ILUSÃO: O AMBIENTE EM QUE VIVEMOS Davy Bogomoletz
Rio, Janeiro de 2000 Revisto e ampliado em São Paulo, Dezembro de 2008
Gostaria de caracterizar a ilusão não por contraste com a percepção objetiva da realidade externa, mas como uma região intermediária entre a fantasia inconsciente (à qual o indivíduo não tem acesso), e a percepção da realidade – tanto interna como externa. Os que conhecem Winnicott sabem que é mais ou menos assim que ele a descreve. Por tudo que pude depreender até hoje, creio que é possível dizer que, para Winnicott, ‘ilusão’ é algo que podemos assemelhar a ‘imaginação’, por um lado, e a ‘crença’, por outro. Sugiro que a ilusão é o conteúdo do espaço transicional. Espaço transicional é o espaço criado pela atualização do espaço potencial, aquele que Winnicott diz existir entre o bebê e a mãe na época da dependência absoluta. Nessa época, marcada pela fusão, não existe qualquer espaço psicológico separando o bebê da sua mãe. Os dois, segundo Winnicott, são um. No espaço potencial irão sendo colocados ‘objetos’ – experiências do bebê, e mais tarde imagens de objetos concretos, que o bebê virá a possuir, e é assim que o espaço potencial transforma-se em espaço transicional.
A partir de Kant, e com a colaboração final de Lacan, sabemos que não existe uma REALIDADE da qual se possa ter certeza, pois o REAL (a coisa em si) está fora do campo da percepção (na verdade, segundo o que entendi de Lacan, o Real está fora da cultura, isto é, não exatamente do que o ser humano pode perceber, mas do que pode compreender. No entanto, é praticamente inevitável que quando alguém percebe o Real, estará de fato percebendo a morte, ou seja, o perigo absoluto, e a morte, como sabemos, só pode ser percebida de modo indireto, por suas causas e seus efeitos, mas não como fenômeno.)
Restam-nos então dois faróis a guiar-nos pela estrada da vida: Nas palavras de Lacan, o simbólico, esse território onde tudo é possível, mas nada é certo, e o imaginário, onde muita coisa é ‘certa’ (ao menos do ponto de vista da onipotência do sujeito - mas quase nada, por isso mesmo, é possível. Na linguagem de Winnicott, o território do simbólico equivale às coisas que percebemos ‘objetivamente’, em contraste com as coisas que concebemos subjetivamente, que equivaleria ao imaginário. Mas para Winnicott, o que percebemos ‘objetivamente’ não se chama ‘realidade’, mas ‘realidade compartilhada’, ou seja, aquilo sobre o qual duas ou mais pessoas concordam que ‘é verdade’, e quanto mais pessoas concordarem a respeito, mais ‘verdadeira’ é a coisa percebida. Exemplo: muitas coisas são verdadeiras para um povo, enquanto outro as acha inteiramente disparatadas. E nos partidos políticos, assim como nos torcedores de clubes esportivos, vemos ‘realidades compartilhadas’ que só são compartilhadas por eles mesmos, sendo inteiramente desacreditadas pelos demais. A ‘realidade compartilhada’ tem, em sua periferia, uma ampla região onde a qualidade de ‘verdadeiro’ é muitíssimo escassa, vigorando ali mais o conluio entre umas poucas pessoas sobre determinado fenômeno, do que a possibilidade de ele ser captado por instrumentos físicos de registro, tais como uma máquina fotográfica.
A inexistência de uma fronteira nítida entre a ‘realidade’ e a ‘ilusão’, portanto, é um dos elementos centrais para a compreensão do problema da percepção humana. Recapitulando: existem três áreas de atividade perceptiva, portanto, e não duas: a área da fantasia inconsciente (onde a ‘percepção’ também é inconsciente), a área da realidade compartilhada, e a área da ilusão, que fica no meio. Podemos dizer que a cultura abarca a região da realidade compartilhada e uma boa parte da área da ilusão. Na primeira parte encontram-se os fenômenos físicos de um modo geral e os fenômenos sociais objetivos (tais como as leis, os contratos, o mundo do trabalho, da ciência, etc.), sendo que na segunda parte iremos encontrar tudo aquilo que diz respeito às artes, à religião, ao comportamento e aos relacionamentos em geral. Se o que chamamos de ‘ilusão’ é constituído pela segunda zona epistemológica, a que fica entre a ‘realidade compartilhada’ e a fantasia inconsciente, é possível demonstrar que é nessa região que vive o humano. A terceira região, da fantasia inconsciente, é demasiadamente privada. Como tal, está fora da cultura, e também do que chamamos ‘percepção’.
Minha intenção é demonstrar que houve uma distorção da sociedade ocidental (mais tarde copiada, neste ponto, por vastos segmentos da sociedade oriental) no sentido de fazer com que a parte ‘objetiva’ da realidade compartilhada conquistasse nacos cada vez maiores do território em princípio pertencente à segunda região, a da ilusão. A partir do dia em que o pai da ciência moderna, René Descartes, chegou à conclusão de que, depois de duvidar de tudo aquilo que conhecia, era-lhe possível concluir que de uma coisa pelo menos ele podia ter certeza – do fato de que duvidava – começou um longo processo de ‘depuração’ dos conteúdos mentais do homem ocidental.
Freud, no início de sua heróica jornada em busca do inconsciente, fez esforços consideráveis para provar a todos os seus interlocutores – amigos ou inimigos – a ‘objetividade’ do inconsciente e a ausência, em suas formulações teóricas, de qualquer espaço para as crenças, ficções, superstições ou ilusões indignas de qualquer confiança. Com isto, procurou inscrever a Psicanálise na categoria epistemológica de ‘Ciência’. É impossível evitar uma comparação entre essa preocupação básica de Freud e a frase célebre (mas tão poucas vezes lembrada) em que ele compara a tarefa do bom psicanalista àquela do cirurgião: Da mesma forma como este deve fazer o seu trabalho abstraindo-se de qualquer preocupação com a pessoa na qual ele realiza a intervenção cirúrgica, o psicanalista não deveria nunca levar em conta as reações emocionais do paciente ao qual é preciso dizer as verdades descobertas na sessão de análise. Ou seja: chegou-se – inclusive na psicanálise – à idéia de que só pode ser ‘científico’ aquilo que abole inteiramente aspectos considerados subjetivos da situação em pauta. De modo curioso, portanto, a ‘Ciência’ conseguiu infligir ao pensamento humano o mesmo dano que ela atribuía à religião e aos mitos: O de dividir o homem em duas partes, jogando uma delas fora. Se a religião tentava jogar fora o raciocínio lógico do homem, e portanto a sua capacidade de processar informações da realidade e a partir delas questionar as ‘verdades’ religiosas (Galileu que o diga...), a ciência passou a jogar fora os aspectos subjetivos do homem, suas fantasias e seus sentimentos, seus vínculos e suas reações emocionais, para assim melhor alcançar a ‘objetividade’. Um ditado popular muito usado na Inglaterra é: ‘Não se deve jogar fora o bebê junto com a água do banho’... Mas a meu ver foi justamente isto que a Ciência da era moderna fez. Podemos ver esse fenômeno em funcionamento numa frase de Max Weber a respeito da burocracia, citada por Zygmunt Bauman em ‘Modernidade e Holocausto’(Zahar Editora). Diz Bauman:
‘Como todas as outras atividades receptivas à racionalização burocrática, ela (a administração do morticínio realizada pelos burocratas nazistas no decorrer do Holocausto) se encaixa bem na sóbria definição da administração moderna dada por Max Weber:
‘Precisão, rapidez, clareza, conhecimento dos arquivos, continuidade, discrição, unidade, estrita subordinação, redução do atrito e dos custos materiais e pessoais – tudo isso é levado a um grau de otimização na administração estritamente burocrática... A burocratização oferece acima de tudo a possibilidade ótima de realizar o princípio das funções administrativas especializadas de acordo com considerações puramente objetivas... O desempenho ‘objetivo’ de um negócio significa basicamente um desempenho segundo regras mensuráveis e sem consideração com pessoas.’’
Assim fala Weber sobre a administração, que na prática implica no gerenciamento das atividades humanas no interior da sociedade, e Bauman aplica essa definição ao funcionamento da máquina exterminadora nazista cuja atuação resultou no fenômeno chamado Holocausto. O livro de Bauman é uma devastadora crítica à aplicação exclusiva dos princípios da Ciência à regulação das atividades e da vida humana, corroborando a percepção aqui proposta de que, quando aplicado à sociedade ou à vida do indivíduo, o pensamento científico clássico necessariamente amputa um elemento vital do campo em que atua. Portanto, há mais nessa ideologia científica que apenas a busca da objetividade. Há também uma negação. Como sabemos, um dos elementos básicos do método científico consiste em desvincular tanto quanto possível a subjetividade do observador do fenômeno por ele estudado. É vital, para que a ciência se faça, que o pesquisador encontre o que o fenômeno lhe oferece, e não o que ele desejava encontrar. Sob este ponto de vista, caberia a um cientista que se pusesse a estudar a vida humana olhar o seu campo de estudos com a intenção plena de ali observar tudo aquilo que pode ser observado. Nem mais, nem menos.
Aqui, porém, surge o problema. Por um lado, esse ‘nem mais’ refere-se àquilo que, sendo mau cientista, o nosso amigo pudesse projetar de sua própria subjetividade sobre o seu objeto de estudo. E disso ele se protege tanto quanto possível, caso contrário seus colegas cientistas contestarão os dados por ele reunidos para sustentar as suas hipóteses. Mas quando chegamos ao ‘nem menos’, se de um lado há um método científico que o instrui a observar todos os aspectos do campo ou fenômeno estudados, não lhe foi explicado, a esse nosso amigo cientista, que é apenas a sua própria subjetividade que deverá estar em suspenso na hora da observação, e não a subjetividade do indivíduo ou grupo estudados.
O que vemos, porém, é que a partir do momento em que o método científico passou a ser aplicado tal como o conhecemos ao longo da história moderna, os cientistas do homem ou da sociedade aboliram, pura e simplesmente, toda e qualquer subjetividade do seu campo de observação, não só a deles mesmos mas também a daqueles que estavam estudando. (Muito curiosamente, os cientistas chamados ‘antropólogos’, aqueles que estudam as populações consideradas ‘primitivas’, nunca agiram desse modo. Como se, por se tratar de seres humanos ‘primitivos’, lhes fosse ‘permitida’ a subjetividade...) No caso das ciências que estudam o homem, isto fez com que a objetividade da observação deixasse de ser um método para se transformar numa ideologia! Pois passou a ser necessário negar que houvesse fenômenos subjetivos (gosto ou desgosto, aceitação ou rejeição, divergência ou submissão, por exemplo) acontecendo no campo observado. E enquanto ideologia, deixou inteiramente de ser ‘científica’. Se a religião, então, propunha um falso concern, como dizia Nietzsche (a ‘bondade dos fracos’, que só servia para reprimir a força dos ‘fortes’), a ciência, ao desbaratar o poder da religião, fez (‘sem querer’, como diz personagem Chavez da TV) o homem voltar à ruthlessness, ao estágio do desenvolvimento emocional caracterizado pela rejeição ao não-eu e pela ausência da capacidade de importar-se com o outro. É precisamente por este motivo que Winnicott, ao falar da regressão no tratamento analítico, diz que o trabalho do analista nessas situações costumava ser caracterizado, por aqueles que o faziam sem uma teoria para respaldar sua atuação, como ‘arte’ (a ‘arte do terapeuta’). Por não conseguirem encaixar nem a regressão do paciente nem a sua forma de lidar com a mesma nas categorias teóricas (portanto ‘objetivas’) propostas pela psicanálise ‘oficial’, os psicanalistas alegavam que se tratava de ‘arte’, portanto de algo fora da ‘ciência’, fora da ‘objetividade’. Para Winnicott, no entanto, trata-se na verdade de ciência e não de arte. A adaptação do analista às necessidades do paciente realmente não é arte e sim ciência na medida exata em que ele, observando o paciente com todo o cuidado e eximindo-se de interferir na situação observada com a sua própria subjetividade, está fazendo o melhor tipo de ciência que poderia existir, aceitando o fenômeno em todos os seus aspectos e evitando amputar algum desses aspectos que lhe são próprios em função de alguma ideologia que assim determinasse. No seu artigo ‘Observação de Crianças numa Situação Padronizada’ (em Da Pediatria à Psicanálise), onde ele descreve o comportamento de bebês em relação a uma espátula em seu consultório de pediatria, Winnicott leva adiante o ‘fort da’ de Freud, aplicando a capacidade de observar objetivamente a fenômenos que até então não passavam de ‘bobagens de bebê’. Pelo que sei, esse texto nunca mereceu no universo psicanalítico a consideração que lhe seria devida. Nele, Winnicott mostra como o bebê, deixado à vontade numa situação padronizada, tem um comportamento extremamente significativo e notavelmente ‘subjetivo’, isto é, dotado a mais não poder do que chamamos de ‘condição de sujeito’. A esse respeito recordo-me de uma observação de Konrad Lorenz, pai da etologia, disciplina científica que observa os animais em seu habitat natural, em vez de no laboratório. Perguntado sobre o que achava das descobertas do ilustre Pavlov, com seu cão que salivava ao ouvir a campainha, Lorenz respondeu que Pavlov baseou todo o seu pensamento numa observação equivocada. O cachorro salivava apenas porque não tinha como fazer outra coisa, pois Pavlov o imobilizou inteiramente, procurando, como mandava a ciência de então, isolar todas as variáveis intervenientes. Tivesse ele deixado o cachorro solto, teria visto coisas muito diferentes: assim que a associação entre a campainha e a carne estivesse estabelecida, Pavlov teria visto o seu cachorro, quando batesse a fome, correr para a campainha e latir para ela até vê-la tocar.
O que chamamos então de fenômenos ‘subjetivos’, na maioria das vezes atribuindo-lhes uma conotação pejorativa, por oposição desvalorizada aos ‘bons’ fenômenos ‘objetivos’, constituem na verdade a substância – e não os subprodutos – disso que atualmente tanto valorizamos sob o título de ‘condição de sujeito’.
O que Winnicott propõe, percebo-o agora, é uma ‘Ciência da Condição de Sujeito’. Claro que Lacan, com sua distinção entre o ‘moi’ (o eu visível, portanto secundário) e o ‘je’ (inconsciente, portanto primordial) faz a mesma coisa. Mas suspeito que Winnicott foi um pouco mais sutil ao apresentar suas propostas sem desancar adversários, como fez Lacan, porque ao aplicar a sua própria condição de sujeito ao seu discurso, Lacan não soube evitar que o fenômeno da submissão funcionasse livremente ao redor de suas proposições teóricas. Já Winnicott, lançando sobre a mesa os seus trabalhos e deixando que eles fossem apanhados por quem o quisesse, sem nunca perder tempo ‘derrubando’ adversários ou ‘corrigindo’ discípulos, tentou evitar que as suas proposições sobre o verdadeiro self (o ‘sujeito’) corressem o risco de produzir um resultado nefasto: para ele era claro que o verdadeiro self só é verdadeiro enquanto se relaciona com outros selves igualmente verdadeiros. Um verdadeiro self que se compraz em produzir falsos selves à sua volta merece um nome específico – o de ‘verdadeiro self imaturo’ – o self de uma criança pequena – que é um fenômeno por direito próprio e que deve ser percebido em toda a sua especificidade, e jamais confundido com o verdadeiro self propriamente dito. Pois a submissão é, como Winnicott nunca se cansou de mostrar, o pior de todos os males: A submissão é a morte do sujeito, embora não seja a morte do indivíduo. Do modo como Winnicott construiu a sua teoria psicanalítica, teríamos que encontrar diferenças decisivas entre a psicologia de um indivíduo submetido à escravidão e a psicologia daquele que é senhor desse escravo. Num, daríamos pela falta da condição de sujeito, e portanto estaríamos frente a um indivíduo que ainda não alcançou essa condição. No outro, daríamos pela presença da condição de submetedor, e portanto estaríamos frente a um sujeito imaturo, uma criança mandona que ainda não alcançou inteiramente a aceitação do ‘não-eu’, e portanto o ponto decisivo do desenvolvimento emocional, que é o concern. Winnicott não admite que a vida humana se passe nas duas posições radicais propostas por Hegel, a do senhor ou a do escravo. Para ele há de fato uma ‘psicologia do homem livre’, (o que não significa ‘independente’) não submetido a ninguém e não submetendo ninguém. E isto faz uma diferença total, quando tentamos pensar a sociedade a partir da psicanálise.
Mas o que tem tudo isto a ver com a ilusão? O seguinte: Digamos que, a partir das proposições de Winnicott, existam três modos básicos de relacionar-se, cada um muito diferente dos outros dois. O primeiro é aquele denominado ‘fusão’, ou ‘simbiose’, ou ‘dependência absoluta’. Não é preciso descrever esse modo de relacionar-se. (Ver, a respeito, meu artigo ‘Um é Pouco, Dois é Bom, Três é Demais’, publicado antes deste.) Em segundo lugar, na ordem do desenvolvimento, há o relacionamento que Balint chamava de ‘amor objetal primitivo’: uma forma de vinculação em que um dos membros exerce poder sobre o outro – mesmo que seja um poder ‘virtual’, como é o poder que o bebê exerce sobre a mãe, por exemplo. Essa é a época em que o eu do bebê, beneficiando-se da ilusão de onipotência que lhe foi presenteada pela mãe durante a fase da dependência absoluta, sente-se um tanto ‘dono do mundo’, um mundo que ele ainda não conhece por inteiro, pois ainda não lhe foi apresentado pela mãe, mas um mundo que ele crê dominar porque nessa época tudo aquilo que vem do eu é bom, e tudo aquilo que vem de fora do eu é mau. Nessa época o bebê é impiedoso (ruthless), ou seja, não lhe ocorre que seus atos possam causar dor ou desconforto aos outros. Só mais tarde irá ele se preocupar com as consequências de seus atos para os outros, e então atingirá a fase humana propriamente dita do seu desenvolvimento emocional, a fase do concern. Até então temos um ser que no início comporta-se como um vegetal, (sem interação visível com o ambiente), em seguida temos um ser que se comporta como um animal, (sem compaixão nem interesse pelo bem estar alheio), e só ao final do processo teremos isso que podemos legitimamente chamar de ‘ser humano’. Obviamente, ao dizer isto estou consciente de que deixo fora da humanidade uma grande parte do gênero humano, mas este não é o problema. O problema é que quando não o fazemos, estendendo a noção de ‘humanidade’ para que nela caibam todos os indivíduos da nossa espécie, criamos uma situação em que não há porque imaginar nada melhor do que aí está, e legitimamos a famosa afirmação de Freud sobre o ‘verniz de civilização’ que cobria mal e porcamente o animal selvagem (e por isso mesmo impiedoso) que ele chamava de ‘ser humano’. Em Freud não havia a percepção de um verdadeiro desenvolvimento emocional. Havia a noção de um desenvolvimento das zonas erógenas (e secundariamente do desenvolvimento dos comportamentos característicos a cada uma). A superação do complexo de Édipo (ou seja, a repressão dos impulsos impiedosos e auto-centrados) dava-se pelo terror à castração, que tornava inevitável a colocação do outro no centro do universo. Um outro, porém, dotado de um poder supremo, ao qual é necessário submeter-se. E esta visão concorda, essencialmente, com a formulação de Hegel segundo a qual o homem ou é senhor ou é escravo.
A meu ver, Winnicott procurou – e encontrou – a saída para esse ‘beco sem saída’ político-social: a percepção de um fenômeno inato chamado concern, ao qual o bebê chega não por aprendizagem ou por repressão, mas pelo desenvolvimento de suas capacidades perceptivas inatas, e pela integração das percepções assim produzidas (estando ele no interior de um ambiente onde se sente seguro). O que Winnicott nos leva a entender é que um bebê só se torna inteiramente humano se for criado num ambiente que o permita. Caso contrário, permanecerá vivendo num ambiente visto como ameaçador pelo resto da vida, independente de quantas metralhadoras estiverem à sua disposição. Ao falar da ‘apresentação do mundo ao bebê’ como uma das tarefas mais importantes da mãe, ele deixa claro que a qualidade desse mundo no qual o bebê se perceberá vivendo é dada pela mãe. O detalhe de que o bebê só pode viver bem num mundo que ele próprio tem a ilusão de haver inventado torna óbvio que para que isto ocorra é preciso que o ambiente se comporte de um modo muito específico, pois caso contrário não haverá para o bebê qualquer possibilidade de inventar nada – o ‘eu’ do bebê será abalroado pelo ambiente, atropelado e esmagado, não permitindo que nada parecido com uma ‘condição de sujeito’ surja e se instale na psique do bebê. Fica patente, então, a correlação integral entre ‘condição de sujeito’, ‘ilusão da invenção do mundo’, e ‘comportamento do ambiente’. Esses três fenômenos, responsáveis, segundo Winnicott, pela saúde e maturidade emocional do ser humano, são notavelmente da ordem do impalpável, do subjetivo, do não quantificável e do não objetivável. Nenhum dos três fenômenos pode ser chamado de ‘fato’, muito menos de ‘objeto’. Nenhum dos três fenômenos pode ser submetido ao método científico clássico (embora seja perfeitamente possível realizar pesquisas a respeito). Mas os quarenta anos de Winnicott como pediatra, além da sua longa, profunda e variada experiência psicanalítica, legitimam as suas observações e as conclusões que ele tirou das mesmas. E é sobre este aspecto da vida humana que estou falando neste momento. Não é na região ‘objetiva’ da realidade compartilhada que vive o homem, e muito menos no Real, e tampouco vive ele na fantasia inconsciente. Pode-se dizer que, para Lacan, o homem vive na linguagem, mas a linguagem que Lacan nomeia não é o que está nos livros de gramática ou nos dicionários, é o que estou aqui chamando de ilusão: Todo o vastíssimo território que vai do núcleo do processo primário (fantasia inconsciente) ao auge do processo secundário. A ‘linguagem’ de Lacan é constituída de significantes que deslizam e deslizam e nunca param de deslizar, com seus jogos semânticos e sua ausência radical de significados, e portanto é o somatório de significações que cada pessoa guarda em seu dicionário privado e do qual ela retira sentidos que parecem apropriados a cada situação.
O homem vive nessa eterna interpretação de textos, os próprios e os alheios, construindo para si um Talmúd particular. O Talmúd é um repositório de comentários, controvérsias e evocações de muitas gerações de sábios judeus que discutiam sem cessar os comentários, controvérsias e evocações dos sábios que os precederam, numa infindável sucessão de interpretações que buscavam sempre um entendimento melhor do grande texto básico, a Bíblia.
A diferença entre um homem e o Talmúd é que o homem não tem uma Bíblia prévia sobre a qual se basear, como diz Heidegger (tão bem ensinado por Loparic). Ele tem, no máximo, um conjunto de ilusões a partir do qual as coisas parecem fazer algum sentido. A ilusão de existir, por exemplo. A ilusão de ser onipotente (mais tarde posta em segundo plano). A ilusão de ser possível comunicar-se com os outros (e com esta Winnicott concorda). A ilusão de estar seguro. A ilusão de que se pode conseguir o que se deseja. A ilusão de brincar – a suprema ilusão, pois trata-se da ilusão de que existe uma ilusão... E assim por diante. Obviamente, a cada uma dessas ilusões corresponde outra, que é da mesma ordem mas tem um sentido diferente. Por exemplo, a ilusão de não existir, ou de não estar seguro, ou a de que comunicar-se é impossível, ou de que não adianta tentar pois nada será alcançado, e também a ilusão de que não é possível ter ilusões. Winnicott fala de experiências, não só de ilusões. Diz ele que uma série de situações concordantes transforma a ilusão de onipotência numa experiência. Ainda assim, porém, essas experiências não se transformam em fatos: Continuam sendo ilusões, mas podem transformar-se em convicções – se o ambiente ajudar (ou em convicções negativas, se o ambiente ‘ajudar’ no sentido inverso...).
O homem então nasce tabula rasa, como diziam os antigos, e é o ambiente que o forma? Não, o homem nasce um somatório de potenciais, ou um ‘pacote de probabilidades’, como dizem os físicos. As que prevalecerem o farão graças ao tipo de ambiente no qual o bebê nascerá – exatamente como ocorre na física das partículas subatômicas, onde o resultado do experimento é condicionado não só pelas características dos fenômenos observados, mas também pelo tipo do experimento – e pelo fato em si de que o experimento está sendo realizado. Observar uma partícula subatômica implica em interagir com ela, e essa interação a modifica. Da mesma forma, ao interagir com o bebê o ambiente o modifica, e nós diríamos: para o bem ou para o mal.
Portanto, há dois tipos de ilusão, esse é que é o problema. Há a ilusão que funciona como a pérola produzida pela ostra, que cria uma camada lisa e confortável em volta do fato (a intrusão do mundo externo) e o torna suportável. Mas há também a ilusão que simplesmente ignora o fato, e cria no seu lugar um buraco que será preenchido pela onipotência do indivíduo. Temos então uma ilusão a serviço da existência, e uma ilusão a serviço da onipotência. O que estou tentando propor aqui é que a ilusão a serviço da onipotência muitas vezes se apropria do poder e passa a negar a condição de sujeito do outro – e um dos instrumentos mais eficientes nessa direção é a anulação da subjetividade – portanto da ilusão – alheia. A ilusão a serviço da onipotência é a máquina por trás do Holocausto – de qualquer holocausto, de qualquer escravidão, de qualquer massacre. A ilusão a serviço da onipotência é a ilusão do verdadeiro self imaturo, impiedoso, ruthless, que ainda não alcançou o concern em toda a sua plenitude.
Se tudo isto é verdade, sou obrigado a dizer que a queixa das mães de que a culpa é sempre delas irá agora aumentar ao máximo, pois estou realmente afirmando que a responsabilidade pela produção do concern é exclusivamente da mãe. Mas o fato é que cada sociedade tem as mães que merece. Podemos, então, imaginar uma ‘fórmula’ para combinar todos esses fatores: Sociedade – ideologia (incluindo religião e ciência) – formas de interação social – condição da mulher – criação de filhos – cidadãos – sociedade. Portanto, às mães não cabe culpa nenhuma. No entanto, é em suas mãos que está a saída – desde que os que a informam e os que a ajudam tornem possível que o trabalho delas produza sujeitos, e não senhores ou escravos. A responsabilidade, então, é da sociedade, e das instituições científicas que informam essa sociedade (pois agora são elas que estão no poder, e não mais as instituições religiosas). E talvez principalmente das escolas, que transmitem de modo privilegiado (desde o início) as ideologias da sociedade aos jovens indivíduos. É preciso, pois, tornar as ciências do homem (inclusive a medicina), não menos científicas, mas mais científicas, para que produzam aplicações capazes de levar em conta a subjetividade, e portanto essa ilusão chamada de ‘condição de sujeito’. Caso contrário, como sugere Bauman quando fala da dissociação introduzida pela ciência entre o que é objetivo e o que é subjetivo (pág. 122), temos o Holocausto. É claro que a coisa não é tão simples, e Bauman escreve o seu magnífico livro justamente para tentar entender ao máximo os vários aspectos do processo. Seja como for, porém, o que vemos em Auschwitz, na sua escala maior; nas guerras e nos genocídios em geral, numa escala um pouco menor; ou em casa, no trabalho, na escola, (até na instituição psicanalítica, quem sabe) nas suas manifestações corriqueiras em suas dimensões infinitesimais, é a morte da condição de sujeito. Tanto do outro, quanto do eu, a partir de uma ilusão de onipotência que, a título de evitar a periclitância do viver não onipotente, garante, isto sim, a morte. A negação da condição de sujeito é o grande problema da humanidade. À psicanálise cabe mostrar como resolvê-lo.