Cabala e modernidade
Moacyr Scliar*
É difícil dizer quando, exatamente, começa o período da História que conhecemos como modernidade, e que em geral associamos a grandes mudanças de natureza social, política, econômica, cultural, científica: os descobrimentos marítimos, a imprensa, a pólvora, o fim do feudalismo, o surgimento do estado moderno, o Renascimento, a emergência do método científico. Mas não apenas os limites temporais são confusos. Na verdade, a modernidade européia não se distingue com nitidez do passado medieval. Durante muito tempo haverá uma superposição de concepções, de conhecimentos, de práticas. A modernidade é pois uma época confusa, um daqueles período em que, como diz Antonio Gramsci, o novo ainda não nasceu mas o velho ainda não morreu; em que a astronomia convivia com a astrologia, a química com a alquimia e a ciência com a magia e a superstição. É a época do doutor Fausto, capaz de vender a própria alma ao diabo em troca de conhecimento, inclusive, e principalmente, o conhecimento esotérico; o doutor Fausto, que se torna personagem de numerosas obras, notadamente a peça teatral de Christopher Marlowe encenada pela primeira vez em 1594. É a época de John Dee (1527-1508), eminente astrônomo, o maior matemático de sua época, professor universitário - mas também astrólogo e alquimista. É a época de Cornelius Agrippa von Nettensheim (1486-1535), médico, historiador e escritor, mas adepto do ocultismo. Época de Marsilio Ficino, médico e cultor de textos herméticos e tantos outros.
Não é de admirar, portanto, que a Cabala (do hebraico kabalah, recepção, no sentido de doutrinas recebidas da tradição), tenha, nesse período, despertado grande interesse. Antiga expressão do misticismo judaico, a Cabala compreende um conjunto de crenças, que giram em torno da união do universo finito ao Criador infinito, através das emanações que procedem da divindade como raios vindos de uma fonte de luz. A Cabala cultiva também uma numerologia baseada na particularidade de que, em hebraico, os números correspondem a letras; assim, certas palavras significativas são expressas em números, que por sua vez tornam-se também significativos. O exemplo clássico é o da palavra “hai” (esse h é aspirado), vida, que corresponde ao número dezoito, considerado, por isso, de bom augúrio. À época do Renascimento, foi criada, por Isaac Luria (1534-1572), uma nova escola cabalística. No começo, diz a Cabala luriânica, só existia o Criador; sua presença enchia o universo, mas por um processo de concentração, de retração (tzimtzum, em hebraico), permitiu o surgimento do universo. Foi criado então o homem primordial, Adam Kadmon. Dele, saíam raios de luz divina que deveriam reencher vasos ou recipientes que, contudo, se partiram. É necessário, então, um processo de restauração (tikun). Da mesma forma, quando o Adão bíblico foi criado, continha em si todas as almas; com o pecado, elas se dispersaram, ficando em cativeiro nos corpos humanos, mas ansiosas por retornas à fonte. É a metáfora do exílio, tão compreensível na tradição judaica.
A transição do feudalismo para a modernidade mostrou-se muito favorável à disseminação das idéias cabalísticas. Como observa Gershom Scholem, o grande estudioso da Cabala no seu clássico livro (Cabala, Rio de Janeiro, Ed. Koogan, 1989, trad. Hinda Burlamaqui, Júlio Cesar C. Guimarães e Maria Lúcia W. P. Braga, p. 55), nesta época, “(...) a Cabala disseminou-se pela maioria das comunidades da Espanha e também na Itália e no Oriente” uma vez que os portões estavam amplamente abertos para a literatura mística. E não estamos falando apenas do judaísmo; a Cabala fascinava humanistas cristãos como Guillaume Postel, Johann Reuchlin e Pico della Mirandola, para quem nenhuma ciência oferecia maior garantia da divindade de Cristo do que a Cabala. As numerologias judaica e pitagórica dão novo e adicional significado aos fundamentos do cristianismo. A Trindade é santa por causa do Pai, do Filho e do Espírito Santo, mas também por causa do número três. Os quatro evangelhos são importantes porque são narrativas sagradas, mas também porque são quatro.
Havia aí também um aspecto, digamos, mais prosaico, menos espiritual. Esta é uma época em que o número ganha extraordinária importância. A introdução dos algarismos arábicos, que então ocorre, fez parte do processo de renovação que caracterizou o advento da modernidade. Mudança que aliás não se fez sem conflito; em Florença, no ano de 1299, os números arábicos foram proibidos. Mas a verdade é que os cálculos ficaram consideravelmente facilitados bem como as técnicas contábeis - em 1494 aparecia o que pode ser considerado o primeiro tratado de contabilidade, de Luca Pacioli, frade franciscano que fora tutor dos filhos de um mercador de Veneza. A contabilidade era apenas parte de uma revolucionária mudança de mentalidade, resultante do incremento das transações financeiras (esta é a época em que surgem os bancos e as bolsas de valores), do novo espírito científico, das viagens e dos cálculos a elas ligados. As numerologias eram, pois, bem acolhidas.
Quanto ao misticismo que é inerente a Cabala este tinha, e tem, um público certo. É no misticismo que as pessoas buscam uma defesa contra as agruras da vida, muitas vezes incompreensíveis. O misticismo dá um sentido à existência. E essa busca de um sentido é inerente à condição humana, independente de época e de lugar.
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* Moacyr Scliar é escritor e médico. Membro da Academia Brasileira de Letras e autor de vários livros, entre eles: O centauro no jardim, A mulher que escreveu a Bíblia, A estranha nação de Rafael Mendes e A orelha de Van Gogh, Os vendilhões do templo.
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