JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Martin Buber e o judaísmo poético de Histórias do rabi - Leo Agapejev de Andrade

Martin Buber e o judaísmo poético de Histórias do rabi
Leo Agapejev de Andrade
RESUMO: Propõe-se, neste artigo, abordar brevemente a narrativa hassídica quanto à sua forma, estrutura e função. Embora aparentemente distantes da realidade brasileira no tempo e no espaço, as histórias geradas pela convivência entre os judeus hassídicos atestam a ligação entre experiência poética e a experiência com o sagrado, alcançando uma dimensão da vida em comunidade prevista pela Filosofia do diálogo, de Martin Buber.
Palavras-chave: Hassidismo, Martin Buber, poética, sagrado.
Martin Buber (1878-1965), judeu austríaco, empenhou grande parte de sua vida na
pesquisa das narrativas hassídicas surgidas nas vilas judaicas da Europa Oriental dos sécs.
XVIII e XIX. Sua filosofia do diálogo, segundo a qual a relação intersubjetiva é equiparável à
experiência com o sagrado, bebeu da fonte do Hassidismo polonês, em especial de suas
narrativas. Tais narrativas eram, na origem, fruto da convivência direta entre os judeus
hassídicos (os hassidim), que, depois dos serviços religiosos, punham-se a narrar entre si
histórias referentes aos diversos mestres hassídicos, os tzadikim (“justos). Dessa forma, a
imaginação poética encontrava terreno fértil para a criação de histórias em que a Divindade
era experienciada, na medida em que isso era possível. Proponho, neste artigo, refazer o
percurso que liga a experiência intersubjetiva à experiência poética, passando pela experiência
com o sagrado. Meu foco será a obra Die Erzählungen der Chassidim (Histórias do rabi),
lançada em 1948 na Alemanha e com tradução brasileira lançada em 1967. No final deste
artigo, serão analisadas duas narrativas significativas da maneira hassídica de se transmitir a
experiência com o sagrado.
1 O autor é mestre em Teoria literária pela Unicamp, com dissertação sobre Martin Buber e as narrativas
hassídicas. laa@iar.unicamp.br .
ISSN: 1983-8379
DARANDINA revisteletrônica – Programa de Pós-Graduação em Letras / UFJF – volume 2 – número
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Nas narrativas hassídicas, Buber vale-se comumente da introdução “Es wird erzählt”
(“Conta-se2”), para começar algumas histórias referentes ao Baal Schem Tov (O Bescht,
considerado o fundador do Hassidismo polonês, no início do séc. XVIII), as quais são
iniciadas com aspas. Provavelmente queira indicar, com isso, uma fonte oral ou a descrição de
um fato recontado, e não vivido na presença do narrador. Outras introduções recorrentes na
parte de Histórias... dedicadas ao Bescht: “Der Baalschem sprach” (“O Baal Schem disse”),
“Die Chassidim erzählen” (“Os hassidim contam”). Em alguns casos, é apontada a suposta
fonte exata da história (“Der Maguid von Mesritsch erzählte”, “Rabbi Baruch erzählte”. O
Maguid era discípulo do Bescht e Rabi Baruch era neto do Baal Shem Tov). A história do
Bescht é contada por meio de narrativas que seguem, basicamente – embora não se possa
afirmar que há uma ordem cronológica na disposição (e seus critérios) de que Buber se valeu,
mas esse aspecto não é determinante, em termos históricos, quando se fala em lenda hassídica
– a ordem cronológica de nascimento, vida e morte. Na infância fora desacreditado como
futuro “homem de bem”, embora, segundo a lenda hassídica, o profeta Elias tenha dito ao pai
do Bescht, Eliezer, que este teria “um filho que haveria de iluminar os olhos de Israel”
(BUBER, 1995, p. 84). Depois de se casar, “deu-se a conhecer”, (“revelou-se”, “offenbart
sich”) como sábio e arrebanhou seguidores. Os relatos, cujas origens estão na convivência
entre si desses mesmos seguidores, estão repletos de menções a feitos sobrenaturais (como ser
“socorrido” por uma montanha à sua frente, quando quase despencara da montanha em que
estava) e menções à natureza divina do Bescht. A relação entre o tzadik e seus seguidores
também é privilegiada, e devem ser compreendidas (mais do que entendidas racionalmente) à
luz do espírito hassídico. Os ensinamentos (preleções) do tzadik se dão por meio de parábolas
e surgem a partir de fatos do cotidiano, com algumas interpretações dos livros sagrados. Mas
a lenda criada sobre o Baal Schem deu-se com os relatos de hassidim ou mesmo de outros
tzadikim sobre os ensinamentos do Bescht e sobre acontecimentos ordinários que, iluminados
pela santidade com que o revestiam seus discípulos, demonstram-se experiências únicas.
2 “Es wird erzählt”: tem caráter de testemunho, quando é colocado um nome que conta.
A forma inicial e básica tem algo de “Era uma vez”. A diferença importante é que alguém conta. E contar é ato
que se apresenta como revelação e como testemunho.
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Essencialmente, não se deve pôr em primeiro plano a historicidade das narrativas
hassídicas, uma vez que, nas palavras do próprio Buber (1995), se trata de uma realidade
lendária. As referências a fatos históricos, quando aparecem (Guerras Napoleônicas,
interferências do Império Austro-Húngaro etc.) estão subordinadas à experiência hassídica
com os desígnios divinos. Afinal, durante grande parte do período hassídico a vida judaica se
restringia à shtetl (a pequena vila judaica), e os judeus eram um grupo social à parte, embora
houvesse judeus ricos e pobres. Assim, como afirma Dubnow (1977), as profecias hassídicas
comumente surgiam depois mesmo de terem sido cumpridas, principalmente durante as
Guerras Napoleônicas e outros conflitos, como a guerra entre Rússia e Polônia. Afinal,
conforme será visto adiante, trata-se de uma realidade mítica, lendária, cuja origem encontrase
nos primórdios do judaísmo: nas agadot.
Em termos formais, comumente tem-se, nas narrativas hassídicas, a anedota, a
parábola, aforismas e algumas fábulas. O termo hebraico para esses tipos de narrativas
didáticas, identificadas conjuntamente como parábolas, é “mashal” (Scliar, 1993, p. 49): “a
parábola é uma história breve, composta com elementos do quotidiano, com um ou dois
personagens apenas. Atribui-se a Salomão a criação dessa forma narrativa [...]”. Buber referese
às histórias hassídicas como relatos de uma “realidade lendária”: é lendária porque não se
trata de textos fidedignos como crônicas, mas são o retrato sincero das experiências “ de
almas ferventes” (BUBER, 1995, p. 1).
As narrativas de Histórias do rabi têm basicamente a seguinte estrutura: uma
indicação de que se conta algo ouvido (ou lido) de outrem, segundo a forma dada por Buber,
seguida de alguma citação de algum texto canônico e sua explanação por parte do tzadik.
Outra possibilidade é a narrativa de uma anedota ou parábola antes da explanação. Tem-se,
ainda, a simples narrativa de uma anedota, sem explanações e com, no máximo, algum
comentário (vago, por vezes) de algum hassid ou tzadik. Às vezes, a narrativa hassídica
apresenta digressões e retomadas um tanto intrincadas, imbricando narrativas, uma dentro da
outra3.
3 O ápice desse intricamento narrativo pode ser encontrado em As histórias do rabi Nakhman (cf. Bibliografia).
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Ainda assim, percebe-se a progressiva (mas não tão significativa a ponto de torná-las
de natureza diferente das anteriores) elaboração formal das histórias em Histórias do rabi,
principalmente nas histórias referentes ao círculo do Grande Maguid. Excluindo-se os
aforismos e preleções, há, nas histórias curtas, mais detalhes, a progressão da história é mais
lenta e as descrições são mais minuciosas. O costume de contar histórias entre os hassidim (e
não apenas de tzadik para hassidim ou qualquer outro que o ouvisse) é mencionado
literalmente em algumas histórias, e diz-se de um rabi (de Apt) que “gostava de contar
histórias” (BUBER, 1995, p. 428). A narrativa hassídica toma formas de conto, ao unir à sua
concisão descritiva o maior trabalho com o espaço em que se dá a ação. A interação entre as
poucas personagens, bem como os desfechos enquanto ápice da história – características
comuns a muitas das narrativas hassídicas das Histórias... –, acentuam-se, chegando mesmo a
definir um enredo – aspecto que se mostra também, muitas vezes, em diálogos mais
elaborados. Soma-se a isso a ausência, no início de várias narrativas, de termos como “Es
wird erzählt”, “Rabi... sprach”, elemento que ressalta o caráter de testemunho da narrativa
hassídica4. Com esse recurso, Buber parece ter legado à narrativa hassídica o caráter de
história autônoma – ou seja, de ficção literária mesmo. Vejamos um exemplo em que
anedotas são relacionadas pelo fato de serem colocadas como quatro momentos de uma
mesma narrativa. Percebe-se que os elementos coesivos são mínimos, de forma que o
primeiro momento pudesse constituir uma única narrativa, e os momentos posteriores, uma
segunda narrativa:
De Lublin a Pjischa
Quando Mendel [Rabi Menahem Mendel de Vorki], desapontado, juntamente com um
companheiro, abandonou o Vidente [de Lublin], e foi a Pjischa, a fim de ligar-se ao Iehudi [o
rabi conhecido como “O Judeu”], um dos discípulos do Vidente adoeceu no caminho. Seu
companheiro procurou o Iehudi e pediu-lhe que se lembrasse de Mendel, em sua oração. –
Partiste de Lublin sem pedir licença ao Rabi? – perguntou o Iehudi. À resposta afirmativa, o
Iehudi foi com ele à hospedaria. – Assume o compromisso de voltar a Lublin assim que sarares
4 A anedota enquanto relato de um fato que aclara todo um destino, conforme descrição de Buber, preserva o
caráter de testemunho da narrativa hassídica mesmo quando não se usam os termos acima mencionados, uma vez
que faz parte da natureza da anedota o caráter testemunhal. Além disso, ainda que certas narrativas pareçam mais
elaboradas e independentes, enquanto ficção, do que as narrativas do início do Hassidismo, essas narrativas mais
elaboradas ainda se valem de anedotas, parábolas e preleções – formas tão caras à narrativa hassídica.
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e pedir licença – disse a Mendel. Este meneou a cabeça. – Nunca me arrependi da verdade –
replicou. O Iehudi observou-o demoradamente. – Se insistes tanto no teu juízo, então hás de
ficar bom mesmo sem isso. – E assim aconteceu.
Esta é a primeira parte da historieta: a história é simples, há poucos elementos e,
conforme se viu em outras narrativas hassídicas, poderia terminar aqui. As entrelinhas é que
dariam os sentidos da história ao leitor, mais do que os dados referenciais. Mas esta narrativa
se estende no tempo e nos dá mais elementos, que fazem com que esta narrativa difira das
narrativas iniciais do Hassidismo:
Quando Mendel, porém, se restabeleceu e procurou o Iehudi, este lhe declarou: - Está
escrito [Lamentações, 3: 27]: “Bom é para o homem suportar o jugo na sua mocidade”. – Só
então a verdadeira disposição para o serviço penetrou em cada membro do rapaz.
Fim da segunda parte: há mais elementos para a interpretação da historieta. A coesão é
estabelecida pelo “porém”, unicamente. Mas há uma terceira parte:
Mais tarde, o Vidente perguntou ao Iehudi se contava com bons moços à sua volta. O
Iehudi respondeu: - Mendel quer ser bom. –
Neste momento, a narrativa pede um desfecho, pois o leitor deve se perguntar: Como
Mendel conseguiu ser bom, se o foi realmente (afinal, tornar-se-ia um rabi)? Afinal, o que
aconteceu com o futuro rabi Mendel de Kotzk? A quarta parte, vinculada à terceira, responde
a ambas as perguntas:
Muitos anos depois, na velhice, o Rabi Mendel de Kotzk mencionou esta pergunta e
esta resposta. – Naquela época – acrescentou – eu ainda não queria ser bom. Mas a partir do
instante em que o santo Judeu [o Iehudi] o disse, passei a querê-lo e ainda o quero. (Buber,
1995, p. 596).
O Rabi Menahem Mendel de Kotzk, a quem se refere a narrativa acima, descende de
uma linhagem originária do Vidente de Lublin, falecido em 1815. O Rabi Mendel viveu até
1859. Temos, aqui, pouco mais de cento e cinqüenta anos desde o marco inicial do
Hassidismo, mas a autoridade do tzadik como guia espiritual continua intacta.
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Conseqüentemente, as bases do Hassidismo mantêm-se firmes: Buber, por meio do
estabelecimento das narrativas verdadeiramente hassídicas, parece ter aceitado o Tzadikismo
como um dos fundamentos do Hassidismo. A isso soma-se o fato de que as narrativas se
refiram, direta ou indiretamente, aos tzadikim, aos seus ensinamentos e suas vidas.
Mas se há maior elaboração formal da narrativa hassídica, por um lado, pode haver
também a tendência à descrição do que antes expresso em poucas e densas palavras.
Há uma história sobre uma contenda entre os Rabis Itzhak de Vorki e Menachen
Mendel de Kotzk sobre o trecho da Tora em que se diz: “E que me tragam uma oferta alçada”
(Êxodo, 25:2). O Rabi de Kotzk usou-a para justificar sua reclusão ao Rabi de Vorki, que
contrapôs a seguinte resposta à explanação do Rabi de Kotzk:
A oferta alçada
Quando um judeu quiser seguir o caminho reto, o caminho de Deus, então deve
aproveitar algo de todos os seus semelhantes, manter relações com cada um e acolher destas
amizades o que for possível para o caminho divino. Existe, porém uma restrição. Nada
aproveitará dos homens que têm um coração fechado, somente daquele “cujo coração se mover
voluntariamente” [continuação da citação bíblica acima referida]. (Idem, p. 619).
Esse trecho expõe os motivos pelos quais não se deve viver recluso: as relações
humanas são um “caminho divino”, desde que o Outro seja receptivo ao chamado para a
relação, de forma a se estabelecer de fato esse “caminho divino”. O aforismo a seguir, dito
pelo Bescht quase cem anos antes dos rabis de Kotzk e de Vorki, em poucas palavras resume
toda a explanação do Rabi de Vorki: “Disse o Baal Schem a um de seus discípulos: - O mais
ínfimo dos ínfimos que te possa ocorrer me é mais caro do que a ti o teu único filho”.
BUBER, 1995, p. 115). Trata-se de uma declaração incondicional e extremamente assertiva
de lealdade da amizade do Bescht ao discípulo. As entrelinhas, nesse aforismo, estão repletas
de sentidos (os quais são descritos na explanação do Rabi de Vorki): o profundo
conhecimento, por parte do Bescht, de seu discípulo (o que garante haver, aqui, o diálogo
surgido da relação Eu-Tu); o reconhecimento dessa amizade como um caminho para a
Divindade; a relação de afeto entre duas individualidades, a qual é plena e verdadeira porque
não se baseia nem em uma individualidade nem em outra, mas entre ambas: na própria
relação estabelecida pelo diálogo entre ambas. E a relação verdadeira não pode ser parcial ou
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feita com reservas, mas deve ser plena como a Divindade cujo resgate se dá com essa relação
verdadeira.
Assim, percebe-se que, aos poucos, o ato de contar histórias parece tomar formas mais
elaboradas e descritivas. Porém, a mensagem hassídica continua intacta, bem como o papel e
a importância do tzadik. As histórias continuam sendo meios eficazes de se transmitir a
mensagem hassídica e os caminhos pelos quais são seguidos os desígnios divinos.
ABSTRACT: This paper, I intends a brief approach to the hassidic story and its form, structure and function.
Despite being so far from the Brazilian reality in space and time, the stories created by commom life among
hassidic jews testify the parallel between poetical and sacred experiences, reaching a dimension in communitary
life as previewed by Martin Buber1s Dialologic Philosophy.
KEYWORDS: Hassidism, Martin Buber, poetics, sacred.

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Leo, escrevi uma dissertação de mestrado sobre esse tema. Talvez você conheça, talvez não. Se não, e quiser conhecer, posso enviar o arquivo a você. Foi realizada no Centro de Estudos Judaicos, da USP, e trata de descobrir, na narrativa hassídica, um 'teor terapêutico' que elevou a auto-estima do hassid de modo a, em cerca de trinta anos, transformar a ralé judaica da época, que rumava para a extinção por absoluta falta de perspectivas e amor à vida numa grande comunidade tremendamente viva e ativa. A análise desse 'teor terapêutico' é feita por meio da contribuição psicanalítica de D W Winnicott. Se você quiser ler, vou ficar muito honrado.
Grande abraço.
Davy.

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