JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Cabala e modernidade Moacyr Scliar* Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982-‐‑3053.

É difícil dizer quando, exatamente, começa o período da História que conhecemos como
modernidade, e que em geral associamos a grandes mudanças de natureza social, política, econômica,
cultural, científica: os descobrimentos marítimos, a imprensa, a pólvora, o fim do feudalismo, o
surgimento do estado moderno, o Renascimento, a emergência do método científico. Mas não apenas
os limites temporais são confusos. Na verdade, a modernidade européia não se distingue com nitidez
do passado medieval. Durante muito tempo haverá uma superposição de concepções, de
conhecimentos, de práticas. A modernidade é pois uma época confusa, um daqueles período em que,
como diz Antonio Gramsci, o novo ainda não nasceu mas o velho ainda não morreu; em que a
astronomia convivia com a astrologia, a química com a alquimia e a ciência com a magia e a
superstição. É a época do doutor Fausto, capaz de vender a própria alma ao diabo em troca de
conhecimento, inclusive, e principalmente, o conhecimento esotérico; o doutor Fausto, que se torna
personagem de numerosas obras, notadamente a peça teatral de Christopher Marlowe encenada pela
primeira vez em 1594. É a época de John Dee (1527-­‐‑1508), eminente astrônomo, o maior matemático de
sua época, professor universitário -­‐‑ mas também astrólogo e alquimista. É a época de Cornelius
Agrippa von Nettensheim (1486-­‐‑1535), médico, historiador e escritor, mas adepto do ocultismo. Época
de Marsilio Ficino, médico e cultor de textos herméticos e tantos outros.
Não é de admirar, portanto, que a Cabala (do hebraico kabalah, recepção, no sentido de doutrinas
recebidas da tradição), tenha, nesse período, despertado grande interesse. Antiga expressão do
misticismo judaico, a Cabala compreende um conjunto de crenças, que giram em torno da união do
universo finito ao Criador infinito, através das emanações que procedem da divindade como raios
vindos de uma fonte de luz. A Cabala cultiva também uma numerologia baseada na particularidade
de que, em hebraico, os números correspondem a letras; assim, certas palavras significativas são
expressas em números, que por sua vez tornam-­‐‑se também significativos. O exemplo clássico é o da
palavra “hai” (esse h é aspirado), vida, que corresponde ao número dezoito, considerado, por isso, de
bom augúrio. À época do Renascimento, foi criada, por Isaac Luria (1534-­‐‑1572), uma nova escola
cabalística. No começo, diz a Cabala luriânica, só existia o Criador; sua presença enchia o universo,
mas por um processo de concentração, de retração (tzimtzum, em hebraico), permitiu o surgimento do
universo. Foi criado então o homem primordial, Adam Kadmon. Dele, saíam raios de luz divina que
deveriam reencher vasos ou recipientes que, contudo, se partiram. É necessário, então, um processo de
restauração (tikun). Da mesma forma, quando o Adão bíblico foi criado, continha em si todas as almas;
com o pecado, elas se dispersaram, ficando em cativeiro nos corpos humanos, mas ansiosas por
retornas à fonte. É a metáfora do exílio, tão compreensível na tradição judaica.
A transição do feudalismo para a modernidade mostrou-­‐‑se muito favorável à disseminação das idéias
cabalísticas. Como observa Gershom Scholem, o grande estudioso da Cabala no seu clássico livro
(Cabala, Rio de Janeiro, Ed. Koogan, 1989, trad. Hinda Burlamaqui, Júlio Cesar C. Guimarães e Maria
Lúcia W. P. Braga, p. 55), nesta época, “(...) a Cabala disseminou-­‐‑se pela maioria das comunidades da
Espanha e também na Itália e no Oriente” uma vez que os portões estavam amplamente abertos para a
literatura mística. E não estamos falando apenas do judaísmo; a Cabala fascinava humanistas cristãos
como Guillaume Postel, Johann Reuchlin e Pico della Mirandola, para quem nenhuma ciência oferecia
maior garantia da divindade de Cristo do que a Cabala. As numerologias judaica e pitagórica dão
novo e adicional significado aos fundamentos do cristianismo. A Trindade é santa por causa do Pai,
do Filho e do Espírito Santo, mas também por causa do número três. Os quatro evangelhos são
importantes porque são narrativas sagradas, mas também porque são quatro.

Havia  aí  também  um  aspecto,  digamos,  mais  prosaico,  menos  espiritual.  Esta  é  uma  época  em  que  o  
número  ganha  extraordinária  importância.  A  introdução  dos  algarismos  arábicos,  que  então  ocorre,  
fez  parte  do  processo  de  renovação  que  caracterizou  o  advento  da  modernidade.  Mudança  que  aliás  
não  se  fez  sem  conflito;  em  Florença,  no  ano  de  1299,  os  números  arábicos  foram  proibidos.  Mas  a  
verdade  é  que  os  cálculos  ficaram  consideravelmente  facilitados  bem  como  as  técnicas  contábeis  -­‐‑  em  
1494  aparecia  o  que  pode  ser  considerado  o  primeiro  tratado  de  contabilidade,  de  Luca  Pacioli,  frade  
franciscano  que  fora  tutor  dos  filhos  de  um  mercador  de  Veneza.  A  contabilidade  era  apenas  parte  de  
uma  revolucionária  mudança  de  mentalidade,  resultante  do  incremento  das  transações  financeiras  
(esta  é  a  época  em  que  surgem  os  bancos  e  as  bolsas  de  valores),  do  novo  espírito  científico,  das  
viagens  e  dos  cálculos  a  elas  ligados.  As  numerologias  eram,  pois,  bem  acolhidas.    
  
Quanto  ao  misticismo  que  é  inerente  a  Cabala  este  tinha,  e  tem,  um  público  certo.  É  no  misticismo  que  
as   pessoas   buscam   uma   defesa   contra   as   agruras   da   vida,   muitas   vezes   incompreensíveis.   O  
misticismo  dá  um  sentido  à  existência.  E  essa  busca  de  um  sentido  é  inerente  à  condição  humana,  
independente  de  época  e  de  lugar.  
-­‐‑-­‐‑-­‐‑-­‐‑-­‐‑  
  
*  Moacyr  Scliar  é  escritor  e  médico.  Membro  da  Academia  Brasileira  de  Letras  e  autor  de  vários  livros,  
entre  eles:  O  centauro  no  jardim,  A  mulher  que  escreveu  a  Bíblia,  A  estranha  nação  de  Rafael  Mendes  e  A  
orelha  de  Van  Gogh,  Os  vendilhões  do  templo.

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Cabala e modernidade Moacyr Scliar* Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, out. 2008. ISSN: 1982-‐‑3053.

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