JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Passaram-se muitas décadas sem que eu ouvisse cantar Vaisse blumen (Flores Brancas).
E, eis que no belo ato em memória de Horácio Itkis Schechter, grande ativista do ICUF no Brasil, movimento progressista laico judaico, o Coral da ASA canta a música.

Segundo a tradição milenar judaica, ocorre, no trigésimo dia após a morte, uma cerimônia religiosa denominada Shloishim, na qual se recitam o Kadish e o El mole rahamim. Recitam-se estas duas orações, também, no Iortsait, isto é, nos aniversários de falecimento da pessoa.

Mas esta tradição sofre rupturas no final do século 19, na Pale, Zona de Residência permitida aos judeus que viviam no Império Russo e que abrangia os atuais territórios da Lituânia, Letônia, Bielo-Rússia, Ucrânia, Moldávia e parte da Polônia. A grande maioria da população judaica mundial residia naquela época neste território. Embora as práticas religiosas ortodoxas hassídicas ainda fossem o padrão naqueles cantos remotos da Pale, separados do vasto mundo devido a meios de comunicação e transporte precários, gradualmente iam sendo introduzidos os ecos da Haskalá.

Por outra parte, na última década do século 19, houve um grande desenvolvimento capitalista na Rússia e, de acordo com Lênin, em consequência, dobrou o número de operários fabris. Aliado a esse fato, há uma grande ascensão das lutas sociais e, no limiar do século 20, os cárceres encontravam-se repletos de milhares de revolucionários, ansiosos por liquidar o despotismo reinante. Uma parcela dos judeus, como população essencialmente urbana, estava envolvida nesse movimento.

Como filhos legítimos do Iluminismo e da Revolução Francesa, surgem no meio judaico nessa época, o movimento sionista fundado por Theodor Hertzl e o movimento bundista. O primeiro é uma manifestação tardia da aspiração pela cidadania em sua versão liberal, na tradição girondina, em que prevalecem os direitos de primeira geração, ou os direitos civis, a questão democrática e a questão do Estado-Nação. O segundo, na tradição jacobina, em sua versão marxista, privilegia os direitos de segunda geração, isto é, os direitos sociais, conquistados e definidos por meio das lutas dos trabalhadores desde o século 19.
O BUND, partido operário socialista judaico da Rússia, Lituânia e Polônia, acabou sendo o grande representante das massas proletárias daquela região. Este movimento tinha um profundo viés culturalista e foi responsável pelo grande desenvolvimento do ídish, ou mame loshn, língua cotidiana da gente do povo, como idioma literário moderno, em contraposição ao hebraico ou loshn koidesh, língua das Sagradas Escrituras na qual eram versados os eruditos religiosos, advogada pelos sionistas como idioma moderno dos judeus. De acordo com Tuvie Grol, paralelamente à atividade política e sindical, o BUND realizava um trabalho ramificado e multicolorido nas áreas de educação e cultura, tendo criado uma maravilhosa rede de escolas populares judaicas, bibliotecas, associações culturais, clubes esportivos, colônias de férias, jornais, boletins e revistas.

Este movimento foi fundado por rapazes das ieshivot (escolas que formavam os eruditos das Sagradas Escrituras). Na medida em que eles abandonaram a religião, na tradição marxista da obra A religião, ópio do povo, buscou-se uma nova linguagem absolutamente laica para dirigir-se às massas. Todas as tradições de cunho religioso foram banidas. Muitos foram arrebatados de maneira avassaladora pelo anticlericalismo e iam pregar contra a religião nas portas das sinagogas nos dias das grandes festividades.

A única festa que passou a ser comemorada como a festa da liberdade de um modo mais amplo, foi o Peissach, que, segundo a tradição, lembra o êxodo do Egito. Não por acaso esta data foi escolhida para o início do Levante do Gueto de Varsóvia, em 19 de abril de 1943, e hoje adquire um caráter mais universal.
No que concerne à vida e à morte, os rituais tradicionais também foram abandonados. E na cerimônia do Shloishim, ao invés do Kadish e do El mole rahamim, passou-se a entoar a canção Vaisse Blumen.

Infelizmente, o papel não aceita a melodia lindíssima, muito apreciada por Horácio Itkis Schechter. Mas vou concluir este texto com uma tradução da letra onde transparece o caráter social. O tema recorrente das canções de cunho social da época é a miséria e o sofrimento.
Nunca soube quem são os autores da canção, atualmente quase fadada ao esquecimento como tudo que diz respeito à cultura ídish e às opções socialistas não sionistas. Pedi ao amigo Sylvio Band que pesquisasse a autoria da canção, mas não encontramos nada a respeito. Ei-la: uma letra muito simples, fácil de ser assimilada pela gente simples do povo com uma melodia belíssima.

“Flores brancas brotam, em homenagem ao teu shloishim – ou ao teu Iortzait - da tua morte"
“Flores brancas brotam, para o shloishim de tua morte”
“Flores brancas brotam, após tanta miséria e sofrimento, miséria e sofrimento”
“Após tanta miséria e sofrimento, após tanta miséria e sofrimento,”
“Descansa no túmulo, descansa no túmulo silenciosamente.”

Dina Lida Kinoshita é professora da USP.

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