JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

“NUNCA VOU ESQUECER DE VOCÊS” (extrato do Capítulo 1 do livro Judeus da Leopoldina, de Heliete Vaitsman, edição do Museu Judaico RJ)

 

Os pais da primeira geração de imigrantes judeus nascidos nos subúrbios da Leopoldina, Rio de Janeiro, a partir do final da década de 1920, eram, em grande parte, oriundos dos shtetls do Leste europeu, aldeias de população majoritariamente judaica espalhadas pela Polônia, Ucrânia, Rússia, Romênia, Hungria, Lituânia e que seriam dizimadas na Segunda Guerra.

 

As alterações dos mapas europeus entre o final do século XIX e meados do século XX não alteraram a identidade judaica nem apagaram a marcante cultura ashkenazi dos shtetls, em que o idishkeit chegou ao apogeu. Eram um mundo e um estilo de vida muito diferentes daqueles dos judeus modernizados e cosmopolitas da Alemanha, França, Holanda ou Áustria e que só emigrariam no final da década de 1930, fugindo à ascensão do nazismo. Os moradores dos shtetls tinham poucas posses e escassa instrução secular. Ou eram religiosos tradicionais, à espera do milagre messiânico para salvá-los, ou procuravam escapar, para o exterior ou para cidades como Varsóvia, onde se buscava a salvação mediante trabalho duro ou militância revolucionária.  De qualquer modo, a identidade deles estava vinculada à língua idish e não lhes passava pela cabeça se fazer passar por goim (não judeus) ou ter com eles um convívio mais estreito.  

 

Em todos os casos, uma realidade duríssima, que depois muita gente achou por bem edulcorar.  “A vida naqueles enclaves medievais era terrível: a fome era endêmica, a situação sanitária e as moradias eram repugnantes. Nas ruas lamacentas, esgoto a céu aberto e lixo por todos os cantos ofendiam as narinas” (1).

 

Além das agruras materiais, os judeus enfrentavam a violência dos cossacos, as mais variadas provocações instigadas por sacerdotes fanáticos e os decretos governamentais restritivos (que lhes vedavam acesso às universidades e aos cargos públicos, e estendiam o período do seu serviço militar).

 

Era comum que os homens, ao emigrar, deixassem pais, noivas, mulheres e filhos do outro lado do oceano; do lado de cá, trabalhavam anos a fio para economizar o valor das passagens e mandar buscá-los. A viagem de navio “era longa, provavelmente depois da última classe”, conjetura Boris Mauricio Koifman, nascido no Rio em 1925, ao recordar o pai, Jacob Koifman, imigrante de Iedlitz, Bessarábia romena, hoje território russo.

 

Meu pai veio por volta de 1922, com dois irmãos, um dos quais não agüentou o sol muito forte daqui e voltou, vindo a falecer na Segunda Guerra. Lá eles trabalhavam na lavoura e queriam mudar de vida, fugir das guerras. Meu pai era noivo de mamãe e depois a trouxe, casaram-se no Brasil. Eram bem pobres. Todos os judeus que chegaram depois da Primeira Guerra vieram com uma mão na frente e outra atrás. Meu avô paterno, que também deveria viajar para cá, foi para os Estados Unidos e nunca mais deu notícias. 

 

As despedidas da velha terra podiam ser dramáticas. Sete décadas mais tarde, Regina Rosenwald -- nascida em Bogoria, perto de Varsóvia, em 1928 -- ainda emociona-se ao contar:

 

Para sair de Bogoria, pegamos a carroça de boi, meu avô na frente, eu, minha mãe e meu tio atrás. Aí a avó segurou a roda, enquanto agarrava as minhas pernas, dizendo: “Deixa eu ver você mais uma vez. Vai ser a última vez. Você está aí fugindo como um passarinho, voando como um passarinho”. Isso nunca saiu da minha cabeça. Eu era muito agarrada aos meus avós, até os três anos morei na casa deles com minha mãe, depois que papai veio para o Brasil, ainda antes do meu nascimento. Lembro de ter dito a ela que, assim que aprendesse a escrever idish, ia escrever uma carta. ‘Nunca vou esquecer de vocês’, prometi.

 

A promessa foi cumprida. Quando Regina começou a estudar idish, na escola Mendele Mocher Sforim, em Olaria, pediu que o lerer [professor] Berzon a ajudasse a escrever as cartas. Ele a ensinava, dizendo: “Escreve o que você quiser que depois eu a ajudo a desenvolver e você envia para seus avós”. E assim foi -- a menina escrevendo, lerer Berzon ajudando -- até o início da Segunda Guerra, durante a qual os avós foram arrancados de casa e mortos a tiros, no meio da rua, por anti-semitas poloneses. 

 

Pouco depois de desembarcar no Rio em 1937, aos dez anos, Soil Zuchen exclamou para o pai, em idish: “Is a gan eidem”: o Brasil era um jardim do Éden, aonde os vizinhos puxavam conversa com os recém-chegados e as crianças judias andavam na rua sem ser alvo de zombarias. Tudo muito diferente de sua cidadezinha natal, Hotin, cortada pelo rio Dniester, dominada ora por russos ora por romenos (hoje território da República da Moldávia), mas eternamente inóspita para os judeus, que viviam segregados e falavam, para uso externo, o “goiesh”, mistura de russo e romeno.

 

A vida lá era sempre uma vida de tortura. Quando os russos dominavam, acusavam os judeus de colaborarem com os romenos; quando os romenos dominavam, nos acusavam de colaboração com os russos. Não tínhamos amigos goim. Dávamos graças a Deus quando podíamos sair, não pensávamos em trazer nada. Meu pai veio primeiro e enviou para minha mãe e para mim cartas de chamada, em que o despachante brasileiro trocou meu nome, Shaie, por Soil.  Ele pretendia trazer outros parentes, mas não foi possível. Só sobrou, depois do Holocausto, uma tia do lado materno, que foi para Israel.

 

E por que o Brasil, o Rio, a Leopoldina? Afinal, a maioria dos imigrantes tinha como primeiro objetivo “fazer a América” - a do Norte, bem entendido. Mas quando os Estados Unidos e o Canadá começaram a impor cotas restritas, a partir da década de 1920, o jeito era desviar o rumo para a América do Sul, buscando na Argentina ou no Brasil amigos, parentes, contra-parentes e conterrâneos que os apoiassem. Não importava o bairro, a cidade. Importava a possibilidade de instalar-se em segurança. Os primeiros abriam caminho, os outros seguiam.

 

No novo mundo, os imigrantes buscaram recriar algumas das estruturas sociais do antigo. A Praça XI, principal bairro dos judeus no Rio, parecia, segundo o memorialista Samuel Malamud, um enorme gueto sem muros, tal o número de lojas, instituições e serviços judaicos. A Leopoldina, de modo distinto, era uma comunidade pequena, e as instituições comunitárias -- escola, sinagoga, biblioteca e grêmio juvenil -- congregaram-se sob uma única instituição “guarda-chuva”, o Centro Israelita do Subúrbio da Leopoldina, criado em 1929, que primeiro funcionou em espaços alugados, e depois teve sede própria na Rua Filomena Nunes, 1160, Olaria.

 

 

 

Com oito dólares no bolso

 

Quando o pai e o tio de Max Paskin decidiram emigrar, depois da Primeira Guerra, não havia mais cota para os Estados Unidos. Vieram parar no Rio, onde, a princípio, pensavam apenas aguardar a chamada para seguir viagem. Conta Paskin, nascido no Rio em 1934:

 

Eles começaram a trabalhar e juntaram as economias para pagar as passagens dos outros. Meu pai tinha uma máquina de costura, que o ajudava no trabalho, e teve que vendê-la para completar o dinheiro das passagens, primeiro da mãe, depois das irmãs. Meu avô, Israel Pascovsky, ficou esperando sozinho na Alemanha até mais tarde. Ele era de Mogilev-Podolsky, na Ucrânia, quase fronteira da Romênia. Aliás, se dissessem que isso era Bessarábia, meu pai ficava uma fera, não admitia, porque aquela região está fora da Bessarábia.

 

Minha mãe nasceu em São Petersburgo. Tinha 12 anos quando veio a Revolução e meu avô, suboficial do Exército russo, fugiu com a família para a Letônia. Instalou-se em Riga e lá criou uma serraria. Deu uma boa educação para a família. Uma tia minha, que já vivia com o marido no Brasil, viajou para lá e trouxe minha mãe e mais um sobrinho. Só sobraram eles da família... Essa tia estava precisando de alguém para tomar conta das crianças e trouxe a irmã mais nova. Mas minha mãe e meu pai logo se conheceram e se casaram. Ela era muito bonita. Meu pai também era bonitão e forte, nadava da Praia de Ramos até a Ilha do Governador e voltava! Como os dois falavam russo, acho que isso facilitou e casaram-se entre 1927 e 1928. Minha irmã mais velha nasceu em 1929.

 

Jayme Vainboim saiu da Bessarábia romena, quase fronteira russa, graças aos 100 dólares enviados por uma tia que vivia nos Estados Unidos. Ao chegar à Holanda, porém, não pôde embarcar para lá por falta de cota. Como no Rio já vivia uma prima da mãe, casada e com três filhos, redirecionou o rumo e aqui aportou com cerca de 17 anos, no início da década de 1920. Os primos, com loja na Rua da Alfândega, deram-lhe crédito, apresentaram-no a outros fornecedores judeus e ele logo começou a vender roupas de cama e mesa de porta em porta.

 

Um garoto, mas com todas as responsabilidades de adulto, como registra o filho Israel, que nasceu no Rio em 1944, com Jayme já comerciante estabelecido e ativista comunitário na área da Leopoldina:

 

Meu pai veio sem praticamente nada porque a família era muito pobre. Chegou no Brasil com oito dólares. Minha avó era viúva, tinha perdido o marido com 20 e poucos anos e ficado com três filhos. Aos 7 anos, meu pai assumiu o papel de chefe da família. Era muito responsável e tinha que ajudar a mãe numa pequena venda na frente da casa, que tinha piso de terra batida.

 

Ele aprendeu a ler num cheder na Bessarábia, onde o avô materno era professor. Eram muito religiosos. Tinha escola primária, não tinha nenhuma instrução maior, e sua grande frustração era não saber fazer uma divisão de algarismos, embora soubesse a ordem de grandeza. Um autodidata, acabou aprendendo a falar português muito bem, com pouco sotaque. Depois do trabalho, ele lia o jornal, e em seguida copiava um trecho no próprio jornal para ter certeza de aprender como se escreviam as palavras. Tinha se alfabetizado em idish. Devia saber um pouquinho de hebraico porque sabia rezar, e devia falar um pouco de russo. Apesar de romeno, não falava uma palavra de uma língua latina, não conhecia nada do nosso alfabeto. Foi um desafio muito grande.

 

O irmão era um bon-vivant. Enquanto o meu pai juntou todo o dinheiro para chegar no Brasil, meu tio comprou todo o dinheiro em chocolate. Quando pegou o navio, vendeu o chocolate com um lucro enorme, multiplicou o dinheiro depressa. Chegou ao Brasil num sábado de carnaval. Desceu na Praça Mauá e viu aquele carnaval na rua. Pensou então que o Brasil era aquilo, carnaval todo dia...

 

A origem da mãe era diferente. De família de posses da cidade ucraniana de Kamenetz Podolski, ela terminara o colegial quando ocorreu a Revolução russa:

 

Meus avós eram considerados burgueses, meu avô exportava carvão e sal para a Áustria e a Tchecoslováquia. Perderam tudo e iam sair da Rússia, mas mamãe queria ficar para estudar Medicina. Ela tinha um pouco de idealismo com as idéias da Revolução russa. Mas quando se desiludiu com o partido e foram por água abaixo as promessas de que poderia fazer a faculdade de Medicina, disse ao pai que estava pronta para ir embora.

 

Como meu avô vendia para o exterior, tinha um pouco de moeda estrangeira. Comprando guardas da fronteira, conseguiu ir com ela para Czernowicz, cidade já desenvolvida do antigo Império Austro-Húngaro [após a Primeira Guerra, romena], onde se falava alemão, havia uma vida cultural desenvolvida e uma comunidade judaica razoável.

 

Meu avô, que na juventude tinha estudado contabilidade por correspondência, procurou um cliente, disse que estava recomeçando a vida e logo se empregou. Apesar de imigrante sem nenhum recurso, tinha uma profissão, então não foi uma vida muito complicada. Minha mãe arrumou emprego numa fábrica de meias. Ela devia ter uns 20 anos. Dois anos depois, a mãe dela e os irmãos também chegaram da Rússia e ficaram tentando vender algumas coisas, porque o dinheiro não era suficiente para todo mundo.  

 

Minha mãe tinha uma prima da mesma idade no Rio de Janeiro. Eram muito amigas. Meus avós tinham ajudado muito os pais dela quando saíram da Rússia. O pai, Pinchas Pesach, se tornou um comerciante muito importante na Rua da Alfândega. Quando minha mãe veio ao Brasil visitar o tio e a prima, dez anos depois, veio um pouco atrás de um namorado em que estava interessada e que tinha vindo para o Brasil. Mas a idéia era ficar pouco tempo e ir embora. Tio Pinchas estava muito bem. Morava em Copacabana. Nos anos 1920, o investimento imobiliário dos sonhos era na Tijuca, ter loja na Rua da Alfândega e morar em Copacabana era inusitado. Mas tio Pinchas fez um prédio de 15 apartamentos em Copacabana e alugou o prédio todo.

 

Mamãe conheceu meu pai no dia em que chegou ao Brasil. No caminho para Copacabana, levam-na para conhecer a loja e ele estava lá, porque era mascate. Tio Pinchas era um dos seus fornecedores e queria que a filha, tia Cyla, se casasse com meu pai porque o considerava um grande trabalhador, um sujeito sério.

 

Minha mãe acabou ficando no Brasil, sempre na casa do tio Pinchas. Tinha um senso de independência econômica muito grande e montou, dentro da loja dele, um balcãozinho de roupa íntima de mulher: camisola, penhoar, já que ele vendia cama e mesa. E quando não estava na loja, os empregados vendiam as coisas. Era um negócio dela dentro do negócio dele. Pequeno, mas dava para ela não ficar dependente. E ela ia diariamente à loja depois do almoço. Tia Cyla não ia porque era a filha do tio Pinchas, uma menina rica. A mulher ia levar o almoço do marido, minha mãe ia junto e ficava à tarde na loja.

 

Passados uns anos, num fim de semana a tia Cyla estava doente e não foi a uma daquelas festas no Clube Azul e Branco [clube feminino judaico que funcionou até o final da década de 1930, na Rua Conselheiro Josino].  Meu pai encontrou minha mãe lá, viu que ela estava sozinha e começou o papo. Ele já estava bem de vida, com uma pressão enorme da mãe para se casar, ele também querendo. Minha mãe era uma mulher muito bonita, dois anos mais nova que ele. E então começou o namoro, que obviamente criou um grande problema para minha mãe. Como o tio Pinchas tinha o sonho de que a filha se casasse com meu pai, a situação ficou difícil quando ele viu que a menina pobre era a preferida.

 

Conta Israel Vainboim que a avó disse: ‘Escuta, Jayme, você tem 29 anos. A Lia tem 27.  O que você quer mais? É uma moça bonita, culta. Você está esperando o que? Você está com a casa pronta. Casa!’. Os dois se casaram em 14 dias, com o tio Pinchas como padrinho. 

 

Os dois tios maternos de Israel tinham emigrado para a Colômbia. Os avós continuaram na Europa até 1939, saindo no último navio que veio para o Brasil antes da Segunda Guerra, o General Osório (2).

 

Como meu pai já tinha a firma, e renda de aluguel, pôde ser o patrocinador da imigração dos sogros. Os irmãos da mamãe não tinham patrocinadores e vieram da Colômbia como turistas; mamãe teve que pagar passagem de navio de primeira classe para eles, para parecerem turistas. O pai e a mãe dela já eram mais velhos, porém queriam se manter independentes. Meu avô teve uma loja em Pilares e trabalhou quase até o fim.

 

Pinchas e Fanny Apelbaum chegaram ao Rio com o filho mais velho, Maurício, nascido em 1934, depois de terem sobrevivido a um naufrágio. Segundo a história familiar, o casal, progressista, tinha viajado da Polônia para a Espanha, dois entre milhares de voluntários dispostos a apoiar as forças republicanas (que seriam derrotadas pelo franquismo na guerra civil de 1936-39). No litoral do Marrocos, o navio afundou e Fanny, exímia nadadora, agarrou o marido e o bebê nos braços e com eles chegou até a praia. Ela estava grávida de José, o Joca, que acabou vendo a luz do dia em Ramos, em 1936, para alegria dos muitos parentes que ali já residiam.

 

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NOTAS

 

1          Rosten, Leo, The Joys of Yinglish  (Signet/Penguin Books USA Inc., 1992)

 

2          Paradoxalmente, e apesar das ordens secretas restringindo seu ingresso, mais judeus (4.601) entraram no Brasil em 1939 do que em qualquer ano desde 1929, segundo tabela publicada pelo historiador Jeffrey Lesser, estudioso da imigração judaica ao país. A imigração cresceu entre 1932 e 1939, afirma Lesser, porque as restrições obrigaram os judeus “a encontrar meios mais eficientes de atuar dentro do sistema” e “as agências judaicas de ajuda redobraram seus esforços para ensinar os residentes a “chamar” seus parentes legalmente” (Lesser, Jeffrey, O Brasil e a Questão Judaica, págs. 104-105) .

 

 

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