Rosh Hashaná e a contagem do ano judaico - Jayme Fucs Bar
Como pode ser que no calendário judaico já estejamos no ano de
5783, que representa o ano (2022 -2023)? E a partir de quando começamos a contagem?
Realmente, já ouvi muitas pessoas questionarem nossa forma de
contar o tempo. Muitos me perguntam: de onde surgiu essa ideia?
O que vamos aprender ao longo dessas linhas é como esse processo de definição da contagem do ano judaico aconteceu.
Além disso, vamos entender melhor o calendário judaico e as modificações que ele sofreu em seus 3.500 anos de história judaica.
O que sabemos é que no passado bíblico o Povo de Israel sempre
contava o ano em função de uma grande ocorrência histórica, que servia como princípio dos anos. Para o Povo de Israel, o evento que vai definir a contagem do ano judaico é o Êxodo do Egito.
Se tivéssemos mantido essa tradição e esse costume, estaríamos hoje no ano de 3335 [do Êxodo do Egito], que corresponde ao atual ano judaico de 5783.
Já sei que alguém aí deve estar se perguntando: como sabemos disso?
Como é possível saber que esse é o ano 3335 desde o Êxodo?
Sabemos porque está escrito!
“No segundo ano, os filhos de Israel deixaram a terra do Egito”,
essas escrituras aparecem no Livro dos Reis (I e A).
No entanto como o judaísmo é muito dinâmico e vem sofrendo
constantemente muitas mudanças, ajustes e adaptações durante a sua existência, essa tradição foi alterada no período da destruição do Primeiro Templo, em 586 antes da Era Comum, fato que levou ao cativeiro da Babilônia.
Por força da influência externa dessa primeira grande diáspora, o Povo de Israel absorveu muitos dos costumes da cultura babilônica e de toda a região da Mesopotâmia, fato que não só influenciou a contagem do tempo nesse período, mas também a própria nomeação dos meses do calendário judaico.
Muitos não sabem, mas a origem de todos os nomes dos meses do
nosso calendário atual vem do idioma acádio, e não do hebraico. Inclusive, a atual tradição de colocar o início do ano no outono tem sua origem no calendário da antiga Babilônia. Os nossos sábios adotaram esse costume durante o Exílio e o trouxeram consigo no retorno para a Terra de Israel.
Porém essa realidade mudou com a grande proeza realizada pelos
asmoneus [macabeus], que conseguiram expulsar os gregos da Terra de Israel e liberar o Templo de Jerusalém do jugo dos estrangeiros, proporcionando o retorno da liberdade e da autonomia do povo judeu em seu próprio território.
Graças a esse grande acontecimento, houve a definição de uma nova forma de contagem dos anos judaicos. A prova disso é o que está escrito no Livro dos Asmoneus: “O jugo dos gentios foi removido de Israel, e o Povo de Israel começou a escrever em livros e notas um ano para Shimon, o Sumo Sacerdote”.
Na verdade, após o fim do período dos macabeus e a conquista da
Judeia pelo Império Romano, a contagem do ano sofreu várias modificações, principalmente por influência da cultura romana. Apesar disso, podemos identificar um costume muito ligado à tradição judaica: contar os anos pela “shemitá”.
Para quem não sabe, “shemitá” é o descanso da terra cultivada depois de sete anos para que ela se recupere, o “shabat da terra”.
Essa é uma forma diferente de contagem dos anos dentro do próprio calendário judaico, comprovada nos pergaminhos de Qumran. Também sabemos que esse formato de contagem foi usado durante todo o período da Mishná, séculos II e III da Era Comum.
Após a destruição do Segundo Templo no ano 70 da Era Comum,
houve um grande vácuo no mundo judaico quanto à forma e ao costume da contagem dos anos, mas sabemos que a manutenção de uma tradição persistiu em certos lugares, onde judeus passaram a contar os anos a partir da destruição do Segundo Templo.
No entanto quando os judeus começaram a contar os anos judaicos da forma que conhecemos hoje?
Na verdade, esse processo de redefinição somente começou depois da conquista da Judeia pelos árabes no ano 630 da Era Comum, quando a Terra de Israel deixou de ser dominada pelo Império Bizantino.
Toda essa problemática envolvendo a contagem dos anos gerou uma discussão que por muito tempo procurou definir a resposta para a pergunta: “A nova contagem dos anos do novo calendário judaico vai ser em função da criação do mundo ou a partir da criação do primeiro ser humano?”.
O que vamos ver será uma diversidade de ideias e de controvérsias
sobre o assunto, entre elas a opinião do famoso sábio e Rabino Saadia Gaon, que foi um dos grandes opositores da definição do calendário judaico através da criação do mundo.
Saadia Gaon formulou seu raciocínio com base nas provas e nos
cálculos extraídos do que está escrito na Torá, segundo os quais o ano judaico atual, 5783, tem como referência a criação do ser humano, e não a criação do mundo.
Existe outra definição criada pelo Rabino Eliezer. Segundo ele, “o
primeiro ser humano — Adão e Eva — foi criado em Rosh Hashaná,
que é o primeiro dia da criação do mundo”.
Talvez essa afirmação tenha gerado uma grande confusão, pois essa é uma ideia bastante contraditória, mas o interessante é que muitos interpretam essa afirmação do Rabino Eliezer de forma diferente. Segundo essa interpretação, o sentido da criação do “mundo” está relacionado com a criação do “mundo vindouro” ou o “mundo” humano!
Por sua vez, os defensores da contagem dos anos judaicos a partir
da criação do mundo usam como referência uma tradição do Talmud, que diz que a contagem do ano judaico teria sido mostrada a Moisés por Deus durante as duas semanas antes do início do Êxodo, numa lua nova do mês de Nissan. Essa revelação teria acontecido 2.448 anos após a criação do mundo.
Certo ou não, o importante é entender que os conceitos de tempo
no período antigo eram muito diferentes de nossa forma de entendê-lo hoje. Por exemplo, o nascimento de uma pessoa [aniversário] era contado e comemorado no dia seguinte à data do nascimento! Explicando melhor: se uma pessoa nasceu no dia 16 de setembro , ela comemoraria o seu aniversário sempre no dia seguinte: 17 de Setembro!
De acordo com o pensamento judaico, o ano zero não existe.
Essa discussão se tornou um verdadeiro grande conflito durante os
séculos X e XI, com a divisão do mundo judaico em duas vertentes.
A discussão não era em relação ao número do ano judaico em que os judeus estavam, mas sim sobre qual parâmetro deveria permanecer na contagem dos anos. Os judeus da Europa adotaram o conceito da contagem do ano judaico através da criação do mundo, mas os judeus do Oriente vão adotar o parâmetro da criação do ser humano.
Com o tempo, a discussão acabou se resolvendo com o surgimento
de certo consenso, segundo o qual a contagem do ano judaico está relacionada à criação do ser humano, e não à criação do mundo!
Porém, ainda podemos ler em vários textos e artigos, ou até ouvir de vários rabinos, que a contagem do ano judaico se dá através da criação do mundo!
Todavia deixo a vocês definirem o seu próprio critério! Estamos a
5.783 anos da criação do mundo ou da criação do ser humano?
Contudo ainda existe uma explicação que procura responder uma
importante pergunta sobre esta contradição: como pode ser que o mundo foi criado em seis dias?
Importante entender que essa necessidade de estabelecer uma nova contagem no calendário judaico que aconteceu somente na Idade Média, tinha muito mais sentido politico e pedagógico do que procurar uma resposta logica para essa questão. A ideia era mostrar aos próprios judeus a sua antiguidade frente ao mundo cristão e muçulmano e menos se esse cálculo era exato ou não!
Todavia não se esqueça de que também há aqueles que ainda mantêm a contagem do ano judaico pelo costume mais antigo, registrado na Torá, que foi a saída do Povo de Israel da terra do Egito 3.335 anos atrás.