JONAS - O PROFETA PARADIGMÁTICO - Davy Bogomoletz
Curiosa, a história de Jonas. Tudo acontece a ele - desde ser o eleito de Deus, até quase morrer num naufrágio. Desde salvar uma grande cidade do desastre, até desfalecer de canícula e pedir pata morrer. Por três vezes Jonas fala em morrer, logo ele, que salva da morte tanto os pobres marinheiros mediterrâneos quanto todos os seres vivos de Nínive. A telegráfica epopéia de Jonas, tão breve quanto contundente, é uma bela amostra, completa em si mesma, do que significa, na linguagem bíblica, o verbo “profetizar”.
Pois o que é o profeta? Um filósofo, como Sócrates, por exemplo, que pretende educar o povo e transformá-lo num povo melhor? Um político, como Cromwell, que lidera um movimento de reforma total do regime que governa o país? Um poeta, como Balzac, que, armado apenas de sua pena, sacode a consciência de uma nação e a faz tomar uma decisão diferente da que tinha tomado?
Será o profeta tudo isso ao mesmo tempo? E o que dizer dos profetas individualmente? Eram todos iguais? Havia diferenças marcantes entre eles?
Para falar a verdade, não pude ler integralmente todos os textos dos dezessete profetas bíblicos (incluindo Daniel), com seus livros mais ou menos volumosos. Tenho uma idéia razoavelmente abrangente, porém, segundo a qual podem haver distinções de personalidade, de estilo e de profundidade entre eles, mas não diferenças de intenção. E é sua intenção que me interessa.
Foi por isto que tomei o livro de Jonas como exemplo paradigmático. Pois as intenções da função do profeta surgem cristalinas nesse livro.
De propósito, disse “as intenções da função do profeta”, e não “as intenções do profeta”, justamente porque Jonas, o homem, contraria tais intenções, e não tem intenção alguma de exercer a sua função. Ele foge dela, ele a renega, ele não concorda com a idéia de, por exercer sua função, alcançar a intenção e realizá-la.
Jonas surge, então, como um “caso”, um exemplo cristalino e belo, que nos leva a entender de uma vez o que faziam – e por que o faziam – os profetas. O que pretendiam eles. O que buscavam com sua oratória candente, violenta, absolutamente esmagadora – tanto ao ameaçar quanto ao consolar.
Tudo o que li dos profetas até hoje – e não foi muito, embora não tenha sido pouco – leva-me a crer que não só é inteiramente desavisada a idéia de que eles simplesmente “previam o futuro”, como é superficial a idéia de que eles tentavam fazer o povo comportar-se melhor e seguir as leis de Deus. Não são poucas as vociferações deles contra os que cumprem a lei mas se esquecem dos oprimidos. É verdade que, na Toráh de Moisés, muitas são as leis que impelem o homem a realizar a justiça social. Portanto, o judeu que cumpre a lei está automaticamente agindo em prol do bem estar social.
Mas uma coisa é agir nesse sentido, cumprindo simplesmente os mandamentos, e outra coisa é considerar a importância disto, indo além dos mandamentos. Pois não basta, para que uma sociedade seja considerada justa, o cumprimento dos preceitos e dos regulamentos. É perfeitamente possível ser um canalha e ainda assim cumprir direitinho todos os mandamentos. Maimônides chama esse homem de “canalha amparado na Toráh”. Porque a Lei – o rigor, o julgamento preciso, a aplicação das regras – não é completa sem o seu oposto, a Compaixão – que passa ao largo da Lei se o caso individual o exige. A Compaixão não é uma ‘lei’, é um ato voluntário, de generosidade. A Compaixão pesa tanto quanto a Lei, e ambas sustentam o Universo, conforme os sábios da antiguidade. Porque sem a Lei o Universo volta ao caos, e sem a Compaixão ele congela e morre. Então o ‘canalha amparado na Toráh’ é aquele que desconhece a Compaixão, e limita-se a aplicar a Lei. ‘Dura Lex, sed Lex’, diziam os romanos, para os quais a Compaixão era uma ilustre desconhecida. O Judaísmo não admitia tal coisa. Ou os dois lados da moeda, ou moeda alguma. Mas o egoísmo humano funciona dividindo as duas coisas, em vez de aceitá-las ao mesmo tempo: Compaixão é o que EU mereço, Lei é como os outros devem ser tratados. Assim funciona todo o mundo, e sabemos disso. Mas há quem vá um pouco além, e acaba percebendo que sem a Compaixão aplicada ao outro, não haverá Compaixão para si também. E o mundo se salva graças a essa percepção.
E é disto que falam os profetas. Da Compaixão. Porque a Lei já está escrita, é só decorar e aplicar.
A leitura dos profetas nos leva ao que há de mais nobre, mais específico, mais excelso da civilização judaica – este, ao menos, é o meu ponto de vista. É preciso entender, então, em que consiste essa literatura – e por que sua importância.
Gostaria de começar contando que, nos Estados Unidos, uma certa pesquisa de psicologia social registrou resultados um tanto inusitados. Apresentaram a um grupo de homens e mulheres uma situação hipotética: Um homem, precisando comprar determinado remédio, vai à farmácia e descobre que não tem o dinheiro necessário para a compra. Ele então rouba o remédio e vai para casa. Pergunta: O que você acha do comportamento do personagem? Resposta masculina predominante: Ele estava errado, o roubo é um crime, não devia ter feito isso. Resposta feminina predominante: Depende muito de qual era a situação. E se a mulher dele estava à morte? E se alguém precisava demais do remédio? E se ele voltasse e pagasse no dia seguinte?, e assim por diante.
Conclusão: Os homens tendem a ser esquemáticos, dividindo as possibilidades em duas – certo ou errado, bem e mal. As mulheres são mais complexas: Tentam examinar as várias configurações da situação, e julgá-las mais pelo contexto que por um critério externo a elas. Os homens tendem à abstração, as mulheres tendem à concretude. Os homens referem-se à idéia, as mulheres se relacionam com o indivíduo de carne e osso. Por fim, podemos dizer que os homens, mostrando maior tendência à racionalidade, impessoalizam a situação e se importam com o geral. As mulheres individualizam a situação, e se importam mais com o singular.
Pelo pouco dito até agora, alguém já pode ter adivinhado a que lugar pretendo chegar: Sim, à idéia de que o discurso profético é, na sua essência, na sua intenção, um discurso feminino.
Mas feminino não quer dizer “pertencente a mulheres”. A coisa é muito mais complicada.
Podemos começar com os famosos termos chineses yin e yang: o primeiro refere-se a uma força que, sem realmente agir, possibilita a ação. O yin seria, então, uma espécie de útero dentro do qual o feto pode crescer. O útero não faz o feto crescer, mas sem ele não há chances para o feto. Essa é a força do yin. Podemos chamá-la de feminina. Já a força do yang é tipicamente masculina: É a força que avança, que ultrapassa, que tira do caminho, que remove montanhas e aplaina vales. O yang fabrica pontes. O yin deita-se e se deixa atravessar.
Winnicott, o psicanalista inglês, conhecendo ou não essas idéias chinesas, fala em Ser, o princípio feminino, e Fazer, o princípio masculino. Ser é a função mental que é, que vive, que sente. Fazer, como o nome diz, é a função mental que funciona, que aciona, que constrói. Ser e Fazer perfazem a mente como um todo. Equivalem, respectivamente, aos hemisférios direito e esquerdo do cérebro. Quando há equilíbrio, temos uma pessoa que só pode ser chamada de “sábio” - ou “sábia”. Quando o equilíbrio não ocorre, temos alguém tipicamente normal. E quando o desequilíbrio é acentuado demais, temos o facínora, o puro Fazer, ou então o tolo e o louco, o puro Ser.
Na filosofia judaica, e também no nosso misticismo, temos essas duas vertentes do humano descritas em termos de “Midát haDín” e “Midát haRahamím”, a Dimensão do Rigor (da Lei) e a Dimensão da Compaixão. Ficou claro, então, por que chamo o discurso profético de “feminino”. Ele é feminino na medida em que sua preocupação principal não é com o Fazer, e sim com o Ser. Não é com o yang, mas com o yin. Pois é o Ser, o yin, que carrega em si a sensibilidade da percepção do outro, o diferente, como um “sujeito igual em direitos”. Para o yang, o outro ou é um objetivo, ou um objeto, ou um rival. É o yin, portanto, que nos permite desempenhar a arte do relacionamento.
Buber chama, inclusive, explicitamente a relação do tipo yin de Relação Eu - Tu, e a relação do tipo yang de Relação Eu - Isso. Ele não usa esses termos chineses, é óbvio, mas o significado é exatamente esse.
Assim, vemos o profeta às voltas com a eterna tarefa de enfiar um pouco de yin na cabeça yang do homem em sociedade – sabendo nós, obviamente, que a predominância do masculino nas situações sociais tenderia a tornar a sociedade injusta, manca, doente, e por fim auto-destrutiva. (Não foi por outra razão que Sodoma e Gomorra foram destruídas... A descrição da masculinidade pura de seus habitantes é muito eloqüente.) Os nossos profetas, então, nos convocam a dar lugar, ao lado das nossas ambições, à sensibilidade e à compaixão.
A sociedade patriarcal (e praticamente todas são, com algumas honrosas exceções que, ao final de contas, apenas enfatizam a regra) tende a esquecer que um dos primeiros deveres da sociedade humana é abolir a lei do mais forte. Abrahão o propôs como projeto de civilização, (tenho inclusive um trabalho a esse respeito), e de lá para cá o que vemos ao longo de toda a Bíblia é a luta incessante de alguns malucos, convencidos de que são porta-vozes de Deus, para amolecer a cabeça dura dos homens, aqueles que mandam na sociedade, a fim de fazê-los perceberem que o sofrimento do outro é pelo menos tão importante quanto o prazer deles mesmos.
Amós o faz, e Isaías, e Jeremias, e todos os outros. E Jonas.
Mas Jonas o faz contra a vontade, e com isso torna visível a olho nu qual a função do profeta: Cumprir a vontade do Deus bíblico, o Deus paciente e compassivo (hanún verahúm, apesar de não ser nem um pouco “bonzinho”...) de levar os homens a se comportarem de modo igualmente paciente e compassivo, para assim merecerem a paciência e a compaixão de Deus.
A HISTORIA DE JONAS
Jonas é deveras paradigmático. Primeiro, é um exemplo perfeito do assim chamado Homem. Ele se comporta o tempo todo como um digno representante da “raça masculina”: Primeiro, evita a responsabilidade fugindo da Judéia, como um típico descendente de Caím, o irmão mais bruto de Abel. Segundo, no navio que o levará, assim pensa, para longe de Deus, ele não se preocupa muito em deixar a tripulação a salvo daquele que é o seu próprio problema: enquanto a tempestade ruge lá fora e os marinheiros entram em pânico, ele deita e adormece o sono não dos justos, mas dos que se consideram mais importantes que o resto do mundo. Terceiro, ao capitular e cumprir o mandato de Deus, ele ainda assim se sente revoltado ao ver o arrependimento da população de Nínive, pois para ele, uma vez pecadores, mereciam castigo, e não misericórdia. Quarto, por um lado ele é muito autoritário, e por outro, é muito ligado às “regras do jogo”, pois a cada momento em que as coisas não funcionam como ele acha certo, diz que prefere morrer a suportar a humilhação de não ter a sua vontade cumprida. Jonas é um menino grande, dirá qualquer mulher que se preze.
Pois já em seu próprio nome – Yonáh – esse profeta nos revela toda a contradição nele existente. O termo yonáh possui dois significados opostos. Primeiro, o mais conhecido: pomba. Sim: yonáh significa pomba, a pomba da paz, o casal de pombinhos, etc. Na Bíblia Hebraica a pomba simboliza isso tudo. Simboliza a inocência, a pureza, a beleza. Mas há um outro significado, e quis a Providência que eu nele tropeçasse de modo inteiramente involuntário. O primeiro versículo do trecho do profeta Sofonias, que citei logo no início, traz a expressão “ir yonáh”, que as bíblias em português traduzem por “cidade opressora”. De fato, consultei os comentários judaicos da Bíblia, e lá está esse significado estranho, diferente do que eu esperava. A palavra yonáh, como adjetivo (feminino) significa também “opressora”. Portanto, yonáh significa ao mesmo tempo “pomba”, o símbolo da paz e da harmonia, e “opressor”, termo que indica guerra, crueldade, destruição do outro.
E no entanto, esse é o profeta Jonas! Esse é o homem que Deus usa como instrumento para implementar sua vontade! E esse é o texto que os judeus lêem na sinagoga no Yom Kipur! Sim – justamente no Yom Kipur!
Pois é isso mesmo: O profeta Jonas se revela, com sua condição um tanto torta, um tanto fora de esquadro, um tanto marginal no quadro geral dos profetas, como a cristalização numa única história de todo o drama – ao mesmo tempo do homem e do profeta.
Jonas representa o homem comum no que ele tem de comum: egoísta, auto-centrado, infantil, estreito. “Cabeça pequena”. Mas representa também o profeta – no que este tem de mais sublime: Ele dialoga com a Divindade, ele leva a palavra divina aos homens, ele é o eixo em torno do qual vários fenômenos extraordinários acontecem, ele é interlocutor direto de Deus.
Perguntamos: Como é que pode? E a resposta não tarda: Qual o problema? Afinal, de que outro modo a Bíblia retrata Moisés, Abrahão, David, Salomão e todos os outros? O que têm estes todos de tão extraordinário a ponto de Jonas precisar se envergonhar de ser quem é?
Interessante, não? Os santos homens da Bíblia Hebraica não são nada santos. Podem até ser grandes homens, mas de santos têm muito pouco. Então Jonas está em boa companhia, pois além de todas as suas características como homem, ele tem mais uma: É poeta! E o poeta mora no lado direito do cérebro, no lado yin, no lado do Ser, no lado feminino! No lado da Compaixão.
Por isso ele é escolhido, por isso ele representa Deus junto aos homens, por isso Deus o escolhe para cumprir um mandato: Porque, apesar de tudo, e apesar de si mesmo, Jonas é dotado de compaixão. Ele não pula para salvar os marinheiros, mas quando percebe que não há como fugir, comporta-se com toda a dignidade de quem aceita sacrificar-se para salvar os outros.
Claro, sua identidade masculina prevalece. Mas não é absoluta. Na sua oração Jonas se diz fraco, derrotado, impotente. Um “homem que é homem” jamais o confessará. Jonas é, portanto, o homem melhorado, o homem masculino com o necessário elemento feminino, acrescentando à lógica e ao rigor – apanágios tanto da Lei quanto da masculinidade – o toque feminino da sensibilidade e da percepção do outro. Por isso Jonas é paradigmático: por ser comum demais. Não é um santo, não é um herói, não é um maravilhoso sábio. Amós também diz o mesmo sobre si, “Não sou profeta, nem filho de profeta”, e se apresenta como simples pastor, criador de gado. Por isso foi Jonas escolhido pelos sábios para proporcionar o necessário toque artístico no ritual severo do Yom Kipur: Porque ele é excessivamente como todos nós, e mesmo assim Deus o trata como a um igual. Jonas representa muito bem a condição do profeta justamente porque, acima de tudo, ele representa a condição humana – capaz de descer e subir na escada da santidade. E é isso que o Judaísmo espera de nós, e por isso recolheu os discursos dos profetas – para ensiná-lo a nós: Não precisamos SER santos – mas precisamos tentar. Essa, aliás, é a grande lição do próprio Judaísmo como um todo: O homem é esse ser comum, até tacanho, bobo, medíocre – mas capaz de elevar-se, de tornar-se melhor que ele mesmo. Não há no Judaísmo um parâmetro absoluto de como o homem deve ser: há, ao contrário, a clara demonstração de que somos uma grande mistura de gente de todo os tipos, e cada um de nós é uma grande mistura de todas as características possíveis, as positivas e as negativas. A percepção do homem no Tanách tem como marca registrada essa não idealização do homem – mesmo dos considerados "grandes homens”. O único homem “perfeito” na Bíblia Hebraica é Jó – e justamente por isso ele é posto à prova – para ver até onde vai essa perfeição... (A maravilhosa Marion Millner tem um estudo sobre Jó que é uma obra de arte em si. Baseada apenas na teoria de Freud, ele mostra que Jó era um tremendo falso self, que cumpria todas as obrigações por submissão, não por deliberação consciente. E por isso foi castigado, até entregar os pontos: ao confessar-se ‘pequeno’, ‘pouco’, ‘incompetente’, ele é reabilitado e volta a viver.) Jonas, então, representa maravilhosamente ao mesmo tempo os grandes homens da Bíblia e a todos nós, pobres e comuns mortais.
Por outro lado, porém, ele é o mais universal de todos os profetas, pois é sobre Nínive – capital da Assíria, e não sobre Israel ou Judáh – a fim de salvá-la do castigo divino, que ele vai exercer o seu poder de profecia. Há até uma interpretação segundo a qual Nínive deveria ser salva porque a Assíria estava predestinada a cumprir um outro mandato de Deus – o de destruir o Reino Setentrional, de Israel, que havia se separado da outra parte, Judáh, depois da morte de Salomão. Segundo essa interpretação, Jonas se recusou a cumprir a ordem de Deus exatamente por intuir que esse era o Seu plano, e neste caso o seu universalismo seria apenas aparente: O que Jonas realmente estava fazendo era advogando em causa própria. Mas pelo menos fica aqui uma amostra de quão complexa e multi-facetada a interpretação da Bíblia pode ser.