve fim a longa cultura judaica que tinha florescido durante XV séculos na Espanha e em Portugal. Os judeus pensavam que como católicos, além de salvar suas vidas e fortuna, também seriam aceitos pela sociedade ampla.Esse foi seu grande engano, sua grande ilusão. Como na novela de Kafka, O Castelo, o mundo ibérico não estava interessado em receber judeus. E quanto mais o judeu convertido procurava integrar-se, mais ele afundava na sua solidão. Esse foi exatamente o destino dos cristãos-novos no Brasil, dos quais a Paraíba oferece um dos exemplos mais significativos. O Estado português, estimulado pelo modelo oferecido pelos reis católicos e continuado por Carlos V, criou o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição pela vontade expressa do rei d. João III, apoiado pelo Papa. Quando da sua criação, o Tribunal tinha um único objetivo: perseguir e punir os portugueses acusados de praticar secretamente a religião judaica. Uma feroz propaganda anti-semita começou a ser pregada nos púlpitos, nos sermões e numerosas obras anti-judaicas, publicadas na Espanha e em Portugal, prepararam o genocídio de milhares de portugueses. O anti-judaísmo pregado pelos membros do alto clero católico e pelos conservadores dirigentes do Estado português assim como a legislação discriminatória, produziram resultado imprevisto: aumentou a resistência dos cristãos-novos. Essa resistência em adotar o catolicismo em Portugal não teve paralelo na história. Cristãos-novos armaram-se de estratégias clandestinas que passaram de geração em geração. A sociedade ibérica ficou dividida em dois mundos, um visível e outro secreto. Esse mundo secreto criou ramificações e produziu conseqüências, em nível econômico e cultural, que apenas hoje estão sendo estudadas em profundidade. Os descendentes dos judeus convertidos ao catolicismo em Portugal, em 1497, foram oprimidos e perseguidos durante 3 séculos em todo império. Leis continuamente promulgadas proibiam os portugueses cristão-novos de deixar Portugal. Assim mesmo, em cada nau que saia do Tejo embarcavam fugitivos clandestinos. A maior parte dos cristãos-novos que conseguiu sair de Portugal, passou para a América, alem de levas inteiras terem se dirigido para o Norte da África, Levante, Itália, Bálkans e principalmente, em fins do século XVI, para Holanda, considerada pelos portugueses a Nova Jerusalém. Spinoza foi o primeiro filósofo da época moderna que explicou de maneira sucinta e terrena a sobrevivência dos judeus. Essa mesma explicação, essencialmente secular, foi endossada por Jean Paul Sartre De onde Spinoza derivou sua compreensão sobre a continuidade dos judeus? 1º Dos conhecimentos que tinha da história judaica e da experiência acumulada pelos judeus no exílio. 2º - Da práxis. Do seu próprio destino marrano. No Tratado teológico-político,Spinoza refere-se à questão da continuidade do povo judeu, depois da perda do seu território e do início de sua dispersão. Mas não oferece nenhuma explicação sobrenatural a esse fenômeno. Não foi por interferência divina, mas sim devido a fatores históricos, que os judeus se espalharam pelos quatro cantos do mundo. Os judeus se separaram de todas as nações, principalmente por causa de seus costumes diferentes e de seus ritos. Conforme explica Yehuda Bauer, na Antigüidade, foram principalmente três princípios fundamentais do judaísmo que diferenciavam os judeus dos outros povos: 1º todos os homens são livres 2º todos os homens são iguais 3º todos os homens têm direito de criticar o Poder Se as nações da antiguidade aceitassem esses princípios, seus Impérios se desmoronariam[4]. Imaginemos a Babilônia ou o Império Romano sem escravos. Imaginemos um homem do povo criticar a Nero! Mas o profeta Natan criticou o Rei David. Além desses princípios, os judeus criaram um valor: que todos os homens, senhores ou servos, e mesmo seus animais, têm direito a um dia de descanso por semana. Lembremos que só no século XIX o mundo ocidental reconheceu aos trabalhadores o direito ao descanso semanal. Os judeus, como diz Bauer, não eram nem melhores nem piores, mas eram diferentes. E quando se dispersaram pelo mundo carregaram consigo essa diferença. Essa diferença incomodava. É nesse sentido que Spinoza também entendeu o anti-semitismo. Para os portugueses que se refugiaram na Holanda, abriram-se novas oportunidades e muitas vidas se refizeram econômica e familiarmente. Após um século de ‘exclusão’ reacendeu-se entre os cristãos-novos o anseio de ‘participar’ e ‘pertencer’. A religião judaica foi revivida e seguida apaixonada e fanaticamente por uma parte dos exilados portugueses. Para que se desse essa revivescência os cristãos-novos tiveram que passar por todo um aprendizado e foram os rabinos do leste europeu que deram ao judaísmo um novo impulso. Spinoza criou-se em meio a essa nova comunidade, dividida entre dois modelos diferentes do judaísmo, o sefaradi, de origem ibérica e o ashkenazi, de origem européia oriental. Spinoza fez sua escolha: tentou secularizar a história judaica, assim como procurou secularizar a história em geral. Eliminou a idéia de divina providência e da interferência de Deus no destino dos homens e eliminou o sentido do transcendental da história, o mundo aqui e Deus alem. Introduziu uma concepção de Deus imanente no mundo, e não fora dele. Rejeitou todas as religiões, tanto o judaísmo como o cristianismo. Desde o século XVI a Paraíba foi um foco de judaísmo. Os cristãos-novos que aí viviam não eram abastados como os da Bahia ou do Rio de Janeiro, mas também tinham algumas posses. Tiravam sua subsistência da agricultura e possuíam alguns escravos. Seu número cresceu após a expulsão dos holandeses, quando judeus que não quiseram deixar o Brasil penetraram fundo no sertão. No século XVIII viviam principalmente em engenhos situados à margem do rio Paraíba. Constituíam um grupo coeso, fechado, endogâmico e freqüentavam a igreja apenas para o ‘mundo ver’. Mas no âmago de seus corações, como no templo de suas casas faziam as cerimônias que aprenderam de seus pais e avós,e que lhes eram transmitidas há mais de 10 gerações[5]. O ‘judaísmo’ dos cristãos-novos da Paraíba se manifestava através de dois modelos: a prática de algumas cerimônias e o sentimento de “pertencer”.Os cristãos-novos de Camaragibe (Pernambuco) também foram acusados de seguir alguns preceitos da religião judaica. Mas é importante, uma vez para sempre, demolir o mito de que a perseguição aos marranos foi eminentemente religiosa. Tanto na Paraíba como em outras regiões do mundo, o que levou a perseguição dos cristão-novos foi um anti-semitismo existencial, que não dependia exclusivamente da religião, mas como explica Yirmiyahu Yovel, estava voltado contra o próprio “ser”, o próprio “existir” dos judeus. Esse anti-semitismo é mais profundo que o anti-semitismo religioso[6]. Muito cedo os paraibanos aparecem como suspeitos de judaísmo. O primeiro visitador que a Inquisição mandou ao Brasil já teve ordem de investigar a Paraíba. João Nunes, cristão-novo que aí viveu em fins do século XVI, e teve importante papel na colonização local, foi denunciado por ter dito “quando me ergo pela manhã que rezo uma Ave Maria, amarga-me a boca”. Pesquisas mais exaustivas poderão esclarecer ainda obscuros ângulos da realidade dos ‘judeus’ da Paraíba. As suspeitas aparentes repetiam as seculares acusações de que “faziam ajuntamentos”, costumavam estar na Igreja com muito pouco acato e reverência no tempo em que se alevantava o “Santíssimo Sacramento” quando falavam uns com os outros, e não traziam livros de rezas nem de contas”. Na quaresma de 1673, a Inquisição de Lisboa ordenou que se publicasse um edital na igreja de Nossa Senhora das Neves, chamando todos fieis católicos a vir denunciar sob pena de excomunhão. Deviam contar tudo que presenciaram ou “ouviram” contra a Santa Fé Católica. O vigário da Igreja de Nossa Senhora das Neves, padre Francisco Arouche e Abrantes, leu o edital no púlpito. A população se agitou e de boca em boca corria a notícia da excomunhão. Amedrontados, sussurravam que as iras do inferno iriam desabar sobre os cúmplices. Acontece então algo surpreendente: apenas oito pessoas se apresentaram perante o vigário para cumprir as ordens da Igreja. Todos repetiram que o faziam por medo. Durante os treze meses que durou o inquérito, de 26 de fevereiro de 1673 a 20 de março de 1674, o vigário ouviu apenas as denúncias desses oito paraibanos. A maioria dos denunciantes pertencia à governança. A população que ouviu a chamada da Igreja não compareceu para denunciar. Esse fenômeno já se havia passado na Bahia, durante a “grande inquirição” de 1646[7]. Os oito denunciantes repetiram que “ouviram dizer” sobre feitiçarias e superstições, mas principalmente sobre “judaísmo”[8]. Na Paraíba, a heresia judaica se entende durante séculos. Na investida inquisitorial do século XVIII, quando são presos em poucos anos cerca de cinqüenta paraibanos, as evidências sobre as ‘sinagogas’ e as reuniões secretas aumentaram. O Santo Ofício obteve vantagens econômicas com sua prisões, cujo montante ainda não foi avaliado. O estigma, a exclusão, a perseguição, revitalizaram o judaísmo na Paraíba. Parte dos judeus e cristãos-novos que viviam em Pernambuco, quando foi ordenada a expulsão dos judeus holandeses, não optou pelo exílio e vamos encontrar seus descendentes, ainda praticando o judaísmo, nos sertões da Paraíba, do Piauí, Ceará e Rio grande do Norte. Entre os paraibanos que foram presos entre os anos 1729 e 1735, diversos tinham nascido em Pernambuco. Conta-se que no engenho de São Bento, os cristãos-novos trabalhavam aos domingos e dias santos, e com afrontas tentavam ridicularizar o catolicismo, chamando Jesus de “feiticeiro”. Uma das maiores resistências que os cristãos-novos apresentaram frente à Igreja, foi o culto das imagens santas que consideravam “pau e barro cozido”. Essas e mais acusações acirravam o ódio ao ‘diferente’, que preservava o sábado em vez do domingo, que comia carne nos dias proibidos e seguia restrições alimentares estranhas da maioria da população. Clara Henriques, mulher simples e sem instrução, costumava dizer que na hóstia e no vinho do cálice, depois da consagração, apenas ficava um pouco de vinho e farinha[9]. Os inquisidores viam com suspeita a comunicação entre os cristãos-novos, pois mesmos aqueles que não praticavam as cerimônias e rituais judaicos, mantinham íntimos contatos comerciais e familiares. Nas secretas reuniões, nos distantes engenhos, Poxim, Engenho do Meio, Engenho Novo, cristãos-novos se encontravam e mantinham viva a memória de sua história, o êxodo do Egito, a história dos patriarcas e a promessa de redenção. Mesmo que muitos portugueses cristãos-novos tenham conseguido diluir-se em meio à sociedade ampla, infiltrando-se entre as elites da Igreja e comprando “cartas de limpeza”, individualmente foram sempre parias. Os cristãos-novos da Paraíba resistiram durante três séculos às pressões da Igreja. Na segunda metade do século XVIII, com o arrefecimento das perseguições no Nordeste, as notícias sobre os marranos silenciaram. Parecia que haviam sido totalmente absorvidos pela sociedade ampla. Mas algumas descobertas surpreendentes nos últimos anos revelaram a existência de resquícios do judaísmo no mais distante sertão. Essas pesquisas têm sido objeto atualmente de estudo do antropólogo francês, professor do Collège de France, Nathan Wachtel[10]. Cineastas também buscaram na história dos marranos do Nordeste, inspiração para seus documentários. O marranismo brasileiro vem despertando tanto interesse que faz parte hoje de um curso no Collège de France. A idéia de ‘salvação’ dominava a mente dos cristãos-novos portugueses, porém era centrada em Moisés, não em Cristo. Para os cristãos-novos, assim como para os judeus, a salvação não era metafísica mas política. O salvador não é Deus, mas um homem, Moisés, e uma lei, a Lei que desceu do Sinai. Para Spinoza, a salvação não passa pela religião, nada tem a ver com a fé, nem com Jesus, nem com Moisés. O homem só se salva pelo conhecimento e pela razão. Quanto mais o homem tiver conhecimento de como funciona o mundo e o universo, mais próximo está da salvação. No catolicismo se salva o homem. No judaísmo se salva toda a humanidade, porque a salvação é coletiva. Spinoza escolheu os marranos como o paradigma da história judaica. Marranos não eram só os judaizantes, mas toda nação conversa, incluindo aqueles que, sem sucesso, tentaram assimilar-se ao cristianismo. A sobrevivência dos marranos como a dos judeus se deve ao anti-semitismo. O ódio que os cristãos tinham pelos judeus foi a principal razão que impediu o seu desaparecimento. Trata-se de um mesmo fenômeno que se repete desde a Antigüidade. A preocupação central de Spinoza foi o destino peculiar dos judeus. Conheceu bem as vicissitudes que seu povo de origem estava passando em Portugal. Sabia dos martírios,das torturas, dos autos de fé. E quis entender essa história à luz de causas naturais e não transcendentais. O que interessava para o filósofo marrano era o presente, e a explicação da história. Preocupava-o não a religião, mas o povo, o povo que foi capaz de sobreviver durante séculos sem perder sua identidade, sempre alimentando um sonho de redenção. Queria entender essa sobrevivência e essa obstinência. Como foi e porque o povo judeu sobreviveu? E os cristãos-novos portugueses? Como foi que se mantiveram, guardando segredo durante tantos séculos? Procurou dar a essa questão uma resposta natural, baseada em causas históricas, sociais e psicológicas. Spinoza, foi um dos grandes mestres da humanidade. Segundo Edgar Morin, foi uma das máximas expressões da criatividade marrana, e na filosofia é comparado a Platão e Kant. A sua teoria sobre os efeitos é considerada hoje um conceito fundamental da psicanálise. O conceito do inconsciente, a relação do pensamento e da linguagem, a ambivalência de todos os afetos, a análise do sentimento crítico, o conceito de repressão, estão todos já pronunciados no pensamento e na filosofia de Spinoza. Criou um conceito ético moderno de liberdade. Só com o conhecimento o homem supera as paixões e consegue ser livre. Foram as idéias de Spinoza que ajudaram a moldar o debate intelectual do século XVIII. Goethe, Freud, Lacan, Einstein, sofreram influência de sua filosofia. Muitas vezes historiadores têm se perguntado: eram os cristãos-novos realmente judaizantes? Ou será que a Inquisição quis exterminá-los por motivos raciais, por judeofobia, como afirma António José Saraiva, e Benzion Netanyahu[11]? A resposta está na dialética da história. Ambos fenômenos são verdadeiros. Os cristãos-novos eram judeus e não eram ao mesmo tempo. Queriam ‘pertencer’ ao mundo católico e não queriam deixar de ser judeus. Amavam e odiavam ao mesmo tempo. Muitas vezes, cristãos-novos no Brasil, como os judeus durante o nazismo, perderam a vida simplesmente porque eram judeus, porque tinham algum antepassado judeu, como expressou o padre Antônio Vieira. Mas havia os que realmente praticavam algumas cerimônias judaicas, apesar de confusas, quase inconscientes. Havia ainda os que seguiam as duas religiões – a judaica e a católica, confusa e sincréticamente. Mas, como escreveu Spinoza, em um conceito mais largo e profundo, eram judeus tanto os cristãos-novos, como eram judeus os assimilados, aculturados ou laicos. Todos os cristãos-novos faziam parte de um povo só, pela sua história, pelo sofrimento e pelo seu destino. Na Espanha e em Portugal, na época moderna, reuniram-se Estado e Igreja para destruir o judaísmo. No século XX repetiu-se o modelo e milhares de judeus foram assassinados. E hoje o anti-semitismo recrudesce em todo o mundo e adquire cada vez novas faces. A história não nos preparou para o século XX e não estamos preparados para o século XXI. George Steiner, um dos maiores pensadores de nosso tempo, professor na universidade de Cambridge, pergunta em uma de suas obras “porque a humanidade no sentido mais largo da palavra, porque a fé na cultura e na ciência não nos deram nenhuma proteção diante da desumanidade, ao contrário, até encorajaram a barbárie[12]? Porque os grandes humanistas da Renascença, porque a tradição de convivência étnica na Península Ibérica não conseguiu impedir o estabelecimento de um tribunal, que durante séculos funcionou na base da extorsão e à custa de vidas humanas? Nem os grandes filósofos, nem a música, nem a arte, não puderam impedir a destruição de milhares de judeus? A civilização ocidental presenciou a falência do homem. Nós não podemos imaginar do que o homem ainda é capaz. Spinoza explicou o ‘ódio aos judeus’, mas não podia ter imaginado Auschwitz. Como diz Steiner, Bosh pintou o Apocalipse, mas não podia ter imaginado as câmaras de gás. A barbárie de que é capaz o homem ultrapassa o limite da imaginação. E qual a lição que aprendemos com a história? O quê pretendemos com nossos cursos de história? E qual a mensagem que queremos passar às novas gerações? Vou responder com uma carta que um jovem escreveu ao seu professor: Caro Professor, Eu sou um sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum ser humano deve testemunhar. Câmaras de gás construídas por engenheiros brilhantes. Crianças envenenadas por médicos graduados. Recém nascidos mortos por enfermeiras diplomadas. Mulheres e bebês assassinados e queimados por gente formada em Ginásio, Colégio e Universidade. Por isso, caro Professor eu duvido da educação. Eu lhe formulo um pedido: Ajude seus estudantes a se tornarem humanos, Seu esforço, caro professor, nunca deve produzir monstros cultos, eruditos, psicopatas e Eichmans educados. Ler, escrever e aritmética são importantes somente se servirem para tornar nossas crianças mais humanas. …
© 2024 Criado por Jayme Fucs Bar. Ativado por
Você precisa ser um membro de JUDAISMO HUMANISTA para adicionar comentários!
Entrar em JUDAISMO HUMANISTA