O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana
PARASHÁH VAYIGÁSH
Carmel Vaisman
Trad. Davy Bogomoletz
Na Parasháh Vayigásh encontramos pela primeira vez, na Toráh, uma referência explícita à questão do Karma. Yosséf apressa-se a tranqüilizar seus irmãos, dizendo que não está zangado com eles por terem-no vendido como escravo ao Egito. Ele entende que tudo fazia parte dos planos de Deus, e que era necessária sua chegada a esse lugar, a fim de cuidar da questão econômica nos anos da grande fome. Mas, como já foi dito, a fome era apenas uma metáfora. E o Karma não é apenas pessoal, pertence também a um grupo de pessoas, a um povo que está para nascer. O livro do Gênesis nos colocou em contato com energias e estados de consciência que cada um de nós encontra em sua própria alma através dos episódios tão simples que ocorrem nos conflitos dentro da família. No livro do Êxodo, ao qual chegaremos em boa hora daqui a duas semanas, o grau de complexidade sobe um andar e nos veremos falando do desenvolvimento da consciência coletiva, o nascimento de uma nação.
Na Parasháh atual, 70 almas, que compõem a família de Yaakóv, descem ao Egito (MITZRÁYIM), o lugar estreito (TZAR) da alma, a sede dos instintos (YÉTZER), ao cadinho de fusão onde eles serão purificados para dali saírem como um povo, como uma verdadeira coletividade. Até este momento, estudamos conflitos inter-pessoais: Desde o “Serei eu o guardião de meu irmão?”, de Caim, aprendemos sobre uma série de situações de união e desunião entre irmãos e pais. Yehudáh, neste momento, simboliza o final desse percurso, ao assumir responsabilidade total por Binyamin e colocar-se como aquele que garante a sua integridade. Esta lição já aprendemos. Esse relacionamento com o outro é a base que precisa existir entre todos nós, no modelo de coletividade judaica, com o qual nos desenvolveremos no livro do Êxodo, ao passarmos do nível inter-pessoal para o nível coletivo.
Yehudáh e Yosséf representam o ‘casamento’ entre as sefirót Yessód e Malchút, e Binyamín é a ponte que torna isso possível. Essa união encontra sua explicitação na Haftaráh da Parasháh, no livro de Ezequiel, quando o profeta toma uma vara que simboliza Yehudáh e outra que simboliza Yosséf, e as une. Muitas vezes a missão essencial e a matéria da qual você é feito quando alcançar o desenvolvimento máximo, tornam-se visíveis justamente quando você se dispõe a sair de dentro de si, a descartar a casca do ego, e assumir responsabilidade ilimitada por outra pessoa. O filósofo Emmanuel Lévinas acredita que esse é um dos temas centrais da filosofia judaica, e a meu ver na presente Parasháh isto é exemplificado à perfeição.
A “queda para fins de ascensão”, ou a “partida para poder voltar”, como mecanismos de desenvolvimento da espiritualidade, já conhecemos por histórias anteriores da Toráh. De fato, mesmo a história da saída do Paraíso foi o início de um processo desse tipo. Agora, no entanto, nos é exigido o próximo passo: Encontrar a nossa ‘sombra’, a total profundeza do nosso inconsciente, a escuridão, a divindade que se mostra nas ‘visões noturnas’ de Yaakóv nesta Parasháh. O destino já era conhecido por antecipação, sendo explicitado nas promessas a Abrahão, cuja semente irá viver numa terra estranha. O ‘exílio’ (GALÚT) é parte do nosso Karma enquanto povo, e também é parte da nossa alma, e tem esse nome (em hebraico) porque há nele a oportunidade para a descoberta (GUILÚI) de si mesmo. Conhecem esse ponto em que, justamente quando abandonamos aquele ou aquilo que tínhamos como óbvio e inquestionável é que nos damos conta de seu verdadeiro papel em nossa história?
No modelo judaico, o primeiro passo para a liberdade consiste em aprender a escravidão
Na viagem da alma em direção à consciência de si mesma não é possível desenvolver-se sem concordar em entrar nesse lugar representado pela dimensão ‘Mitzráyim’. Yosséf é o batedor que vai na frente do povo, a fim de realizar primeiro essa viagem e tornar-se um exemplo: é preciso permitir-se cair (no poço) e vender-se (ser vendido, ser preso, tornar-se escravo), vestir a sombra da alma como roupa, conhecê-la, a fim de compreender como libertá-la desde dentro. E então, no momento adequado, “não pôde Yosséf controlar-se [diante dos] que estavam à sua volta, e gritou ‘Tiram todos de perto de mim’, e ninguém [mais] esteve com ele quando se revelou a seus irmãos.” No momento certo, não estamos mais identificados com a casca que é o nosso ego, tiramos de cima de nós todas as energias estranhas a nós mesmos, e nos colocamos na situação com uma consciência nua, com o nosso eu verdadeiro, para fazer a ligação com a nossa história verdadeira: “Eu sou Yosséf. Está nosso pai ainda vivo?” Não existe nada que a consciência deseje mais do que a liberdade. E no modelo judaico, o seu primeiro passo nessa direção é a aprendizagem da escravidão. O que aconteceu a Yosséf é um modelo em ponto pequeno do que acontecerá com todo o povo, para poder descobrir-se um povo.
O radical ‘G SH’ aparece tanto no título ‘Vayigásh’ (‘Aproximou-se’), quando Yosséf aproxima-se de Yehudáh, quanto no momento em que ele se revela a seus irmãos, e diz-lhes: “Gash-na elái”, “Aproximem-se de mim”. E também surge no nome da terra de Góshen, vizinha ao Egito, que é o território dado aos filhos de Israel que desceram ao Egito. Esse radical indica, por um lado, grande proximidade, como nas palavras ‘GUISHÁH’ (aproximação, abordagem) e ‘NEGUISHÚT’ (acessibilidade, a qualidade daquilo de que é possível aproximar-se), e por outro o potencial de ‘LISHGÓT’ (errar) e ‘LINGÓSH’ (oprimir), escravizar ou ser escravizado, na linguagem bíblica. No título da Parasháh, portanto, encontramos toda a história, o vínculo inerente entre aproximação e alienação. Há ali o potencial, também, que existe em todo tipo de trabalho que se diz capaz de levar-nos para mais perto de nós mesmos, mas que pode se transformar em mais uma casca para o nosso ego, em algo a que eu deva me escravizar, em vez de libertar a mim mesmo por seu intermédio.
O povo de Israel irá escravizar-se até perder a si mesmo no Egito, até chegar a hora do novo despertar da consciência de si. Nesta Parasháh nos é dado saber que Yosséf compra quase todo o Egito, e ‘comprar’ é o oposto de ‘vender-se’ ou ‘alienar-se’. Significa tornar-se dono, responsabilizar-se e reunir, e é um dos símbolos da liberdade. Obviamente, hoje em dia nos exploram cinicamente quando nos ‘vendem’ a “liberdade” de comprar como um sucedâneo da liberdade de ser, mas esse, possivelmente, é um dos estágios do nosso Karma enquanto humanidade, e uma nova fase das mesmas energias.
O Egito (MITZRÁYIM) representa também o lugar do impulso (YÉTZER). O impulso não é bom nem mau em si mesmo. Tudo depende do contexto. Quando entramos por inteiro no mundo espiritual e nos desligamos inteiramente de nossos impulsos, temos dificuldade em criar. O judaísmo não estimula o monasticismo sob nenhuma forma, nem uma vida espiritual que não esteja conectada à terra. O nosso modelo consiste em um pouco de cada coisa, num estrutura saudável e harmoniosa. Já repararam que ao longo de todo o livro do Gênesis as mulheres têm dificuldade em dar à luz? É sempre necessário um esforço e uma oração e um bom motivo para abrir o seu útero, e isso não é auto-explicativo, tendo havido a bênção de “frutificai (sede férteis) e aumentai e enchei toda a terra.” Reparem, então, como termina a Parasháh Vayigásh, quando se completa a emigração para o Egito (na terra de Góshen): “Assentaram-se ali, e foram férteis e cresceram muito”. E aqui isso
"...parece fácil e inteiramente óbvio.
Na verdade, no capítulo I do livro de Êxodus mesmo os decretos do Faraó são impotentes para frear o ímpeto reprodutivo desse povo. A abertura do útero justo nesse lugar estreito (TZAR) ao qual o povo desce a fim de escravizar-se e libertar-se transforma toda a terra do Egito num grande útero para o povo que irá nascer, um lugar estreito e escuro ao mesmo tempo ligado a ‘YÉTZER’ (impulso, instinto) e ‘YETZIRÁ’ (criação). Aqui é possível cair em grande estilo, mas também é possível desenvolver-se – porque onde não há risco, não há chances (“Quem não arrisca, não petisca”...). Algumas das instituições religiosas atuais não estão mais interessadas em correr riscos, seu propósito é conservar. Mas quando lemos a Toráh encontramos nela a toda hora esse tipo de risco: a entrada em lugares escuros é parte integrante do processo de desenvolvimento, pois caso contrário não teríamos uma Toráh Viva, e sim uma ‘lata de conservas’.
Qualquer lugar em que você cair, cairá sempre no colo de Deus.
Uma amiga me perguntou outro dia como ela poderia amar a si mesma num momento em que está odiando a si mesma, sentindo-se impotente e com uma enorme pena de si. Mesmo nesse momento ela é digna de se amar? Um dos grandes segredos na Cabaláh é o que de que você nunca está desligado do Divino dentro de você. Se você está no inferno, se você se deixou levar ao sacrifício, o Deus está com você. Nesta Parasháh Deus diz explicitamente a Yaakóv: “Contigo descerei ao Egito, e juntos dali subiremos.” O verdadeiro pecado e o lugar mais triste de todos é aquele onde acreditamos que, se não estamos no nosso caminho correto, estamos separados da Compaixão (Héssed). Quando acreditamos que Deus só está conosco quando somos bons. Mas essa separação não acontece de fato. Somos nós que nos desligamos do Rio da Abundância (SHÉFA), do rio que sai do Éden, em razão das nossas crenças equivocadas. Essa frase eu a ouvi pela primeira vez do Rav Gafni: “Qualquer lugar em que você cair, cairá sempre no colo de Deus.”
Aquele poço em que Yosséf caiu, e que era apenas uma metáfora para o Egito, é parte do nosso Karma, e tem um papel importantíssimo na nossa evolução. Por isso devemos aprender o segredo contido em ‘Vayigásh’ – a delicada dança entre ‘NEGUISHÚT’ (acessibilidade) e ‘NEGUISHÁH’ (opressão), entre ‘GUISHÁH’ (aproximação) e ‘SH’GUIÁH’ (erro), quando nos encontramos naqueles lugares escuros da alma. E esses lugares não são escuros no sentido de um castigo, mas no sentido de um útero que espera gerar um eu-mesmo novo e livre (AFÉL – escuro – tem as mesmas letras de PÉLE – milagre). E como se atravessa esse desafio? A escuridão do inconsciente espera por uma pequena luz, pela vela minúscula da consciência pessoal, que fará o máximo para alcançar a liberdade, a fim de tornar-se parte da criação de uma consciência coletiva responsável e iluminada.
Shabát Shalom.
Abração.
Davy.
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davy ,Shabat shalom. nao entendi.O texto é teu ,vc traduziu,vc comentou?Podes me esclarecer??
Qdo puder comente o meu utimo artigo d epreferencia de público e com ideias proprias ,acho q devemos nos dois ir ensinando a debater e a pensar com a propria cabeça.te aocnselho de,ao inves de responder escrever a resposta como reflexao e postar no FORUM assim atinge mais gente.vamos lá,Shabat shalom
Alan Davy, amei sua tradução e sua escolha acertada de um artigo/comentário tão bom. Como aquele rebi Lubavich de uma das milhares de histórias chassídicas originais, vc., com sua escolha, à distãncia,tornou meu Shabat ímpar - há mt. não estudava a parashat hashavua com tanta itlahavut. Eu e minha Mariza ficamos maravilhados e debatemos juntos o texto - surgiram grandes estrapolações....
Chazak Ubaruch ve Shabat Shalom
Saudades.
Elias
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