O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana
Os judeus viviam no território da atual Ucrânia centenas de anos antes do estabelecimento da nação ucraniana, no século 9. Sua história foi marcada por sofrimento e muito sangue judeu derramado em solo ucraniano. Mas foi, também, o lugar dos shtetls, onde nasceu o Chassidismo e viveram grandes Rebes, onde floresceu o sionismo e onde nasceram e viveram personalidades da História e da Literatura judaica.
É difícil traçar a história dos judeus que viveram nesse território, pois esta se entrelaça com a da região. Ao longo dos séculos, a Ucrânia foi cobiçada, conquistada e dividida entre inúmeras nações. Khazares, varegues, mongóis, lituanos, poloneses, russos, austro-húngaros e soviéticos dominaram, em algum momento de sua história, parte do território ucraniano. Assim como o território, seus habitantes passavam de uma soberania à outra. No caso da população judaica, isso significava que esta teria que se sujeitar à postura e às discriminações e restrições do novo poder dominante relativas aos judeus.
Gregos e Khazares
A partir do século 7 antes da Era Comum (a.E.C.), os gregos instalaram colônias na parte norte da costa do Mar Negro (sul da atual Ucrânia), uma área estratégica para o comércio marítimo, e nas terras férteis da Península de Taurica ou Tauris (atual Crimeia). Desde o início dessa colonização havia judeus vivendo nas cidades-estados gregas. Inscrições datadas do ano 80 da E.C., descobertas no Bósforo, uma das principais cidades-estados gregas, testemunham a existência de uma comunidade judaica estruturada, já possuidora de uma casa de orações.
No século 7 da E.C., os khazares, um novo poder militar vindo do Cáucaso e da região Cáspia, subjuga as tribos eslavas e conquista a região. O Império Khazar (ca. 650 – ca. 965/968), que chegou ao seu apogeu no século 8, durante o reinado de Būlān, estendia-se das estepes ucranianas às terras que se avizinham ao Rio Ural, e da região do Meio Volga ao Cáucaso do Norte, na cidade de Astrakhan, no Mar Cáspio. Acredita-se que durante o reinado de Būlān, por volta do ano de 740 da E.C., a dinastia real, as classes dominantes e, em seguida, parte da população se converteram ao judaísmo.
O século seguinte foi marcado pela prosperidade. Uma das mais importantes rotas de comércio da época, que conectava as três partes do mundo até então conhecido, atravessava os domínios khazares. Atraídos pela prosperidade e pela possibilidade de viver numa nação onde o judaísmo era a religião dos governantes, um grande número de judeus se estabeleceu no Império Khazar. Muitos vinham dos domínios bizantinos para escapar às constantes discriminações, perseguições e conversão forçadas ao cristianismo grego-ortodoxo. No século 9, havia judeus em todas as regiões que hoje constituem o território ucraniano, principalmente às margens do rio Dnieper e no leste e sul da Ucrânia. A existência de um reino judaico no Cáucaso desperta, em meados do século 10, o interesse de Rabi Hasdai ibn Shaprut, médico pessoal dos califas de Córdoba, Abd-al-Rahman III, e seu filho, Hakam II. Rabi Ibn Shaprut era, também, ministro da corte e diplomata encarregado, entre outros, das negociações com delegações estrangeiras que chegavam ao Califado.
Por volta do ano de 950, Ibn Shaprut envia uma missiva ao rei dos khazares indagando sobre a história de seu povo. A carta chega às mãos de Joseph, o rei khazar, através dos bons ofícios de dois judeus que haviam acompanhado uma delegação a Córdoba. Em sua resposta, o rei Joseph relata o início da história dos khazares e sua conversão ao judaísmo. A troca de correspondência entre Rabi Ibn Shaprut e o rei Joseph, que ficou conhecida como a “Correspondência Khazar”, é um dos poucos documentos conhecidos de autoria khazar e uma das poucas fontes primárias da história desse império.
Por volta de 966, tribos eslavas lideradas por príncipes russos invadem o Império. Os khazares retiram-se para seus domínios na Península da Crimeia, a Khazaria, como era chamado seu estado, e mantêm sua independência até meados do século 11, quando são conquistados pelos russos e pelos bizantinos.
Estado Rus’ Kievana e a identidade ucraniana
Varegues da Escandinávia – chamados de Rus’ – conquistam, no século 9, o território que hoje engloba três nações eslavas orientais modernas: a Ucrânia, a Bielorrússia e a Rússia Ocidental, lançando as bases para o Rus’ Kievana (Kyivan Rus’), o primeiro estado eslavo oriental. A criação desse estado é de suprema importância para a região, pois, do ponto de vista historiográfico, estabeleceu as bases da identidade nacional dessas três nações.
Em 877, os rus’ conquistam Kyiv (Kiev) e fazem dela a capital de seu estado – Kyivan Rus’. Essa localização estratégica da nova capital, situada na confluência de dois rios, Dnieper e Pripyat, e no cruzamento das principais rotas comerciais Norte-Sul e Leste-Oeste, vai ser fundamental para a rápida ascensão de seu império. Kyivan Rus’ atingiu seu apogeu nos séculos 10 e 11, com um território de 800 mil km2, que se estendia desde as montanhas dos Cárpatos até o rio Volga, e do Mar Negro até o Mar Báltico.
Um dos grandes pontos de inflexão da história ucraniana foi a conversão, no século 10, do povo ao cristianismo greco-ortodoxo. Essa conversão vai ser crucial, também, para a história dos judeus da Ucrânia, por ser marcada por um profundo e endêmico antijudaismo. Logo após a conversão, o clero ortodoxo passou a incitar o povo contra os judeus. Em Kiev, por exemplo, Theodosius (1057-1074), abade do Mosteiro Pechersk Lavra, pregava a necessidade de “viver em paz com os amigos e inimigos, mas com seus próprios inimigos, não os inimigos de D’us: os judeus e os hereges”. Em Chernigov, uma das mais antigas comunidades judaicas, também os judeus passaram a ser alvo da hostilidade da população.
A partir de 1054, as lutas entre príncipes de Rus’ levaram à fragmentação do Kyivan Rus’ em 13 principados. Dois deles são de grande importância na história da região, em geral, e na judaica, em particular: o de Kiev e o da Galícia-Volínia. Em 1187, a palavra Ucrânia (Ukrayina) é usada pela primeira vez para descrever o principado de Kyiv (Kiev) e o da Galícia.
O Principado de Kiev
O Principado de Kyiv, que ocupava a área da Ucrânia da margem direita do rio Dnieper, foi o mais importante principado de Kyivan Rus’. Desde a fundação de Kiev, mercadores judeus haviam sido atraídos à cidade, que era um próspero centro comercial situado nos cruzamentos das rotas de comércio, que uniam, de um lado, a Europa Ocidental, e, de outro, as províncias do Mar Negro, a Europa Oriental e o continente asiático.
Uma carta escrita por judeus de Kiev, encontrada na Guenizá do Cairo, revela que havia judeus vivendo na cidade e em outras partes na Ucrânia central já no século 10. Sob o governo do príncipe Svyatopolk II (1093-1113), os judeus eram protegidos e usufruíam de total liberdade em termos comerciais, tendo mesmo confiado a alguns deles a cobrança de impostos do principado.
Já era marcante a dicotomia entre os interesses dos governantes e o antijudaismo do povo, funesta herança do cristianismo greco-ortodoxo. Em 1113, logo após a morte de Svyatopolk, os judeus de Kiev foram vítimas do primeiro pogrom. Mas, apesar das dificuldades, continuaram a viver lá e em outros locais do principado, tendo sido fundamentais para seu desenvolvimento comercial, ajudando a conectar a região com os centros mais desenvolvidos da época.
Com o crescimento econômico da região, aumenta o influxo de judeus oriundos da Khazaria, do Império Bizantino e da Europa Ocidental, particularmente da Renânia (em alemão, Rheinland), uma região no oeste da Alemanha. Em crônicas da metade do século 12, há frequentes citações do “Portão Judaico” de Kiev. E os rabinos alemães do período referem-se, em seus escritos, a judeus que viajam com suas mercadorias para a “Russ”. Há referência a Kiev, também, nos relatos de viajantes judeus da época, entre os quais, Benjamin de Tudela e do Rabi Petachiah de Ratisbon (Regensburg, na Bavária).
No início do século 13, os mongóis invadem a região semeando terror, morte e destruição, e os judeus sofrem amargamente, assim como o restante dos habitantes. Em 1240, liderados por Batu, neto de Genghis Khan, os mongóis tomaram Kiev pondo fim à independência do principado, que passa a fazer parte do Império Mongol.
Principado de Galícia-Volínia
O Principado de Galícia-Volínia surgiu em 1199, resultante da união de dois principados distintos, Volínia (região oeste da Ucrânia) e Galícia (hoje, Ucrânia Ocidental). Durou 150 anos e foi um dos três estados mais importantes que emergiram da desintegração de Kyivan Rus’.
A Galícia-Volínia atingiu o apogeu nos séculos 12 e 13. Um grande número de judeus alemães se estabeleceu na Galícia e em outras cidades na parte oeste da Ucrânia, a partir do século 12. Em Lviv1 estabeleceram-se logo após a cidade ter sido fundada, em meados do século 13. Por causa de sua localização mais no oeste da atual Ucrânia, a Galícia-Volínia não foi invadida por hordas nômades vindas do Leste mantendo um considerável grau de independência até 1340. Mas, acabou sendo presa de seus vizinhos católicos: a Polônia ficou com a Galícia e a Lituânia, com a Volínia.
A Comunidade Polaco-Lituana
Enfraquecidos por conflitos internos e invasão dos mongóis e dos tártaros, os principados ucranianos ofereceram pouca resistência à hegemonia lituana. Progressivamente, a maioria das terras de Rus’ Kievana, inclusive Kiev, foi caindo em mãos da Lituânia.
A expansão do Grão-Ducado da Lituânia atingiu o seu auge em meados do século 14, quando este incluía o território da atual Bielorrússia e da maioria dos territórios ucranianos, além de parte da Polônia e Rússia.
Os grão-duques concederam privilégios a todos os judeus em seus domínios. Em Kiev, o número de judeus aumentou consideravelmente e eles desfrutavam de muita prosperidade.
Em 1386, o casamento entre Jogaila, grão-duque da Lituânia, e Edviges I, rainha da Polônia, vai ser de extrema importância na história da região. Além de o casamento ter sido condicionado à conversão de Jogaila e outros nobres lituanos ao catolicismo, criou-se uma união dinástica entre a Polônia e a Lituânia.
No decorrer do século seguinte, em todo território sob a união dinástica da Polônia e a Lituânia aprofunda-se o processo de “polonização”. Quando passa a ser necessário ser católico para fazer parte da cúpula governamental e militar, a maior parte da elite ucraniana e lituana se converte ao catolicismo.
Durante longo tempo, os judeus sob o domínio dos grão-duques lituanos gozavam de direitos sociais e econômicos mais favoráveis do que os vigentes na Polônia. Por isso, em 1389, com a união da Polônia e Lituânia, para assegurar aos súditos judeus os seus direitos, outorgou-se lhes uma carta-privilégio. O documento não só lhes garantia participação em pé de igualdade com os comerciantes cristãos como, também, assegurava-lhes a compra e o uso de terras.
Cem anos mais tarde, em 1495, os judeus são expulsos da Lituânia, causando a emigração de muitos para a Crimeia, mas serão readmitidos em 1503. Em fins do século 15 havia judeus ocupando importantes posições financeiras em Lvov e Kiev, sendo que na corte circulavam médicos, banqueiros, grandes comerciantes e arrendatários judeus.
O processo de “polonização” foi concluído em 1569 com a União de Lublin, que transformou o Reino da Polônia e o Grão-Ducado da Lituânia em um único estado, a Primeira República da Polônia, conhecida, também, como a Comunidade Polaco-Lituana ou das Duas Nações. Oficialmente, a Polônia era uma república governada por um rei eleito pela nobreza polonesa, a szlachta.
Nos séculos seguintes, o estado polonês continuou a se expandir para o Leste, tornando-se um dos maiores e mais populosos países da Europa. A República abrangia os territórios do que são hoje a Polônia e a Lituânia, a Bielorrússia e a Letônia, grande parte da Ucrânia e Estônia, além da região ocidental da atual Rússia.
Vida judaica
No final da Idade Média, milhares de judeus de várias partes da Europa Ocidental se haviam estabelecido na Polônia. As Cruzadas, as expulsões, os pogroms, a Peste Negra os haviam forçado a buscar refúgio no leste da Europa. A grande maioria instalou-se nos domínios da Coroa Polonesa, que, a partir do final do século 13, concedera condições favoráveis ao seu assentamento, com amplas garantias jurídicas.
Os direitos concedidos pela Coroa Polonesa lhes haviam aberto novas oportunidades econômicas tanto da zona rural como nas cidades onde lhes era permitido viver. Na medida que prosperavam, a população cristã se ressentia da competição. Repetidamente, em inúmeras cidades, durante os séculos 17 e 18, acumulavam-se os pedidos à Coroa para que esta determinasse que, naquela cidade, não podiam viver judeus. Era o famoso non tolerandis Judaeis. Em Kiev, em 1619, conseguiram, pela primeira vez, expulsá-los.
Em meados do século 17, estavam na Ucrânia 45 mil dos 150 mil judeus que viviam nas terras sob o domínio polonês na margem direita do Rio Dnieper, nas províncias de Volínia, Podólia, Bratislaw, Ruś Czerwona e Kiev. A população judaica era organizada em kehilot (congregações) dirigidas por um conselho comunitário composto de rabinos e personalidades da comunidade. Na Polônia, um nível adicional foi acrescentado: um conselho nacional, o Conselho das Quatro Terras (Vaad Arba’ah Aratzot), composto pela maioria dos rabinos proeminentes e líderes leigos da época.
O ídiche era o idioma utilizado por todos os judeus. A vidas girava em volta de suas sinagogas. Sua profunda religiosidade lhes era fonte de consolo e determinava todos os aspectos de seu cotidiano. O estudo judaico era de primordial importância. A fama de uma cidade não residia em sua importância econômica, mas no número de suas ieshivot e na reputação de seus rabinos. Em meio à população polonesa, na qual só o clero e uma minoria da alta nobreza eram educados, e 90% do povo não sabiam nem ler nem escrever, era praticamente nulo o analfabetismo entre os judeus.
O Sistema Arenda
A partir de1569, quando foi criada a Primeira República da Polônia, foram disponibilizados aos judeus amplos lotes de terra, na Ucrânia, pertencentes à alta nobreza polonesa. Judeus vindos de toda a Europa foram para essa região. Os nobres poloneses lhes arrendavam suas propriedades e os judeus as administravam através do chamado sistema arenda.
O nobre polonês, dono de enormes propriedades de terra, era o governante absoluto dos camponeses, servos semi-escravizados, que viviam em suas propriedades. O fato de os senhores das terras serem católicos, os servos ucranianos greco-ortodoxos e os administradores judeus era fonte de grande tensão.
Pelo sistema arenda, a nobreza polonesa arrendava não apenas a terra, mas todos os ativos fixos de sua propriedade, tais como moinhos, destilarias, hospedarias e outros. O contrato incluía, também, o direito exclusivo de destilar e vender bebidas alcoólicas. Cabia ao arrendatário coletar impostos, pagamentos e produtos agrícolas dos servos. O judeu que fechava o contrato levava consigo, além de sua família, todos os que quisessem acompanhá-lo como subarrendatários. Acabou-se criando uma classe média judaica na zona rural ucraniana e a receita advinda da arenda e da venda de bebidas alcoólicas constituía, em grande parte, o esteio da economia judaica.
Cresce o número de judeus de tal forma que foi sancionada uma lei transferindo o status jurídico e fiscal dos judeus da Coroa aos nobres. Esses passaram a construir cidadezinhas, os shtetls, onde eram judeus a maioria dos habitantes.
O sistema de arenda era um verdadeiro barril de pólvora pronto a explodir. Para aumentar suas receitas, os latifundiários exigiam pagamentos cada vez mais elevados dos arrendatários judeus, e o não pagamento tinha seríssimas consequências. Para conseguir fazer face a tais compromissos, os judeus pressionavam os camponeses. Líderes judeus sensíveis aos males que sofriam estes últimos tentaram aliviar seu fardo. Em 1602, por exemplo, rabinos e o conselho comunitário de Volínia pediram aos arrendatários judeus que os camponeses não trabalhassem aos sábados e nas festas.
Para a grande maioria dos servos ucranianos ortodoxos não importava muito quem era o responsável por sua miserável situação. Os judeus, “infames infiéis e estrangeiros”, representantes dos nobres poloneses católicos, eram vistos como os culpados por impor sobre eles um pesado ônus econômico. O ódio religioso e o profundo ressentimento acabaram se concretizando em perseguições violentas e massacres terríveis. Para piorar a situação, não sendo os judeus aliados formais da nobreza polonesa, eles não estavam, automaticamente, sob sua proteção.
Os massacres de Chmielnicki em 1648-1649
Em meados do século 17 a Polônia foi sacudida por duas décadas de lutas internas e externas (1648-1667), chamadas na história polonesa de “Dilúvio” (em polonês, Potop). O ressentimento contra o poder polonês veio à tona em várias revoltas rapidamente reprimidas. Mas, em maio de 1648, a situação saiu do controle do governo.
Uma rebelião de cossacos e camponeses ucranianos, liderada pelo chefe cossaco Bohdan Chmielnicki, alastrou-se por todo o território da atual Ucrânia.Chmielnicki, à frente de um exército de cossacos do Dnieper e de tártaros da Crimeia, transformou a insurreição numa luta política para acabar com o domínio polonês na região, que teve repercussões internacionais. Suas forças semearam morte e terror por onde passavam. Ao capturar as cidades e os vilarejos poloneses, judeus e padres católicos eram cruelmente assassinados, sendo poucos os que se salvaram. Apesar de serem os poloneses o principal alvo, foi sobre os judeus que se abateu toda a sua fúria. Estima-se que havia 150 mil judeus vivendo no território da atual Ucrânia.
Judeus das áreas rurais dirigiram-se às cidades procurando proteção. Milhares deles batalharam ao lado dos poloneses nas cidades fortificadas, que se transformaram para eles em armadilhas mortais. Na hora do perigo, os poloneses sempre abandonavam os judeus sozinhos.
A literatura martirológica judaica da época recorda o massacre de comunidades como Nemirov, Ostrog e Narol. Em Tulchin, soldados poloneses entregaram os judeus em troca de suas próprias vidas; em Tarnopol impediram os judeus de entrar, apenas para dar alguns exemplos da barbárie. Em Dubno, dois mil judeus que viviam na cidade e redondezas foram massacrados porque os poloneses não permitiram que se refugiassem na fortaleza. Segundo a tradição, os túmulos estavam localizados próximos ao muro oriental da Grande Sinagoga, onde era costume orar pelos mortos durante o jejum de Tishá B’Av.
O pesadelo chegou praticamente ao fim em agosto de 1649, quando um tratado assinado entre Chmielnicki e a Coroa Polonesa restabeleceu o domínio do governo polonês nas partes da Ucrânia onde vivia a maior população judaica.
Uma das crônicas judaicas da época descreve a devastação e a obscena brutalidade: “Muitas comunidades além do Dnieper, como Pereyaslaw, Baryszowka, Piratyn e Boryspolê, Lubin, Lachowce (...) tiveram morte cruel e amarga. Alguns de seus integrantes foram esfolados vivos e sua carne atirada aos cães; outros tiveram as mãos e membros decepados e seus corpos atirados na estrada só para serem destroçados pelos carros e esmagados pelos cavalos (...). O inimigo massacrou mulheres crianças no colo de suas mães (...). Atrocidades semelhantes foram perpetradas em todos os lugares por onde passavam...”.
É muito difícil determinar o número total de vítimas judias dos massacres de 1648 e 1649, conhecidos entre os judeus como Gzeyres takh vetat (Malignos decretos). As crônicas judaicas dizem que foram 100 mil, mas há relatos de que foram 300 mil e que mais de 300 comunidades foram destruídas. Foi decretado um dia de jejum (20 de Sivan) e preces especiais foram compostas em memória das vítimas.
No entanto, apesar da magnitude do desastre, muitos judeus retornaram à Ucrânia após ter sido restaurada a calma, mas décadas se passaram até novamente se tornarem importantes no contexto do judaísmo polonês. A história da Ucrânia daria mais uma guinada quando Chmielnicki procurou a ajuda dos russos, que invadiram o nordeste da Polônia e a Ucrânia. Em 1655, os suecos invadiram a Polônia Ocidental. Ao final daquele ano, quase toda a Polônia estava ocupada por cossacos, russos e suecos. No ano seguinte, todavia, o exército polonês foi reorganizado e fez recuar os invasores. Mas a Polônia se encontrava em estado caótico e era grande a deterioração econômica.
No século 18, o ódio acumulado pelas massas ucranianas volta à tona. A desordem geral e a agitação dos padres greco-ortodoxos levaram à formação de bandos conhecidos como Haidamacks, compostos por cossacos da Rússia, Ucrânia e servos fugitivos.
Os Haidamacks atacaram a Ucrânia em 1734, roubando e destruindo muitas cidades e vilarejos, assassinando grande número de nobres poloneses e milhares de judeus. O comandante das forças Haidamacks, Wasski Washchilo, proclamara que o objetivo da revolta era “destruir o Povo Judeu para proteger o cristianismo”. De acordo com o censo oficial de 1764 viviam no território da atual Ucrânia 258 mil judeus, mas acredita-se que eram mais de 300 mil. Bandos de Haidamacks acabaram destruindo comunidades em Fastov, Granov, Zhivotov, Tulchin e Dashev. Em 1768, os judeus de Uman foram alvo de um terrível massacre. Segundo relatos de testemunhas, entre 50 mil e 60 mil judeus foram cruelmente assassinados.
Os massacres não interromperam a imigração judaica para a Ucrânia apesar das tensões entre os judeus e as populações ucranianas ao longo do século 19.
Chassidismo
O Chassidismo apareceu primeiramente nos povoados da Ucrânia no início do século 18. Uma mistura de sofrimentos e sentimentos, aglutinada por uma debilitante pobreza, serviu de pano de fundo para o surgimento dos movimentos chassídicos.
O fundador Rabi Israel Ben Eliezer, o Baal Shem Tov (o Besht), nasceu na Podólia, em 1700. Na época, as comunidades judaicas estavam afundadas em desespero, com a intensificação dos pogroms e das acusações de assassinato ritual contra os judeus. Ademais, a Polônia enfrentava graves dificuldades econômicas e tensões sociais que afetavam o dia-a-dia e sustento das populações judaicas. Esses fatores, aliados à desilusão decorrente do episódio de Shabetai Zvi – um pseudo-cabalista que alegara ser o Mashiach –, reforçaram a procura de sinais da redenção messiânica.
Os líderes religiosos, à época traumatizados pelo episódio de Shabetai Zvi, baniram o ensino do misticismo judaico, ficando o estudo da Torá restrito à elite. Deve-se lembrar que, naquele então, somente a erudição da Torá era considerada o caminho do judaísmo, mas eram poucos os que podiam dar-se ao luxo de estudar. Os livros sagrados eram raros e caros e a maioria trabalhava dia e noite para sobreviver. Barreiras, incluindo diferentes sinagogas, separavam os cultos dos incultos, os ricos dos pobres, os líderes dos homens do povo.
Grande parte da vida do Baal Shem Tov foi dedicada a aliviar a sensação de desespero – tranquilizar os judeus, animar seu espírito deprimido e eliminar temores e ansiedades. Para os judeus da Europa Central e Oriental, especialmente aqueles que viviam na miséria e sofrimento, ele passou a ser a materialização da esperança. Quando deixou esse mundo, em 1760, não houve um único vilarejo judaico na Ucrânia e no resto da Europa Oriental que não estivesse sob a influência do Baal Shem Tov e de seus ensinamentos.
Com sua morte, a liderança do movimento passa para o discípulo que lhe era mais próximo – o Maguid, Rabi Dov Baer (1710-1772), que se estabeleceu na cidade de Mezeritch, na Volínia. Rabi Dov Baer enviou discípulos para espalhar os ensinamentos do Baal Shem Tov.
A cidade de Berditchev, localizada na atual Ucrânia, está inexoravelmente ligado ao nome de Rabi Levi Yitzhak – “o advogado do Povo Judeu perante o Trono Celestial”. Rabi Levi Yitzhak foi dos mais famosos alunos de Rabi Dov Baer. Este foi o Rebe dos Rebes foi o mestre dos pilares espirituais do Chassidismo: Rabi Shneur Zalman de Liadi – o fundador do movimento Chabad-Lubavitch –, o Vidente de Lublin e os dois “irmãos sagrados”, Rabi Elimelech de Lizensk e Rabi Zusia de Anipoli.
O domínio russo
Os 20 anos de guerra que colocaram a Polônia contra invasores suecos e russos resultaram em uma deterioração econômica e em tensões sociais, e no final do século 18, a Polônia deixa de existir como país soberano, sendo dividida entre seus poderosos vizinhos em 1772, 1793 e 1795. A Prússia ficou com a parte ocidental até o Mar Báltico, a Áustria com um pedaço central que incluía a Galícia, mas coube à Rússia ficar com a maior parte do território- a Ucrânia, Lituânia e Polésia.
Centenas de milhares de judeus se tornam súditos indesejáveis dos czares, antes disso não lhes era permitido se estabelecerem nos domínios dos czares. Sua história foi bem diferente, mais sofrida do que a daqueles que ficaram sob domínio austro-húngaro, bem como das populações judaicas que viviam na Europa Ocidental e Central.
O regime czarista foi um dos exemplos mais persistentes de autocracia da História. Os soberanos exerciam poder absoluto e, no século 19, ainda existia uma ordem pré-moderna de classes sociais: de um lado, privilégios aristocráticos, e, de outro, um sistema legalizado de servidão. No final do séc. 19 e início do séc. 20, em todo o território russo, o antissemitismo era uma política oficialmente sancionada pelo governo, algo que não acontecia em outros países europeus. Dentre todas as minorias que viviam sob o jugo czarista, a mais hostilizada era a judaica; os maus-tratos, a hostilidade e o desprezo eram uma constante. A política czarista era uma mistura de desprezo e medidas discriminatórias, e de esforços para “regenerá-los”, “russificando-os” e os obrigando a se “amalgamar” com a população cristã.
Por breve tempo, depois de 1772, a czarina Catarina II, a Grande, expressou certa benevolência em relação aos novos súditos judeus, concedendo-lhes o direito de residência. No entanto, pressionada por negociantes cristãos de Moscou, que queriam impedir a atuação de comerciantes judeus, em 1791 a Czarina proíbe os judeus de se estabelecerem na Rússia Central, no “solo da Mãe Rússia”. Uma exceção foi feita no antigo território do sul da Ucrânia. Esta região, a “Nova Rússia”, foi aberta aos judeus e outras minorias com o intuito de povoar a área e desenvolver sua economia. A cidade principal, Odessa, tornou-se rapidamente importante centro de vida judaica.
Em 1775, a Czarina promulgou um decreto determinando o confinamento dos judeus – dessa vez não em guetos, mas numa parte de seu Império, a chamada “Zona de Residência” ou “Território do Acordo” – em russo, Cherta Osedlosti.
Na área que incluía a antiga Polônia, Ucrânia, Bielorrússia e Lituânia passaram a viver mais de 90% dos judeus do Império. Eles só podiam se aventurar fora da área delimitada com permissão especial, de curta validade, de difícil obtenção. Esse confinamento forçado prevaleceu até a queda do regime czarista, em 1917. Nos território da atual Ucrânia os judeus ainda viviam em cidades em shtetls, onde eram a maioria da população. De acordo com o censo oficial de 1847 por volta de 600 mil judeus viviam no território da atual Ucrânia, mas acredita-se que eram mais de 900 mil. Suas vidas não haviam mudado, continuavam a falar o iídiche e seus filhos estudavam nos cheders2. A vida ainda girava em volta das sinagogas, dos Rebes, das leis judaicas e das festas do calendário judaico. No decorrer do século 19, progressivamente, os judeus dos vilarejos migraram para povoados e cidades maiores, onde, em muitos casos, se tornaram um amplo segmento das classes pobres trabalhadoras.
Súditos dos czares, os judeus dos territórios ucranianos (com exceção dos judeus da Galícia que estavam sob o domínio austro-húngaro) estavam sujeitos a todas as leis e imposições promulgadas pelo governo imperial. Em 1804, Alexandre I promulga o “Estatuto dos Judeus”. Grande parte das medidas visava sua “russificação”. Outro estatutos atacava as bases econômicas da população judaica, proibindo-a de arrendar terras, comercializar bebidas alcoólicas, inclusive dirigir tabernas. Milhares de judeus ficaram de um dia para outro sem meios de sustento. O governo czarista queria convencer os servos de que sua vida miserável e sofrida era “consequência” das atividades econômicas dos judeus, e não de sua exploração por nobres latifundiários.
É difícil dizer qual dos czares russos foi pior para os judeus. Mas, não há dúvida de que Nicolau I foi um dos piores. Odiava todas as minorias mas, em particular, os judeus. Entre outras medidas que atingiram a população judaica Nicolau I reduziu ainda mais drasticamente a área de residência permitida aos judeus, proibiu o uso de vestuário tradicional judaico e do uso da língua iídiche. Ele foi o responsável pelos famigerados “Decretos Cantonais” publicados em 1827. Era obrigatório para todos os homens do Império se alistar a partir de 18 anos, com a duração de 25 anos, o decreto determinava, porém, que os judeus se alistassem aos 12 anos e, até completarem 18 anos, vivessem em escolas “cantonais”. O objetivo era convertê-los; se resistiam às pressões psicológicas, eram submetidos a cruéis castigos. Em 1844, o czar aboliu as kehilot e colocou os judeus diretamente sob a supervisão da polícia e das autoridades municipais.
A situação dos judeus apresentou alguma melhora com a subida ao trono do Czar Alexandre II (que reinou de 1855 até 1881), que iniciou de imediato reformas para implantar um sistema de produção capitalista incentivando a indústria, o comércio e a construção de uma rede de estradas de ferro. Em 1861, emancipou os 47 milhões de servos russos.
Ninguém tinha mais esperanças no novo Czar do que os 3 milhões de judeus que viviam na Cherta. Durante seu reinado: o odiado alistamento compulsório foi reduzido para seis anos, e foi abolido o “acantonamento” dos jovens judeus. Em 1865, permitiu que os chamados judeus “úteis” – comerciantes, banqueiros, artistas e artesãos qualificados e os que tinham curso superior – se estabelecessem na própria Rússia, pois o Czar queria que o capital e o talento judaicos fossem usados para o desenvolvimento da economia de seu império. Comunidades judaicas formadas por grandes comerciantes, financistas, industriais, artistas e acadêmicos surgiram em várias cidades, principalmente em Odessa. Esses judeus vestiam-se seguindo os padrões ocidentais, falavam russo e seus filhos frequentavam escolas russas, e muitos adotaram as ideias da Haskalá.
Nas duas últimas décadas do governo de Alexandre II, a Rússia vivenciou um impressionante desenvolvimento econômico. Empresários judeus destacavam-se no comércio e no sistema bancário. Graças a seu acesso ao capital e às relações internacionais, eles estabeleceram as bases do moderno sistema financeiro da Rússia e foram responsáveis pela construção e financiamento de 75 % do sistema ferroviário do país.
Mas, nuvens pretas se avizinhavam da população judaica. Na década de 1870, Alexandre II deu uma guinada reacionária adotando ideias do nacionalismo eslavo, que pregava uma volta aos valores russos e desprezava qualquer ideia liberal. Como era de se esperar, os judeus foram os grandes alvos da nova política. Até início do século 20, foi-se gradualmente acumulando contra eles uma enorme massa de legislação discriminatória.
A fase relativamente liberalizada terminou abruptamente em 1881, quando Alexandre II foi assassinado por revolucionários. Seis semanas após a sua morte, por ocasião da Páscoa, inicia-se, no sul da Ucrânia, uma onda de violência. Os pogroms duraram dois anos, espalhando terror e derramamento de sangue por cerca 150 localidades. Enquanto matavam os judeus e suas propriedades eram saqueadas e destruídas, a polícia e o exército eram mantidos afastados, por vários dias, antes de intervir.
Segundo vários historiadores, os pogroms foram iniciados, acobertados ou organizados pelo ministro do Interior. Na época, o governo russo negou qualquer responsabilidade, mas não há dúvida de que se não há “provas” de uma participação direta do governo, há certeza, no mínimo, de sua conivência, haja vista o alastramento rápido e simultâneo dos pogroms por toda a Rússia. Os oficiais do governo cinicamente justificavam-nos, afirmando que eram “culpa” dos próprios judeus, já que não passavam de “uma explosão de raiva dos camponeses contra a população judaica”.
Em 1882, o governo czarista deu mais um passo contra a população judaica. O novo conjunto de leis, intitulado as “Leis de Maio”, era extremamente discriminatório e cruel, restringindo ainda mais sua liberdade de movimento e de residência. Tornava extremamente difícil, senão impossível, seu acesso à educação e à atividade econômica. Os judeus russos não podiam comprar terras, ter cargos públicos, ser professores universitários. Segundo o censo de 1897 viviam nos territórios ucranianos sob domínio russo 1.927.268 judeus. Pressionados de todos os lados, a grande maioria deles viviam em condições críticas.
O choque emocional provocado pelos pogroms de 1881-82 e as Leis de Maio tiveram várias consequências. Entre outras, acelerou a formação do Movimento Sionista e a fuga de judeus russos para o Ocidente. Calcula-se que, entre 1881 e 1918, cerca de 1 milhão e 300 mil judeus deixaram o Império Russo. Com a subida ao trono do novo czar, Alexandre III, o ódio aos judeus assumiu inúmeras formas, desde a organização de pogroms até a falsificação e a publicação dos famigerados “Protocolos dos Sábios de Sião”. Sob a proteção de “eslavófilos” – cujo credo centrava-se no conceito da “Santa Madre Rússia” e da “Rússia para os russos”, da Igreja Ortodoxa – que deu sua aprovação religiosa – e do governo – agindo nos bastidores – o antissemitismo se tornou um movimento bem organizado, “respeitável” mesmo.
A violência era abertamente instigada pelo governo, que passou a manipular abertamente o sentimento antijudaico das massas russas, com dois objetivos. O primeiro era tentar reduzir a população judaica da forma a mais rápida e drástica possível. O segundo, canalizar a insatisfação popular, especialmente entre os camponeses, alimentando o seu ódio contra os judeus.
O intuito do governo czarista era controlar uma onda revolucionária muito mais abrangente que acabaria eclodindo no início do século 20 e poria fim ao odiado regime czarista. Para muitos judeus, parecia o fim de seu sofrimento. Mal sabiam que era o início de outro pesadelo...
Bibliografia:
Dubnow, Simon, History of the Jews in Russia and Poland: From the Earliest Times Until the Present Day, Ed. Nabu Press, 2010
Dubnow, Simon, Works of Simon Dubnow. Kindle edition
Meir ,Natan M. Kiev, Jewish Metropolis: A History, 1859-1914 (The Modern Jewish Experience), Ed. Indiana University Press , 2010
Wynne, Suzan, The Galitzianers: The Jews of Galicia, 1772-1918, Wheatmark, 2006
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