JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

A Difícil Arte de Ficar de Fora.

            Hoje pela manhã, dia 24 de dezembro, eu dizia ao meu analista que durante o Natal os judeus aqui no Rio de Janeiro ficam perdidos. Sem saber o que fazer das suas vidas organizam ceias, almoços, o que for possível para minimizar a angústia de permanecer fora do estábulo olhando a cerimônia dos reis magos. Enquanto Harold Bloom, o estudioso da literatura fala em seus livros de uma “angústia da influência” que ataca todo escritor que se preza e que deseja afirmar a sua individualidade diante dos autores que o precederam, os judeus cariocas inverteram a equação. Aflitos, buscam desesperadamente fugir de uma angústia da diferença.  Sustentar a diferença numa cidade freneticamente alegre e massivamente cristã, não é tarefa fácil nestes dias pós modernos. 

            O meu analista, meio calado como tantos outros e geralmente avesso a emitir opiniões para não me influenciar, talvez por ser dia de natal, resolveu colaborar confirmando naquele seu jeito manso de falar que ele percebia a mesma coisa em seus analisandos de origem judaica. Pareciam meio perdidos. Achei graça no comentário. Primeiro, porque considerando as pessoas com quem cruzo na sua sala de espera, a amostragem não me parecia nada pequena. Segundo, por que usou um termo que sempre me intriga. Faz tempo que costumo dizer que no Brasil não existem judeus, só gente de “origem judaica”. Basta ler jornais com atenção para vermos que as pessoas portadoras da condição judaica, preferem ser “de origem” e, raramente, simplesmente “judeus”. Os jornalistas ou qualquer intelectual que escreva um artigo, dirá a mesma coisa. Origem. Freud, Einstein ou quem quer que seja, será sempre de origem, algo que se coloca no passado remoto e não comprometedor daquele sujeito. O que muitas vezes já é uma enorme consideração, pois em outros casos, como aconteceu na recente exposição dos “Russos” no CCBB onde nem mesmo a frágil “origem judaica” de Chagal foi mencionada no texto escrito sobre a parede da entrada da sala.

            Independente do cacoete nacional de pensar a realidade brasileira como uma construção (imaginária) baseada no mito de um país sem tensões e diferenças (coisa que sempre interessa às ideologias totalizantes) esta história vem de longe e também nos diz respeito enquanto judeus (de origem, escolha, filiação, afinidade eletiva, e etc.). Basta abrir o livro dos Macabeus e ler o seu inicio com a devida atenção para descobrirmos que a “angústia da diferença” é uma síndrome que vem de longe. De quebra, acabamos descobrindo que a origem da historia de Hanuká é tão mal contada quanto a lenda do azeite mágico que ardeu oito dias e a luta contra os gregos que nunca aconteceu. Para poupar o esforço de procurar o texto que não foi incluído na Bíblia hebraica e só pode ser encontrado na sua versão católica, vamos dar uma olhada na citação enquanto o Papai Noel não desce pela chaminé:

     “Por estes dias apareceu em Israel uma geração de perversos que seduziram a muitos com estas palavras  “ Vamos, façamos aliança com as nações circunvizinhas, pois muitos males caíram sobre nós desde que delas nos separamos... Construíram então em Jerusalém uma praça de esportes segundo os costumes das nações e restabeleceram seus prepúcios e renegaram a aliança sagrada” ( Mac. I-11/15)

            O que lemos poderia muito bem ser chamado de angústia da diferença, ou estarei enganado? Considerando que historicamente a tal da separação nunca existiu o desejo de ser como as nações traduzia a dificuldade de manter-se hebreu e diferente em um mundo helenizado e aparentemente homogêneo. Não resta dúvida que o paganismo era atraente para quem permanecia numa cultura monoteísta e exigente como a hebraica. Nela, deus era uma abstração e a sua revelação se dava quando um preceito era praticado. Preceitos em que a presença do outro e da justiça eram a única face conhecida de um divino que deixou o mundo por conta e responsabilidade dos humanos. Sejamos compreensivos. Não era nada fácil ficar fora dos estádios cheios de gente e das festividades que envolviam o corpo de homens desejosos de serem tão belos quanto os deuses.

            Os gregos de quem o oriente médio herdara a cultura, mas não a sabedoria, consideravam os corpos dos deuses como cheios de brilho e se percebiam opacos e sem graça em relação a eles. Sofriam com a imortalidade divina e se chamavam de maneira pejorativa de mortais comedores de pão. Jean Pierre Vernant, autor de vasta obra sobre a cultura grega, lembra que o corpo grego buscava ficar o mais parecido possível aos deuses imortais. Ele ensina que nos Hinos Homéricos, os Jônios quando se entregavam aos jogos e às danças para o agrado do belo Apolo, eram descritos como parecendo imortais “liberados para sempre da velhice”. Para isto eles untavam os seus corpos com óleos brilhantes fugindo à opacidade sem graça (Karis) de um corpo destinado à velhice e à morte.  

            Imaginem então a circuncisão. Que horror para os Gregos e os judeus helenizados que na busca de não ficarem de fora dos estádios teriam que conviver com um pênis agredido pelo pacto-do-corte-palavra, o brit milá. E então, para o espanto do Ivo Pitangui, eles inventaram a operação plástica!!!! Mais um trunfo da mente criativa dos judeus que ganham mais prêmios Nobel do que qualquer povo como gostam de nos lembrar os e-mails ufanistas que circulam na internet. Esta prerrogativa de terem inventado a plástica para acabar com a diferença precisa ser mais valorizada embora saibamos que não há diferença sem tensão. Tensão capaz de produzir a idéia de que a única maneira de uma gota de água sobreviver é mergulhando no mar. Princípio budista que aponta para uma solução de total desaparecimento da individualidade como meta desejável do humano. Pensamento que não casa com a visão hebraica de um mundo onde a diferença é vista como valor espiritual e não como estigma a ser superado.

Mítica fundação de um povo que nasce de um tal Abraão que decide sair de casa para nunca mais voltar. Caminhada sem fim em direção a uma diversidade constante que os religiosos nacionalistas de hoje parecem ignorar e os judeus de “origem judaica” não agüentam suportar ao ficarem uma noite que seja fora dos estádios onde a festa rola solta. O sábio israelense Yeshaayau Leibowitz ensinou-nos que a guerra de Hanuká foi, antes de tudo, uma guerra civil entre hebreus. Guerra de paixões entre aqueles que queriam sustentar a sua circuncisão que agredia a beleza do corpo e com ela mantinham a diferença e os valores que inventaram o humanismo e o ocidente-fora-da-grécia, e os outros, que, apaixonados pela festança grega, buscavam apagar de seus corpos qualquer marca de sua alteridade mergulhando no vasto oceano do conformismo para diminuir a angustia da diferença.

Diferença que carrega uma marca no corpo, marca que é sustentação de um símbolo. Símbolo que aponta para um pacto com um divino nunca presente enquanto espírito revelado ou deus pessoal. Deus que só se desvela a cada participante de um pacto que me leva para fora. Fora de deus em direção ao outro, o imensamente outro diferente de mim por quem sou responsável. Imensa responsabilidade que marca a mítica judaica no alvorecer de sua caminhada pelo deserto na saída do Egito. Estranha liberdade de sair do cativeiro com a responsabilidade de não permitir mais a existência de escravos. Deus estranho que não se mistura à natureza e deixa o homem ao seu destino.

 Uma religião para adultos que não oferece conforto nem salvação.

           

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Respostas a este tópico

Muito bom Paulo!

Conheci uma pessoa que trabalhou na casa de judeus, nos Estados Unidos e ela conta que eles escondiam presunto de porco na geladeira para que ninguém soubesse. Aí fiquei pensando... O que faz com que alguém se comporte de tal forma?

Seria o medo de ficar de fora? E nesse caso ao contrário da tua abordagem o medo de perder a identidade judaica.

Como se misturar sem ficar de fora? Seria isso possível?

Texto FANTÁSTICO, amei da primeira a última linha

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