O PROFETA: FILÓSOFO, POLÍTICO, POETA
Uma introdução
Davy Bogomoletz
ARI, 27/8/98
O profeta é conhecido, em primeiro lugar, como aquele que vê o futuro. A palavra que o designa em hebraico, naví, pode ser compreendida como designando “aquele que traz”, ou seja, aquele que traz de longe alguma coisa que não está no aqui e agora. Enquanto místico, ou seja, aquele que se relaciona com “a outra realidade”, o profeta tinha de fato a visão do futuro, pois Aryêh Kaplan já mostrou como a inspiração profética se produzia graças a sofisticados exercícios de meditação, que levavam os que a praticavam a sair do nível comum de percepção para alcançar o que eu aqui chamaria, para efeitos meramente descritivos, de “ultra-percepção”. (Nos livros “Meditação Judaica” e “Meditação e a Bíblia”, Kaplan explica de que modo os profetas utilizavam a meditação.) E pelo menos em um lugar, (mas talvez só num único), o profeta é designado na Bíblia como “vidente”. Por tudo o que podemos ver, porém, se lermos os seus textos, não era essa a sua função mais importante.
Eu havia prometido a vocês falar hoje do profeta como político, filósofo, poeta, conjunto de atividades, ou atribuições, muito mais importantes na história da profecia bíblica. Eu deveria, então, falar um pouco de cada uma dessas dimensões. Mas não é o que vou fazer. Eu me dei conta de que para conhecer o profeta enquanto poeta basta abrir a Bíblia. E vou dar um exemplo. Abri o livro do profeta Sofonias - Tzefanyâh - um profeta considerado “menor”, porque o seu texto é muito curto. É um dos “doze”, os profetas de textos muito pequenos, contidos todos num único livro. Ele é considerado um profeta admoestador, de duros discursos contra os opressores e os exploradores. Nele encontramos a idéia de que os homens de bem de Israel serão salvos, enquanto os maus perecerão, e o mesmo ocorrerá às outras nações: as que se salvarem reconhecerão a Lei de D’s. No capítulo 3 temos alguns versículos que funcionarão como exemplo tanto de linguagem poética quando de discurso político. Infelizmente, o ritmo muito marcado dos versos em hebraico não pode ser fielmente transmitido na tradução, o que diminui em muito o seu impacto. Aqui tentei uma tradução um tanto livre, justamente na intenção de preservar o ritmo do texto original.
Ó rebelde e suja, cidade opressora.
Não ouviu a voz,
Nada aprendeu,
Não confia em D’s
Nem dele se aproxima.
Ministros há, mas são leões que urram.
Juízes tem, mas como os lobos são, da noite:
Nada deixam p’ra amanhã.
Seus profetas - doidivanas,
São homens da traição.
Os sacerdotes profanaram o Santo,
Violam toda lei.
Em seu seio está D’s, o Justo: ¬Jamais fará o mal,
Pois todo dia é dado o seu juízo à luz.
Não falta, Ele,
E não conhece crime ou culpa.
Obliterei países, esquinas desolei,
Eu lhes destruí as ruas, passantes não há mais.
Cidades desabaram, homens já não há.
Pensei: Talvez me temas, tu,
Aprenderás moral,
Então não ruirá teu Lar,
Não sobrevirão meus votos.
Mas não, pois esmeraram-se
Em degradar seus feitos.
(Sofonias, 3,1-7)
Esta é uma pequena amostra. O profeta derrama lava incandescente de sua boca. A retórica, essa arte grega por excelência, encontra um bom rival entre os profetas. E aqui, neste pequeno trecho, o espírito da profecia está todo presente: Admoestação, reprovação da crueldade e da corrupção, advertência pelo exemplo dos povos castigados, e a esperança, a eterna esperança de D’s, de que o povo se emende.
A política aparece aqui como sinônimo de justiça: o profeta é advogado dos explorados, campeão dos injustiçados, adversário violento dos que maltratam o povo.
Quando eu era criança, vivi em Israel. Naquela época, o sistema educacional israelense era inteiramente politizado: Cada partido tinha as suas escolas, e os pais mandavam os filhos para as escolas que mais tinham a ver com a sua ideologia, ou então para a escola que ficava mais perto. Eu, por motivos de vizinhança, não de ideologia, fui parar numa escola do então Mapai, o partido trabalhista de Israel, o mesmo de Ben Gurion. Apesar de, no espectro político geral o Mapai ter sido um partido moderado, ainda assim sua ideologia socialista - portanto materialista dialética - era muitíssimo pregnante e vívida. Na escola estudávamos Tanách como uma das matérias normais do currículo. E eu então aprendi Tanách (a Bíblia Hebraica, matéria obrigatória nas escolas de Israel) numa escola socialista. Resultado: Nunca me esqueci de que o D’s dos judeus é socialista: Abomina os ricos que exploram, e defende com unhas e dentes os pobres e os humilhados.
O D’s dos judeus é o D’s da Justiça, não do Direito, nem da Caridade, ou do Amor. E o termo justiça, no pensamento judaico, não se parece nem um pouco com a idéia de Direito no sentido que os romanos lhe deram. E também não pode ser assimilado à idéia de rigor, de retidão - fenômeno designado por Din - e daí “Midát haDin”, a dimensão do Rigor. A Justiça, para os judeus, significa não simplesmente a instância que instaura a lei entre os iguais, mas a instância que protege os desvalidos, os menos favorecidos.
Nietzsche tinha razão: Os judeus inventaram o direito dos mais fracos, por oposição à lei do mais forte. Pode-se dizer, então, que os judeus inventaram a culpa, o superego. E o Cristianismo levou essa idéia adiante. Mas Nietzsche atribuiu a decadência da sociedade européia à degeneração provocada pela tendência a proteger o mesquinho, o medíocre, em vez de dar liberdade ao criador, ao forte.
Pois não foi essa a intenção do pensamento hebraico, do qual os profetas são representantes de primeira grandeza. A intenção era impedir que aqueles que têm os meios façam automaticamente valer os seus fins. Pois os interesses de um não interessam necessariamente ao outro, e a sociedade deve velar justamente por aqueles cujos meios são exíguos. A Lei romana entronizou o Direito como forma de proteger os interesses daquele que têm mais. A Lei judaica protegia os interesses dos que tinham pouco - ou ao menos, como dizem os profetas - devia fazê-lo, se seus juízes não fossem como os lobos da noite, devorando tudo que lhes caía nas mãos.
Alguns dias atrás, ouvindo o Rabino Bonder falar na sinagoga da CJB sobre a questão da lei judaica, ocorreu-me perceber que todo o pensamento judaico só pode ser compreendido pela idéia da lógica paradoxal. Por lógica paradoxal entendo aquele tipo de funcionamento mental em que os dois lados de um conflito convivem, em vez de eliminarem um ao outro. Por isso não cabe falar, aqui, de dialética, pois a lógica dialética admite os contrários, mas admite também a superação da oposição. No paradoxo não há superação, não há supremacia. É precisamente a lógica que preside a Filosofia Oriental, do yin e do yang: Ambos devem existir, sempre, embora se oponham e vivam em conflito. O que percebi, graças a essa idéia, é que é possível, graças a essa idéia, compreender claramente o que distanciou o pensamento judaico tanto do pensamento romano quanto do pensamento cristão, seus contemporâneos. Pois no pensamento romano, digamos assim, predominava “Midát haDín”, a “Dimensão do Rigor” - a lógica formal, o pensamento correto, a razão. E no pensamento cristão passou a predominar a “Midát haRahamírn”, a “Dimensão da Compaixão”, com sua bondade, sua tolerância, seu pensamento mais emocional que racional. Claro, para nós hoje é fácil perceber que o pensamento cristão deixou-se permear em grande medida pela forma de pensar romana. O que interessa, porém, é a idéia de que o pensamento judaico original não foi inteiramente capturado pela lógica formal criada pelos gregos e transformada em Razão Fria pelos romanos. E também não se deixou contagiar pela excessiva presença da idéia da compaixão, como o pensamento cristão. Um resultado lateral desta reflexão é que o Cristianismo, surgido no seio do Judaísmo mas crescendo e lançando raízes em Roma, não em Jerusalém, teve na verdade como seu grande adversário o espírito de Roma, não de Israel, mas isto precisou ser inteiramente camuflado logo depois, quando Roma o aceitou como religião do Estado.
Conseqüência: O excesso de um lado e de outro são prejudiciais, diz o Judaísmo. Mas adverte: Como a tendência dos homens é cair para o lado do Rigor, pois isto ao mesmo tempo simplifica o aparente caos da existência e lhes dá mais poder, é no lado da Compaixão que se deve insistir mais, para que os cabeças duras e os corações de pedra aprendam a enxergar a dor do semelhante.
Diversos profetas - Jeremías é o exemplo máximo, mas há outros - falaram de política no sentido internacional da palavra. Isaías é outro exemplo. O discurso político no sentido “macro” dos profetas fala principalmente das alianças que os reis de Judáh e Israel procuravam fazer com os reinos vizinhos, na tentativa de destruírem um ao outro ou defender-se um do outro. Este é um assunto fascinante em si mesmo, mas não vou abordá-lo aqui, a não ser para dizer que, do ponto de vista desses profetas, as alianças com países vizinhos podiam implicar muitas vezes em desfazer a aliança com o D’s de Israel, e então voltamos ao meu ponto de partida. Desejei mostrar apenas como, para o profeta bíblico, “política” era sinônimo de “justiça”, e “justiça” era sinônimo da “compaixão que relativiza o rigor”. Ou seja: Os profetas buscavam instaurar uma sociedade onde a Lei do Mais Forte fosse inteiramente abolida. Sabemos que não foi isso que aconteceu, pelo menos até hoje. Mas uma coisa é certa: Com tudo o que tenho contra os “haredím” (os ultra-religiosos), por seu nacionalismo psicótico e seu auto-centrismo cego e desavergonhado, devo reconhecer que, entre eles, a criminalidade é baixíssima, e a proteção aos direitos dos mais fracos é um hábito, não uma imposição. Certa vez um sábio do Talmud, o famoso Rabi Meir, foi criticado por ser amigo de Reish Lakish, um grande pecador, um bandido. Disse ele: “Meir achou uma romã, comeu sua polpa e jogou a casca fora”. Ou seja: Não é preciso imitar tudo que o outro faz, basta aprender com ele o que for bom e útil. Talvez devamos pensar um pouco nisso.
JONAS - O PROFETA PARADIGMÁTICO
Curiosa, a história de Jonas. Tudo acontece a ele - desde ser o eleito de D’s, até quase morrer num naufrágio. Desde salvar uma grande cidade do desastre, até desfalecer de canícula e pedir pata morrer. Por três vezes Jonas fala em morrer, logo ele, que salva da morte tanto os pobres marinheiros mediterrâneos quanto todos os seres vivos de Nínive. A telegráfica epopéia de Jonas, tão breve quanto contundente, é uma bela amostra, completa em si mesma, do que significa, na linguagem bíblica, o verbo “profetizar”.
Pois o que é o profeta? Um filósofo, como Sócrates, por exemplo, que pretende educar o povo e transformá-lo num povo melhor? Um político, como Cromwell, que lidera um movimento de reforma total do regime que governa o país? Um poeta, como Balzac, que, armado apenas de sua pena, sacode a consciência de uma nação e a faz tomar uma decisão diferente da que tinha tomado?
Será o profeta tudo isso ao mesmo tempo? E o que dizer dos profetas individualmente? Eram todos iguais? Havia diferenças marcantes entre eles?
Para falar a verdade, não pude ler integralmente todos os textos dos dezessete profetas bíblicos (incluindo Daniel), com seus livros mais ou menos volumosos. Tenho uma idéia razoavelmente abrangente, porém, segundo a qual podem haver distinções de personalidade, de estilo e de profundidade entre eles, mas não diferenças de intenção. E é sua intenção que me interessa.
Foi por isto que tomei o livro de Jonas como exemplo paradigmático. Pois as intenções da função do profeta surgem cristalinas nesse livro.
De propósito, disse “as intenções da função do profeta”, e não “as intenções do profeta”, justamente porque Jonas, o homem, contraria tais intenções, e não tem intenção alguma de exercer a sua função. Ele foge dela, ele a renega, ele não concorda com a idéia de, por exercer sua função, alcançar a intenção e realizá-la.
Jonas surge, então, como um “caso”, um exemplo cristalino e belo, que nos leva a entender de uma vez o que faziam - e por que o faziam - os profetas. O que pretendiam eles. O que buscavam com sua oratória candente, violenta, absolutamente esmagadora - tanto ao ameaçar quanto ao consolar.
Tudo o que li dos profetas até hoje - e não foi muito, embora não tenha sido pouco - leva-me a crer que não só é inteiramente desavisada a idéia de que eles simplesmente “previam o futuro”, como é superficial a idéia de que eles tentavam fazer o povo comportar-se melhor e seguir as leis de D’s. Não são poucas as vociferações contra os que cumprem a lei, mas se esquecem dos oprimidos. É verdade que, na Toráh de Moisés, muitas são as leis que impelem o homem a realizar a justiça social. Portanto, o judeu que cumpre a lei está automaticamente agindo em prol do bem estar social.
Mas uma coisa é agir nesse sentido, cumprindo simplesmente os mandamentos, e outra coisa é considerar a importância disto, indo além dos mandamentos. Pois não basta, para que uma sociedade seja considerada justa, o cumprimento dos preceitos e dos regulamentos. É perfeitamente possível ser um canalha e ainda assim cumprir direitinho todos os mandamentos. Maimônides chama esse homem de “canalha amparado na Toráh”.
A leitura dos profetas nos leva ao que há de mais nobre, mais específico, mais excelso da civilização judaica - este, ao menos, é o meu ponto de vista. É preciso entender, então, em que consiste essa literatura - e por que sua importância.
Gostaria de começar contando que, nos Estados Unidos, uma certa pesquisa de psicologia social registrou resultados um tanto inusitados. Apresentaram a um grupo de homens e mulheres uma situação hipotética: Um homem, precisando comprar determinado remédio, vai à farmácia e descobre que não tem o dinheiro necessário para a compra. Ele então rouba o remédio e vai para casa. Pergunta: O que você acha do comportamento do personagem? Resposta masculina predominante: Ele estava errado, o roubo é um crime, não devia ter feito isso. Resposta feminina predominante: Depende muito de qual era a situação. E se a mulher dele estava à morte? E se alguém precisava demais do remédio? E se ele voltasse e pagasse no dia seguinte?, e assim por diante.
Conclusão: Os homens tendem a ser esquemáticos, dividindo as possibilidades em duas - certo ou errado, bem e mal. As mulheres são mais complexas: Tentam examinar as várias configurações da situação, e julgá-las mais pelo contexto que por um critério externo a elas. Os homens tendem à abstração, as mulheres tendem à concretude. Os homens referem-se à idéia, as mulheres se relacionam com o indivíduo de carne e osso. Por fim, podemos dizer que os homens, mostrando maior tendência à racionalidade, impessoalizam a situação e se importam com o geral. As mulheres individualizam a situação, e se importam mais com o singular.
Pelo pouco dito até agora, alguém já pode ter adivinhado a que lugar pretendo chegar: Sim, à idéia de que o discurso profético é, na sua essência, na sua intenção, um discurso feminino.
Mas feminino não quer dizer “pertencente a mulheres”. A coisa é muito mais complicada.
Podemos começar com os famosos termos chineses yin e yang: o primeiro refere-se a uma força que, sem realmente agir, possibilita a ação. O yin seria, então, uma espécie de útero dentro do qual o feto pode crescer. O útero não faz o feto crescer, mas sem ele não há chances para o feto. Essa é a força do yin. Podemos chamá-la de feminina. Já a força do yang é tipicamente masculina: É a força que avança, que ultrapassa, que tira do caminho, que remove montanhas e aplaina vales. O yang fabrica pontes. O yin deita-se e se deixa atravessar.
Winnicott, o psicanalista inglês, conhecendo ou não essas idéias chinesas, fala em Ser, o princípio feminino, e Fazer, o princípio masculino. Ser é a função mental que é, que vive, que sente. Fazer, como o nome diz, é a função mental que funciona, que aciona, que constrói. Ser e Fazer perfazem a mente como um todo. Equivalem, respectivamente, aos hemisférios direito e esquerdo do cérebro. Quando há equilíbrio, temos uma pessoa que só pode ser chamada de “sábio” - ou “sábia”. Quando o equilíbrio não ocorre, temos alguém tipicamente normal. E quando o equilíbrio é acentuado demais, temos o fascínora, o puro Fazer, ou então o tolo e o louco, o puro Ser.
Na filosofia judaica, e também no nosso misticismo, temos essas duas vertentes do humano descritas em termos de “Midát haDín” e “Midát haRahamím”, a Dimensão do Rigor e a Dimensão da Compaixão. Jayme Barylko, em seu livro “Luz da Cabaláh”, apresenta um diagrama das funções mentais de cada hemisfério, extraído de Leyes de los medios, de Marshall McLuhan e as correlaciona com os dois lados da Árvore da Vida, a Árvore das Sefirót.
OS DOIS CÉREBROS
Hemisfério esquerdo
Fala/verbal
Lógico/ matemático
Linear, detalhista
Seqüencial
Controlado
Intelectual
Dominante
Mundano
Ativo
Analítico
Leitura, escrita, nomeação
Ordenamento seqüencial
Percepção de uma ordem de significados
Seqüências motoras complexas
Hemisfério direito
Espacial /Musical
Holístico
Artístico, simbólico
Simultâneo
Emocional
Intuitivo, criativo
Espiritual
Receptivo
Menor
Sintético, Gestáltico
Reconhecimento facial
Compreensão simultânea
Percepção de pautas abstratas
Reconhecimento de figuras complexas
OS DOIS LADOS DA ÁRVORE
RIGOR GENEROSIDADE
BINÁH (entendimento) HOCHMÁH (sabedoria)
GHEVURÁH (força, poder) HÉSSED (compaixão)
Ficou claro, então, por que chamo o discurso profético de “feminino”. Ele é feminino na medida em que sua preocupação principal não é com o Fazer, e sim com o Ser. Não é com o yang, mas com o yin. Pois é o Ser, o yin, que carrega em si a sensibilidade da percepção do outro, o diferente, como um “sujeito igual em direitos”. Para o yang, o outro ou é um objetivo, ou um objeto, ou um rival. É o yin, portanto, que nos permite desempenhar a arte do relacionamento.
Buber chama, inclusive, explicitamente a relação do tipo yin de Relação Eu - Tu, e a relação do tipo yang de Relação Eu - Isso. Ele não usa esses termos chineses, é óbvio, mas o significado é exatamente esse.
Assim, vemos o profeta às voltas com a eterna tarefa de enfiar um pouco de yin na cabeça yang do homem em sociedade - sabendo nós, obviamente, que a predominância do masculino nas situações sociais tenderia a tornar a sociedade injusta, manca, doente, e por fim auto-destrutiva. (Não foi por outra razão que Sodoma e Gomorra foram destruídas... A descrição da masculinidade pura de seus habitantes é muito eloqüente.)
Os nossos profetas, então, nos convocam a dar lugar, ao lado das nossas ambições, à sensibilidade e à compaixão.
A sociedade patriarcal (e praticamente todas são, com algumas honrosas exceções que, ao final de contas, apenas enfatizam a regra) tende a se esquecer de que um dos primeiros deveres da sociedade humana é abolir a lei do mais forte. Abrahão o propôs como projeto de civilização, (tenho inclusive um trabalho a esse respeito), e de lá para cá o que vemos ao longo de toda a Bíblia é a luta incessante de alguns malucos, convencidos de que são porta-vozes de D’s, para amolecer a cabeça dura dos homens, aqueles que mandam na sociedade, a fim de fazê-los perceberem que o sofrimento do outro é pelo menos tão importante quanto o prazer deles mesmos.
Amós o faz, e Isaías, e Jeremias, e todos os outros. E Jonas.
Mas Jonas o faz contra a vontade, e com isso torna visível a olho nu qual a função do profeta: Cumprir a vontade do D’s bíblico, o D’s paciente e compassivo (hanún verahúm, apesar de não ser nem um pouco “bonzinho”...) de levar os homens a se comportarem de modo igualmente paciente e compassivo, para assim merecerem a paciência e a compaixão de D’s.
A HISTORIA DE JONAS
Jonas é deveras paradigmático. Primeiro, é um exemplo perfeito do assim chamado Homem. Ele se comporta o tempo todo como um digno representante da “raça masculina”: Primeiro, evita a responsabilidade fugindo da Judéia, como um típico descendente de Caím, o irmão mais bruto de Abel. Segundo, no navio, ele não se preocupa muito em deixar a tripulação a salvo daquele que é o seu próprio problema: enquanto a tempestade ruge lá fora e os marinheiros entram em pânico, ele deita e adormece o sono não dos justos, mas dos que se consideram mais importantes que o resto do mundo. Terceiro, ao capitular e cumprir o mandato de D’s, ele ainda assim se sente revoltado ao ver o arrependimento da população de Nínive, pois para ele, uma vez pecadores, mereciam castigo, e não misericórdia. Quarto, por um lado ele é muito autoritário, e por outro, é muito ligado às “regras do jogo”, pois a cada momento em que as coisas não funcionam como ele acha certo diz que prefere morrer a suportar a humilhação de não ter a sua vontade cumprida. Jonas é um menino grande, dirá qualquer mulher que se preze.
Pois já em seu próprio nome - Yonáh - esse profeta nos revela toda a contradição nele existente. O termo yonáh possui dois significados opostos. Primeiro, o mais conhecido: pomba. Sim: yonáh significa pomba, a pomba da paz, o casal de pombinhos, etc. Na Bíblia Hebraica a pomba simboliza isso tudo. Simboliza a inocência, a pureza, a beleza. Mas há um outro significado, e quis a Providência que eu nele tropeçasse de modo inteiramente involuntário. O primeiro versículo do trecho do profeta Sofonias, que citei logo no início, traz a expressão “ir yonáh”, que as bíblias em português traduzem por “cidade opressora”. De fato, consultei os comentários judaicos da Bíblia, e lá está esse significado estranho, diferente do que eu esperava. A palavra yonáh, como adjetivo (feminino) significa também “opressora”. Portanto, yonáh significa ao mesmo tempo “pomba”, o símbolo da paz e da harmonia, e “opressor”, termo que indica guerra, crueldade, destruição do outro.
E no entanto, esse é o profeta! Esse é o homem que D’s usa como instrumento para implementar sua vontade! E esse é o texto que os judeus lêem na sinagoga no Yom Kipur! Sim - justamente no Yom Kipur!
Pois é isso mesmo: O profeta Jonas se revela, com sua condição um tanto torta, um tanto fora de esquadro, um tanto marginal no quadro geral dos profetas, como a cristalização numa única história de todo o drama - ao mesmo tempo do homem e do profeta.
Jonas representa o homem comum no que ele tem de comum: egoísta, auto-centrado, infantil, estreito. “Cabeça pequena”. Mas representa também o profeta - no que este tem de mais sublime: Ele dialoga com a Divindade, ele leva a palavra divina aos homens, ele é o eixo em torno do qual vários fenômenos extraordinários acontecem, ele é interlocutor direto de D’s.
Perguntamos: Como é que pode? E a resposta não tarda: Qual o problema? Afinal, de que outro modo a Bíblia retrata Moisés, Abrahão, David, Salomão e todos os outros? O que têm estes todos de tão extraordinário a ponto de Jonas precisar se envergonhar de ser quem é?
Interessante, não? Os santos homens da Bíblia Hebraica não são nada santos. Podem até ser grandes homens, mas de santos têm muito pouco. Então Jonas está em boa companhia, pois além de todas as suas características como homem, ele tem mais uma: É poeta! E o poeta mora no lado direito do cérebro, no lado yin, no lado do Ser, no lado feminino!
Por isso ele é escolhido, por isso ele representa D’s junto aos homens, por isso D’s o escolhe para cumprir um mandato: Porque, apesar de tudo, e apesar de si mesmo, Jonas é dotado de compaixão. Ele não pula para salvar os marinheiros, mas quando percebe que não há como fugir, comporta-se com toda a dignidade de quem aceita sacrificar-se para salvar os outros.
Claro, sua identidade masculina prevalece. Mas não é absoluta. Na sua oração Jonas se diz fraco, derrotado, impotente. Um “homem que é homem” jamais o confessará. Jonas é, portanto, o homem melhorado, o homem masculino com o necessário elemento feminino, acrescentando à lógica e ao rigor - apanágios da masculinidade - o toque feminino da sensibilidade e da percepção do outro. Por isso Jonas é paradigmático: por ser comum demais. Não é um santo, não é um herói, não é um maravilhoso sábio. Amós também diz o mesmo sobre si, “Não sou profeta, nem filho de profeta”, e se apresenta como simples pastor, criador de gado. Por isso foi Jonas escolhido pelos sábios para proporcionar o necessário toque artístico no ritual severo do Yom Kipur: Porque ele é excessivamente como todos nós, e mesmo assim D’s o trata como a um igual. Jonas representa muito bem a condição do profeta justamente porque, acima de tudo, ele representa a condição humana - capaz de descer e subir na escada da santidade. E é isso que o Judaísmo espera de nós, e por isso recolheu os discursos dos profetas - para ensiná-lo a nós: Não precisamos SER santos - mas precisamos tentar. Essa, aliás, é a grande lição do próprio Judaísmo como um todo: O homem é esse ser comum, até tacanho, bobo, medíocre - mas capaz de elevar-se, de tornar-se melhor que ele mesmo. Não há no Judaísmo um parâmetro absoluto de como o homem deve ser: há, ao contrário, a clara demonstração de que somos uma grande mistura de gente de todo os tipos, e cada um de nós - uma grande mistura de todas as características possíveis, as positivas e as negativas. A percepção do homem no Tanách tem como marca registrada essa não idealização do homem - mesmo dos considerados "grandes homens”. O único homem “perfeito” na Bíblia Hebraica é Jó - e justamente por isso ele é posto à prova - para ver até onde vai essa perfeição... Jonas, então, representa maravilhosamente ao mesmo tempo os grandes homens da Bíblia e a todos nós, pobres e comuns mortais.
Por outro lado, porém, ele é o mais universal de todos os profetas, pois é sobre Nínive - capital da Assíria, e não sobre Israel ou Judáh - que ele vai exercer o seu poder de profecia, a fim de salvá-la do castigo divino. Há até uma interpretação segundo a qual Nínive deveria ser salva porque a Assíria estava predestinada a cumprir um outro mandato de D’s - o de destruir o Reino Setentrional, de Israel, que havia se separado da outra parte, Yehudáh, depois da morte de Salomão. Segundo essa interpretação, Jonas se recusou a cumprir a ordem de D’s exatamente por intuir que esse era o Seu plano, e neste caso o seu universalismo seria apenas aparente: O que Jonas realmente estava fazendo era advogando em causa própria. Mas pelo menos fica aqui uma amostra de quão complexa e multi-facetada a interpretação da Bíblia pode ser.
Gostaria de reforçar um pouco mais o aspecto “feminino” do discurso dos profetas. Conforme todos sabem, nos textos proféticos de caráter social há uma insistente referência aos “órfãos e viúvas”. Os profetas falam dos “pobres” e dos “oprimidos” de forma geral, mas muitas vezes usam a fórmula “órfãos e viúvas” para caracterizar aqueles indivíduos que, numa sociedade, mais precisam de cuidados e da proteção do corpo coletivo. Os órfãos e as viúvas são aqueles que não têm quem brigue por eles, quem reivindique os seus direitos. Para os profetas, as noções de justiça social e de direitos humanos são praticamente sinônimas. Na nossa sociedade, "justiça social” refere-se a um segmento da população, é uma noção que eu chamaria aqui de "sociológica”, pois lida com grupos, com camadas, com grandes massas. Já a noção de “direitos humanos” é vista mais como se referindo a indivíduos, ou então a pequenos grupos específicos, identificados por serem diferentes da maioria. Para os profetas, conforme deduzo da leitura de seus textos, as duas expressões se equivalem, e isto é muito importante. Porque é como se, em vez de falar de uma “classe” oprimida, eles falassem de “indivíduos” oprimidos, e em vez de falar da necessidade de “proteger os carentes”, tornando estes, então, objetos da ação social, eles falassem dos “direitos dos necessitados”, vendo-os como sujeitos, sujeitos de um direito, e não como objetos, objetos da caridade.
Por isso, sempre que surge a necessidade de traduzir a palavra “tzedakáh”, esbarramos com a dificuldade semântica de trazer para o português essa conotação ativa que a palavra tem em hebraico, pois em hebraico ela tem um significado muito mais próximo de “justiça” ou “direito” que de “caridade” ou “generosidade”, e infinitamente mais enobrecedor daquele que a recebe que a noção de “esmola”. Mas é esse o termo usado em hebraico para indicar até mesmo o dinheirinho que se dá ao pedinte na rua.
“Órfãos e viúvas”, portanto, são pessoas. São gente de carne e osso. Não são uma “categoria social”. Vemos, então, como os profetas insistem em manter sempre na nossa mente a percepção do outro como um ser físico, concreto, em tudo igual a nós mesmos. É fácil perceber os “fracos e oprimidos” mais como uma expressão abstrata, impessoal, que como um substantivo concreto, imediato. Já “órfãos e viúvas” tem essa outra conotação de concretude, de presença física.
Por esta característica, o texto dos profetas mais urna vez revela sua “feminilidade”. Pois, como na pesquisa mencionada no início, é uma tendência feminina a de perceber o particular antes que o geral, de perceber a situação antes que o ponto específico, de perceber o aspecto relacional antes que uma imagem isolada. A percepção feminina está mais próxima da verdade pós-moderna que da verdade moderna. A modernidade produziu “verdades” que, até serem desautorizadas pelos pensadores revolucionários da pós-modernidade, eram tidas como absolutas. Filhas da razão, tais verdades adquiriam por isso um poder enorme, capaz de esmagar todos os “erros” que apareciam à sua frente. Não foi à toa que o pensamento moderno conferiu aos homens a capacidade de tiranizar outros em nome de suas “verdades” superiores. Nesse ponto, pode-se dizer que a modernidade destronou a religião, mas antes disso roubou dela a máquina de matar infiéis, e converteu o painel dessa máquina para indicar não mais “infiéis” a serem convertidos ou mortos, mas “inferiores” a serem “educados” - ou mortos.
A generalização e a abstração são funções muito importantes da mente, extremamente úteis numa infinidade de situações, como por exemplo em todas as situações que pertencem às “ciências da natureza”. Só não devem prevalecer quando se trata de seres humanos. Ou melhor: Só não devem prevalecer no momento de emitirmos um juízo de valor negativo sobre seres humanos. É essa a grande lição da pós-modernidade, com sua teimosa ênfase sobre a noção de “direitos humanos”, que na verdade significa “direitos do indivíduo”, que por sua vez significa: A razão não tem o direito de decidir o que é melhor para um indivíduo específico. Só ele mesmo tem esse direito. Isto, na modernidade, era um absurdo - e não foi à toa que tantas ideologias massificadoras - negadoras da diferença - surgiram durante a vigência daquele modo de pensar.
O profeta, portanto, apesar de intensamente masculino na violência de sua retórica, no fogo sagrado que se eleva de sua palavra, é feminino nesse seu modo de perceber e de nos mostrar o outro: O outro não é objeto da nossa generosidade, ele é sujeito de direitos específicos. Como noção geral, não muito rigorosa mas muito útil enquanto descrição - e enquanto alerta - eu diria que o profeta é um filósofo que superou a modernidade, no que ele tem de feminino nos dois sentidos da palavras: primeiro, no sentido da compaixão que equilibra o poder da lei, e segundo, no sentido da percepção do particular, do individual, que equilibra o poder da razão, esse magnífico rolo compressor que, por um lado, aplaina o caminho e nos permite ir longe, mas que é capaz, também, de a tudo achatar e a tudo generalizar, matando a dimensão mais importante da vida humana: a condição de sujeito a que os seres humanos têm direito – um direito universal e inalienável.