A poesia hebraica moderna - Jane Bichmacher de Glasman
A moderna literatura hebraica não nasceu em Israel, mas teve início com a Haskalá, o Iluminismo judaico, em diversos países da Europa, principalmente Rússia e Polônia. O renascimento formal da poesia foi marcado pelo jornal Ha-Meassêf (O colecionador, 1783-1829, com diversas interrupções, fundado em Königsberg, Alemanha), editado pelo círculo de Ilustrados de Mendelssohn, para o qual inúmeros poetas colaboraram com versos sobre temas leigos.
Os escritores carregavam, por um lado, uma formação judaica tradicional e, por outro, influências do pensamento europeu. Do confronto destes mundos de idéias foram escritas suas obras, mesclando judaísmo religioso e laico, além de concepções judaicas e não judaicas.
Muitos falam no “milagre do renascimento” do hebraico, mas o verdadeiro milagre não foi o seu renascimento e, sim, sua imortalidade durante um período tão grande. Durante a Diáspora, iniciada após a destruição do Segundo Templo, continuou-se criando literatura em hebraico, mantendo viva a língua escrita. No final do século XIX, ela voltou a ser falada como um idioma cotidiano, transformando-se no novo lar lingüístico judaico.
No início, a criação literária moderna em hebraico foi principalmente poética, impregnada pela Bíblia e pelo Talmud, trazendo influências do iídiche, da poesia laica da Idade Média e da linguagem cabalística, além de inspiração da história e da literatura mais recente.
Vendo nas palavras um reflexo do destino do homem, constata-se que ocorreu um milagre com o povo judeu: graças à força que as palavras encerram, foram-lhe devolvidos seu destino e sua terra. Foi com o vigor da fé no significado das palavras que lhe foi possível criar a realidade de sua vida. “Este é um dos casos raros na história humana em que as próprias palavras produziram história” (Ben Zion Tomer, prefácio da Antologia Poesia e Prosa de Israel, organizada por Cecília Meireles, 1968).
Após a Primeira Guerra Mundial, o principal centro da cultura hebraica, no Império Czarista, sofreu uma fragmentação geográfica e política, sendo o hebraico e sua cultura oficialmente banidos da União Soviética comunista. Já na primeira década do século XX, foram criados, paralelamente ao centro russo da literatura hebraica, outros centros, no Leste europeu, nos Estados Unidos e na Palestina, hoje Israel.
Devido ao processo histórico-social do judaísmo moderno, que percebeu nas correntes do sionismo as possibilidades de uma subsistência cultural e nacional, o centro da literatura hebraica deslocou-se, desde o início do século XX, para Israel, tornando-se mais evidente depois de 1918, não apenas porque os principais autores hebreus emigraram para lá, devido a suas ideologias pessoais e às circunstâncias políticas reinantes na Europa, mas também porque a comunidade judaica local passou a desempenhar um papel cada vez mais importante na vida dos judeus da Diáspora.
“Renovar-se ou perecer era o dilema irrecusável. A escolha efetuou-se através de uma minoria consciente e organizada que, encarnando as forças vivas do povo e as idéias, forças de sua história, fez-se agente de seu destino. Compreendendo este renovar-se como um esforço individual e coletivo de auto-reconstrução, dirigiu-se para o polo milenar da vida judaica, o ponto mais carregado de tradições e esperanças nacionais e, portanto, o mais apto a suscitar a utopia e a praxis, a visão e a ação, o idealismo romântico que pode levar a todos os sacrifícios e o realismo pragmático que não subestima a menor dificuldade, indispensáveis ao êxito da tentativa. Criou-se, assim, a síntese de vontades que forjou as novas bases de sobrevivência do povo judeu”. “Foi com esta missão que grande parte de seus escritores emigrou para a Terra Santa e participou literal e literariamente do trabalho de restauração” (J. Guinsburg, Nova e velha pátria, 1966).
A literatura hebraica contemporânea colheu ecos de seu desenrolar e repercutiu as vozes de seus promotores, com forte vibração social. O pioneirismo foi um dos movimentos que, ao lado das correntes estéticas modernistas, marcou o espírito e as tendências da literatura hebraica na Palestina, principalmente na década de 20. Na temática do halutz, do jovem pioneiro que através do labor pessoal e da disposição para o sacrifício realizava a construção redentora do povo, inspirou-se vasta produção poética. Convém esclarecer que nem todos os de sua época podiam ser classificados como halutzim .
Sente-se nos poemas da geração dos pioneiros o entusiasmo do homem que descobre uma vida nova, paisagens novas, que procura traduzir em sua obra poética este reencontro com uma terra desértica e seu amor por ela; mas revela-se, também, a nostalgia de sua infância no leste europeu, ecos da linguagem bíblica, bem como influências da poesia européia contemporânea, integradas no que o homem judeu tinha de mais específico nele. Ainda que o mundo particular da maioria dos poetas estivesse dividido entre lembranças da infância e da juventude “lá” e as experiências do presente, desejavam aprofundar raízes “aqui”: “a dor de duas terras natais”, como chamado posteriormente por Léa Goldberg (Reuven Kritz, "Hebrew poetry in our generation", in Modern hebrew literature, New Series, nº 1, 1988).
A poesia hebraica moderna teve seu início com Hayim Nahman Bialik (Ucrânia, 1873-1934, Palestina) e Shaul Tchernihovsky (Rússia, 1875-1943, Palestina), os principais autores do período conhecido como do “Renascimento”. Bialik trouxe para a poesia hebraica a voz do homem concreto, que faz ouvir os seus versos em circunstâncias definidas de vida sobre um pano de fundo de um passado biográfico, a partir de um espaço interior pessoal, com limites precisos. Antes dele, a poesia hebraica estava imersa numa esfera neoclássica tardia e num sentimentalismo global. Bialik descobriu um eu poético que, ao mesmo tempo, serve de símbolo e está enraizado na realidade consciente e biográfica única. A partir do núcleo da existência pessoal, era possível desenvolver um diálogo com o que se encontra além do eu: com a natureza, com o povo judeu, sua história e sua cultura e, até, um diálogo tenso com Deus. Se Bialik trouxe para a poesia a interioridade do homem, descrita por Kant, Tchernihovsky trouxe a concepção do homem como parte minúscula do cosmo, sujeito às suas leis, influenciado por Goethe, e por Nietzsche, em seu modelo romântico. Bialik era um lírico e Tchernihovsky conferiu à poesia um caráter épico, principalmente em seus idílios. Esses contrastes enriqueceram a poesia hebraica, não criando territórios poéticos separados nem impondo aos poetas jovens, influenciados pelos dois, que escolhessem um ou outro.
O período entre as duas guerras mundiais, quando o núcleo da Palestina se revitalizou, gradualmente tornando-se o centro desta nova literatura, marcou o fim do policentrismo na literatura hebraica. Ela deixou de ser exclusividade de um círculo de estudiosos e filósofos para transformar-se na literatura de um povo enraizado em sua própria terra.
Na década de 1920 e início da de 30, foi substituído todo o sistema fonético da língua hebraica. A acentuação das palavras e a pronúncia das consoantes e vogais modificaram-se totalmente; o hebraico passou da pronúncia ashkenazita do leste europeu para um hebraico sefardita, o que representou uma crise de natureza especial que nenhuma outra poesia moderna precisou enfrentar.
Por volta dos anos 30, a transformação do hebraico em língua viva estava completa. Em Israel havia milhares de leitores, muitas livrarias e bibliotecas públicas, estabelecimentos literários com periódicos, editores, críticos, união, oposição, prêmios e cafés literários. Sem suporte governamental, a Histadrut (Central Trabalhista) auxiliou no estudo da literatura nas escolas, provendo os escritores com trabalho e leitores, com a criação do Jornal Davar (Palavra) e da Editora Am Oved (Povo Trabalhador), por exemplo.
Em geral, existiam mais poetas do que escritores de ficção e prosa nas revistas, escolas e noites culturais. Um teatro satírico cresceu. A poesia tinha papel importante na vida cotidiana. O público gostava de cantar e os poetas e compositores cooperavam, produzindo músicas sobre a pavimentação das estradas, a construção de casas, a sentinela, os feriados judaicos, os pioneiros na Galiléia e no Néguev, além, obviamente, das temáticas pessoais. O sucesso popular desta poesia pode também ser visto nas antologias que se esgotavam após sua publicação.
Com Bialik e Tchernihovsky, a poesia hebraica fora assentada no solo do romantismo. A cultura hebraica que foi criada e funcionava dentro de um sistema de renascimento nacional, necessitava do romantismo e apegava-se a ele. Mas ela não ignorou a disposição do espírito da época e foi vulnerável às influências que solaparam o lugar dos valores básicos românticos, como a do decadentismo europeu, que criou na poesia uma luta entre o espírito do renascimento e a irrupção de forças de juventude no espírito de fenecimento, lassidão e cinismo, ou a influência do simbolismo russo e do neo-romantismo alemão, que levou à contestação do apego da poesia ao concreto, ao rompimento da ligação entre o eu e a natureza.
Logo após a Primeira Guerra Mundial, penetraram na poesia as correntes poéticas pós-simbolistas modernas: o expressionismo, o imaginismo russo, o futurismo e, com certo atraso, o imagismo anglo-americano. Essa irrupção não levou à anulação imediata das disposições de espírito poéticas anteriores, românticas, simbolistas e impressionistas. Assim, criou-se no espaço da poesia hebraica um torvelinho de estilos e combinações que conduziu, de um lado, a uma multiplicidade de matizes e a uma riqueza incomum e, de outro, a divergências, a uma guerra de gerações, a passagens drásticas e surpreendentes no desenvolvimento individual de muitos poetas, que trocaram de poética ou de estilo. Durante as décadas de 20 e 30, foram criadas em hebraico poesias com as quais seria possível montar uma antologia que refletiria o desenvolvimento dos gostos da poesia européia desde o final do século XIX.
Na década de 20, o modernismo apegou-se a modelos pós-simbolistas, combinando com as experiências do ‘abalo apocalíptico’, sofrido pelos judeus e pela humanidade no período da guerra, e o impulso do empreendimento sionista no futuro território de Israel, com a Declaração Balfour e a entrega do Mandato à Grã-Bretanha, pela Liga das Nações (que poderia concretizar a Declaração, no estabelecimento de um ‘lar nacional’ para os judeus).
Dentre os fatores que possibilitam uma descrição do desenvolvimento da poesia hebraica moderna, Miron (1997) destaca a vinculação básica da poesia ao sionismo; a abertura da poesia do início do século às variadas fontes de influência e sua ligação com numerosos modelos poéticos; o fato de a poesia, como toda a nova literatura hebraica, ter-se baseado no desenvolvimento da cultura da Europa e de suas literaturas, desde o humanismo e o neoclassicismo; a contribuição dos grandes artistas que, com as várias tendências e modelos em suas obras, influenciaram tanto os membros de sua geração, como os da mais jovem. Mesmo os que se rebelaram referiam-se ao modelo, na sua autodefinição, gerando uma continuidade dialética para a história da poesia.
A predominância poética tornou-se gradualmente modernista e neo-simbolista. Os poetas jovens, da primeira década do século XX, praticamente eram discípulos fiéis de Bialik e de Tchernihovsky.
“Seu apego aos modelos da poesia de seus mestres, especialmente aos dos poemas de Bialik, que os poetas, consciente ou inconscientemente, citavam, era tão íntimo que todo desvio deles, mesmo o mínimo, parecia tanto ao público da época quanto a alguns leitores e críticos posteriores um sinal de distanciamento inovador” (Dan Miron, "A poesia hebraica de Bialik aos nossos dias", introdução de Poesia Sempre, ano 5, nº 8, 1997).
O sistema poético do período anterior conservou-se e estabeleceu o tom da poesia e as suas linhas temáticas: uma fé romântica no eu e na força redentora da imaginação poética, a crença no renascimento do povo de Israel, o ativismo, a natureza e Eros. As características permaneceram vinculadas à fórmula bialikiana, com uma musicalidade baseada em métrica e rima rica ou num ritmo livre, sem métrica, enquanto a poesia desenvolveu-se de modo harmônico, em torno de um modelo rítmico central, numa linguagem hebraica rica, plena de alusões e citações das fontes clássicas, especialmente a Bíblia, não subordinada aos contextos originais das citações, mas fazendo deles um uso livre e renovado. Essa linguagem refletia o caráter nacional judaico da poesia, suas ligações com o passado cultural e a consciência da necessidade de uma revolução na vida nacional, imprescindível ao renascimento sionista.
Para Comey, desde Bialik encontramos poetas que merecem figurar entre os mais destacados no mundo e integrar uma antologia de poesia universal; pela poesia hebraica contemporânea desfilaram todas as escolas literárias e todas as tendências. A poesia anterior à criação do Estado foi escrita por poetas que conheciam a poesia mundial, cuja influência permite entendê-los melhor. Mas, escrevendo em hebraico, não só traduziam motivos da literatura universal para ele, como ao que há de intraduzível na sua experiência vital: o reencontro da velha língua com uma situação nova. O leitor de qualquer idioma encontra muitas semelhanças e familiaridades literárias com o seu próprio, pois em todo lugar o homem vive essencialmente os mesmos problemas e necessita sublimar-se por meios poéticos. Poesia em grego significa criação; assim, lida com o divino, com o paradigma do primeiro dia da Criação.
Partimos do pressuposto de que o importante no estilo lírico não são as conexões lógicas. A comunicação entre leitor e poema não exige a compreensão textual em primeiro plano. O leitor, primeiro, emociona-se, para depois entender. Por isto, Staiger afirma que, para a insinuação ser eficaz, o leitor precisa estar indefeso, receptivo. E isso acontece quando a alma do leitor está afinada com a do poeta. Ou como dizia Cecília Meireles, aliás uma apreciadora e tradutora de poesia hebraica: “a poesia, além de outras virtudes, possui a de tornar as criaturas compreensíveis umas às outras, na sua íntima verdade, que é a verdade do espírito. Compreender é de certo modo amar” (Cecília Meireles, Poesia de Israel, 1962).
Jane Bichmacher de Glasman é escritora, doutora em Língua Hebraica, Literaturas e Cultura Judaica pela USP, sendo também professora adjunta na UERJ. É fundadora do Programa de Estudos Judaicos na mesma universidade. Publicou os livros À luz da Menorá: introdução à cultura judaica e Interseções: relações entre judaísmo e outras culturas e religiões na Antigüidade.