JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

O fenômeno do criptojudaísmo é único na história judaica: a criação de um judaísmo de resistência, que precisou se desconectar da tradição rabínica para sobreviver à força brutal da Inquisição, abdicando de seus rituais e se desligando completamente do tronco principal da civilização judaica.
O que restou desse judaísmo foi, de um lado, a necessidade de guardar em sua memória a fidelidade na crença no Único e, do outro, saber como conviver com esse segredo – um segredo cujo grande objetivo sempre foi passar esse legado adiante, para as próximas gerações, ainda que de forma inconsciente, como uma esperança divina a ser cumprida, para que um dia seus descendentes possam retornar à casa do povo de Israel.
Essa prática vai criar o que conhecemos hoje como “criptojudaísmo” – que se tornará, dentro das condições em que os judeus perseguidos pela Inquisição viviam, uma espécie de seita judaica secreta, a única forma de poder resistir ao Santo Ofício e à total assimilação dos judeus à sociedade católica!
Para isso, viviam de forma cristã, conhecendo sua tradição, seus costumes e valores, mas mantendo por dentro a fé nas Leis de Moisés.
A força da sobrevivência do criptojudeu está em sua capacidade de reiventar o judaísmo na medida do possível e apesar de todas as dificuldades!
Sua essência era ser o que não era, jamais se esquecendo do que sempre foi, nunca negando para si mesmo o que nunca deixou de ser: judeu e judia!
O criptojudáismo nasceu de uma estratégia de sobrevivência: procurar estar invisível no meio cristão, onde somente poucos escolhidos (geralmente dentro do mesmo ramo familiar) poderiam aprender a usar uma nova linguagem judaica de códigos, práticas e rituais secretos, que, em alguns casos, foram passados e guardados até os dias de hoje.
Guardo muitíssimas histórias de encontros com o criptojudaísmo, tanto em Portugal quanto no Brasil. É sempre impressionante ouvir os relatos sobre as histórias e os costumes dessas famílias, que, com o desenvolvimento da tecnologia e da comunicação, tiveram a possibilidade de estudar e entender certos conhecimentos e práticas familiares, principalmente em suas novas gerações.
Por vezes me sinto um Indiana Jones ao entrar nesse mundo mágico, misterioso, cheio de histórias e aventuras de sobrevivência. É como se eu entrasse em um labirinto de depoimentos, fatos, contos e muito heroísmo. Não tem um só encontro ou passagem onde se vivencia a história do criptojudaísmo em que eu não me pergunte: como apesar de tudo o criptojudaísmo conseguiu sobreviver na história?
O que desejo relatar a vocês é sobre os encontros que tenho tido ao longo de vários meses com um aluno de Natal, no Rio Grande do Nortre, um jovem rapaz de 25 anos, advogado, muito culto e bem informado, quase um especialista em direitos humanos. Ele chegou a mim para estudar judaísmo e, com o tempo, vou ouvindo suas histórias familiares que sempre me encantam.
Tudo o que escrevo são impulsos que vem do meu interior: algo intuitivo que me faz sentir a necessidade de publicar e de compartilhar algo sobre esse período em que ouço as histórias familiares desse meu aluno. Tive o impulso de pedir a permissão dele para escrever essas linhas e compartilhar com vocês um pouco sobre a história de sua família.
Estou com Raul Rodrigues frente a frente, pelo Zoom, separados apenas pela tela do computador e pelos 8499 km que ficam entre Natal e o Kibbutz Nachshon.
É quando escuto essa frase!
“Sei que sou bnei anussim pela família de minha mãe, que é quase toda paraibana, mais especificamente pelos meus bisavós maternos, da família Ferreira da Silva. "
Mas para provocá-lo eu pergunto:
"O que te leva a pensar que tem raízes judaicas ? O que te levou a fazer um levantameto das varias gerações de sua família? E o que te fez fazer procurar toda essa documentação?”
E a resposta do Raul é clara e firme!
"Procuro as raízes judaica de minha familia materna, os Ferreira da Silva, que saíram da região de Araruna, na Paraíba. Meu bisavô se chamava Manoel Ferreira da Silva e minha bisavó se chamava Anna Ferreira da Silva. Ele era de uma família antiga da região, provavelmente descendente do Capitão Manoel Ferreira da Silva, natural da cidade de Goiana, Pernambuco, um dos sesmeiros originários da região do Vale do Rio Curimataú, que recebeu as terras da coroa portuguesa em 1749”.
Mas que prova você tem de que eles eram criptosjudeus?
"Hoje eu tenho algumas provas, uma delas é que esse capitão se casou com Ignácia Cavalcante de Sá e Albuquerque, prima de Felícitas Uchoa de Gusmão, que foi presa na Paraíba e enviada para Portugal, onde foi torturada e condenada pelo Santo Ofício à prisão perpétua em 1730, por prática judaica. Ou seja, um dos meus ancestrais era parente próximo de uma das vítimas da Inquisição”.
E o que mais tem na sua família da cultura do criptojudaísmo?
“Minha família era humilde. Por isso, meus familiares não possuíam costumes relacionados com o acendimento das velas do shabat, já que não podiam ter esse tipo de despesa. Minha bisavó Anna, chamada Mãe Nana por nós, não comia leite porque dizia que ‘não se mistura’ - ela tinha uma convicção de que não se devia comer leite, uma superstição que talvez se relacione com as regras da kashrut.
Minha bisavó Mãe Nana era parteira, como a filha dela, minha avó, filha, Maria Ferreira da Silva, que nós chamavámos de Nenzinha. As regras que elas seguiam eram de costume cristão novo: as mulheres que haviam dado a luz só comiam capão (frango castrado) durante o resguardo, um costume judaico da época medieval. Até o oitavo dia (por coincidência, o dia do Brit Milah) a mulher que pariu devia permanecer isolada no quarto com o bebê, sem sair para nada. Igualmente, por quarenta dias a mulher que deu a luz devia permanecer apartada do marido, sem relações, em resguardo, um costume que se origina nas regras da Torah. Nesse período, ela também não podia tomar banho e não podia trocar de roupa”.
Sua família tinha alguma tradição ligada ao culto ou à mística judaica (o que hoje nós sabemos ser algo muito comum no criptojudaísmo)?
“Minha bisavó, Mãe Nana, curava as crianças, fazia bênçãos e ‘rezava para a lua cheia’, o que é semelhante ao Kiddush Levanah. Minha bisavó, talvez também a minha avó, tinham papeis com orações secretas escondidos em bolsas de tecido e falavam muito na existência dos ‘segredos’. Mãe Nana dizia orações em silêncio, que ninguém podia escutar, orações essas que ninguém sabe hoje. O segredo era importante e algo que ninguém nunca podia descobrir.
Meus bisavós jejuavam nos Dias Grandes, a Páscoa, e talvez no Yom Kippur, mas ainda não consegui confirmar isso. Não costumavam ir a igreja, nem usavam crucifixos, nem colocavam cruzes nas paredes. Parte da minha família ‘não gostava de igreja’”.
Tinham alguma tradição ligado ao ciclo da vida. como nascimento, casamento, morte?
“Na morte, usavam mortalhas de ponto largo, não enterrava os mortos em caixão, na ‘terra limpa’, mas isso mudou com a chegada das funerárias e é um costume que ficou para trás. A água das jarras da casa em que morria alguém era jogada fora, porque ‘a alma do defunto tomava banho dentro’, uma corruptela da ideia judaica medieval de que o anjo da morte lavava sua espada nessa água. A memória dos mortos era muito importante e se jurava ou se fazia promessas em nome disso. Minha avó fez uma promessa em honra da memória de um homem que ela viu ser assassinado. Minha mãe tinha o costume de colocar pedras nos marcos do caminho, como os judeus fazem hoje nas tumbas em Israel, mesmo que ela não entendesse o por quê."
E Como era as regras familiar na alimentação?
"Na alimentação, até hoje, mantemos um respeito sagrado pela refeição e pela hora de se reunir na mesa. Todos os ovos com sangue são rejeitados. Os animais abatidos em casa são sangrados e o sangue é recolhido. A faca de abate é testada na pele do dedo. Se cai sangue na terra, ele é coberto com areia".
Você veio de uma família muito simples, do interior, como conseguiu chegar a ter uma formação acadêmica e se formar em direito?
“Uma das características mais importantes de minha família, e eu creio que isso é um valor judaico, foi uma valorização profunda pela educação formal que existe desde sempre, mesmo que meus bisavós e meus avós fossem analfabetos. Minha família foi a única do distrito que teve todos os filhos formados na universidade ou com um nível de educação superior, o que era muito raro e muito mais difícil na época do que era hoje”.
Que outras curiosidades que você define como criptojudaicas de sua família ?
“Meu avô, Pedro, que não era Ferreira da Silva, era um homem que apreciava histórias e que tinha, por si só, alguns costumes que levantam minha suspeita, mas sei muito pouco sobre as origens dele. Meu avô fazia algo bastante diferente: ele dizia que a filha mais velha dele era Abraão, que minha mãe era Moisés e que minha outra tia era Jacó. Uma vez, quando ele soube que eu ia para Jérusalem, quando meu avô ainda era vivo, ele me disse que eu lembrasse que nos lugares sagrados nós devemos colocar somente "pés descalços" - tempos depois, descobri que os judeus que visitavam o Kotel, séculos atrás, tinham o costume de tirar sapatos ao se aproximar".
Obrigado, querido Raul Rodriques, por nos oferecer essa sua linda história familiar!
Uma das grandes tragédias do judaísmo, até hoje, é não conseguir responder e enfrentar esse fenômeno único na história judaica que é o criptojudaísmo!
Se eles não se definem como cristãos e o judaísmo oficial organizado não os define como judeus, então o que eles são?
Para mim a resposta é clara: eles são judeus e judias que merecem todo respeito, sendo o nosso dever de ajuda-los a fazer o retorno à casa de Israel!
REFERÊNCIAS
HALEVY, Schulamith. DERSHOWITZ, Nachum. Obscure Practices among New World Anusim.
PINTO, Zilma Ferreira. Os Ferreira de Tacima: paraibanos da fronteira. João Pessoa: Rigrafic Editora Ltda., 2000.
PINTO, Zilma Ferreira. A Saga dos Cristãos-Novos na Paraíba. João Pessoa: Ideia, 2006.

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