|
Árvore genealógica num manuscrito do século XIX é um exemplo dos longos estudos necessários para se descobrir a origem dos sobrenomes. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro |
É comum ouvir que certos sobrenomes usados por lusodescendentes identificam origem judaica, herança de ancestrais cristãos-novos. De acordo com esta explicação popular, sobrenomes como Lobo ou Pereira identificariam a procedência. Será verdade? Para responder, é bom que se conheça um pouco do desenvolvimento da onomástica judaica.
Os judeus sempre usaram, para se identificar, um patronímico, o nome do pai. É só verificar no Velho Testamento – a Bíblia Hebraica – os nomes dos personagens como Fulano ben (filho de) Sicrano. Hoje eles são usados apenas nas cerimônias religiosas. Os sobrenomes foram incorporados primeiro na Península Ibérica e depois, por influência napoleônica, fora dela. No mundo ibérico, já no século XIV, havia judeus que se identificavam com prenome bíblico e um sobrenome de variadas origens geográficas – Abravanel, Amado, Arruda, Cavaleiro, Cohen, Crespim, Franco, Navarro, Negro, Pinto, Toledano, Valentim etc –, que, com o passar dos anos, foram incorporados aos patrimônios familiares.
A permanência dos judeus, como convertidos, a partir do século XV, tornou obrigatório o recebimento de novos nomes e sobrenomes sem que houvesse um ordenamento jurídico para sua aquisição. Somente os prenomes tradicionalmente usados, como Abraão, Isaac e Jacó foram convenientemente abandonados, mas como o objetivo era a incorporação desta minoria à população majoritária, não havia sinais que os distinguissem pela onomástica. Os convertidos que se renomeavam também nada traziam do passado. O objetivo era desaparecer na massa circundante.
Lenda tem base em discursos religiosos
Mas como encontrar os sobrenomes utilizados pelos cristãos-novos e seus descendentes se eles desapareceram na população geral? Convém consultar a documentação produzida pela Inquisição, como as listas de penitenciados e cerca de 40 mil processos movidos contra cristãos-novos entre os séculos XVI e XVIII. Lá está a maioria dos sobrenomes usados pelos portugueses. Do simples Santos ao dinástico Bragança. Em alguns casos, é possível encontrar a autoridade inquisitorial e o réu com o mesmo nome de família, sem que eles tenham vínculos de parentesco entre si.
O desconhecimento desse passado levou pesquisadores amadores a buscarem uma teoria para localizá-los. Baseados no discurso religioso, principalmente nas bênçãos aos filhos de Jacó (Gênesis, 49:1-33), chegaram à conclusão de que nomes de plantas e animais correspondem aos sobrenomes judeus, mas sem qualquer fundamentação na realidade.
É impossível descobrir a origem de um lusodescendente só pelo nome de família. É equivocado afirmar que alguém tem origem judaica só por ter um sobrenome como Barata, Bezerra, Carneiro, Carvalho, Cordeiro, Falcão, Figueira, Leão, Leitão, Lobo, Oliveira ou Pereira. A afirmação não se sustentaria na documentação produzida durante 300 anos. Não há sobrenome cristão-novo, mas um sobrenome ibérico usado por cristãos-novos, que muitas vezes foi o mesmo usado também por cristãos-velhos, ciganos, mouriscos, indígenas...
Paulo Valadares é autor de A presença oculta. Genealogia, identidade e cultura cristã-nova brasileira nos séculos XIX e XX(Fundação Ana Lima, 2007) e editor doBoletim do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro.
Saiba Mais
CARVALHO, Flávio Mendes. Raízes judaicas no Brasil. O arquivo secreto da Inquisição. São Paulo: Nova Arcádia, 1992.
FAIGUENBOIM, G.; VALADARES, P.; CAMPAGNANO, A.R. Dicionário Sefaradi de Sobrenomes/Dictionary of Sephardic Surnames. São Paulo: Fraiha, 2003, 2004 e 2010.
NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil. Séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002.
Artigo publicado na edição número 73, em outubro de 2011, na Revista de História da Biblioteca Nacional
Você precisa ser um membro de JUDAISMO HUMANISTA para adicionar comentários!
Entrar em JUDAISMO HUMANISTA