JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Hermann Cohen nasceu em 1842 e, com pouco mais de 30 anos, ingressou no corpo docente da Universidade de Marburgo. Em 1876, substituiu a Lange, que se incumbira de trazer para a universidade o movimento de volta a Kant iniciado por alguns cientistas. Tornar-se-ia a principal figura do neokantismo, a que deu uma feição especial, e talvez
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mesmo da filosofia alemã dos fins do século à época da primeira guerra mundial.
Dos fins da década de setenta ao início do século, publicou alguns livros, entre os quais O princípio do método infinitesimal e sua história (1883). Todavia, sua obra madura aparece a partir da publicação do primeiro volume do Sistema de Filosofia, intitulado Lógica do conhecimento puro (1902), a que se seguem Ética da vontade pura (1904) e Estética do sentimento puro (1912). Depois de haver concebido o sistema, refundiu uma de suas obras da primeira fase, que viria a tornar-se mais conhecida, A Teoria da Experiência de Kant.
Cohen teve em Ernst Cassirer um de seus mais próximos colaboradores, responsável pela difusão de suas ideais no exterior. Os três primeiros volumes do livro de Cassirer O Problema do Conhecimento constitui uma exposição do ponto de vista de Cohen acerca da obra de Kant, seus antecedentes e consequências. Hermann Cohen faleceu em 1918.
Cohen, inicialmente, é partidário do método psicológico. Mas, desde 1871, quando publica a sua primeira obra sobre Kant, Kants Theorie der Erfahrung, inicia a elaboração do método transcendental, que considera essencial no kantismo. No desenvolvimento de seu pensamento, procura mostrar a estreita relação entre as ciências e a filosofia transcendental, insistindo principalmente sobre a significação do cálculo infinitesimal. Propondo-se desenvolver até às últimas consequências o método transcendental kantiano, atém-se mais ao espírito que à letra do kantismo. Sua orientação fundamental acha-se determinada pelo propósito de considerar filosoficamente o conjunto da cultura, que para ele se resume na ciência (saber natural, física e matemática), na ética e na estética, religadas pela unidade da
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consciência. “Cohen dá ao idealismo uma direção inteiramente objetiva, uma filosofia na qual o problema da dualidade do pensamento e do objeto fica resolvido por sua identificação. Kant havia distinguido entre o dado e o posto. Cohen admite somente o posto, porém a este equivale, mais que o ato subjetivo do pensar, o conteúdo objetivo do pensamento, que deste modo se converte em fundamento do objeto. O pensamento não é para Cohen o produto de uma atividade subjetiva; é a estrutura interna do objeto da ciência, o conteúdo da consciência e por sua vez a do saber. Portanto, se o ser é o pensamento, também o pensamento é aquilo que se acha posto no ser por constituir seu conteúdo essencial.” (5)
Adota o suposto kantiano de que o verdadeiro conhecimento de tipo científico se encontra nas ciências físico-matemáticas, devendo por isso mesmo todo e qualquer conhecimento acomodar-se à sua estrutura. Assim, a teoria da ciência ou física será para ele o fundamento e a primeira parte da filosofia. Isto porque, na sua concepção, é a física – que tem como órgão a matemática – quem lhe fornece o ponto de partida sem o qual o cógito é levado à desviação psicológica, ao misticismo ou ao ceticismo.
Entende, por outro lado que, em filosofia, a história e a teoria são de fato indissociáveis. A história fornece à teoria problemas a elucidar, soluções a serem experimentadas; a teoria seleciona entre a massa das obras do passado os problemas decisivos e as soluções importantes. Por isso, a filosofia não tem que começar do zero em cada cabeça, mas reatar-se ao esforço anterior, tratando dos problemas e dos métodos em função de novos dados. O kantismo realiza esta ligação e, o neokantismo, este reatamento.
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Com este pensamento e tendo como princípio metodológico fundamental a ligação sistemática dos problemas históricos e teóricos – visto que uma oposição de princípios levaria à incompreensão e ao erro histórico – Cohen propõe na sua Teoria da Experiência de kant, nascida das polêmicas entre Trendelemburgo e Kuno Fisher, uma nova interpretação da Crítica da Razão Pura, na qual desenvolve a noção do a priori procurando mostrar a sua natureza e o seu estabelecimento, tal como fora feito por Kant. Esta posição decorre, segundo Dussort, do entendimento de que as soluções encontradas até então pelos estudiosos do assunto são insuficientes, falsas, ou partem de formulações baseadas em contra-sensos, seja na tentativa de estabelecer sua própria metafísica em detrimento de Kant, ou contra ele (Schopenhauer, Trendelemburgo, Kuno Fischer); seja desenvolvendo uma antropologia ou uma psicologia julgadas insuficientes em Kant (Fries, Bona Meyer); seja viciado na base pela teoria das faculdades (Herbart).
A unidade entre os pensadores acima referidos, no particular da natureza do a priori, parece evidente. Eles entendem, segundo Cohen, que o a priori kantiano é um modo de representação inata ao ser humano que só conhece a realidade tal como ela se apresenta e não como ela é, o que se lhe afigura um erro metodológico de princípio, “aquele de isolar, ou mesmo de escolher tal ou qual momento da argumentação kantiana quando o seu sentido e a sua validade só residem no seu conjunto e no seu movimento. Dois grandes tipos de erro devem ser evitados: isolar cada um dos argumentos da Estética, porque em realidade o seu valor depende de sua organização sistemática; isolar a estética da lógica, que é seu complemento orgânico e necessário. (...) É o estudo das formas do entendimento que esclarece retrospectivamente
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o das formas da sensibilidade. Não saberíamos separá-los nem que fosse pelo fato de ser o mesmo objeto que é dado e pensado.” (6)
Por isso, o edifício kantiano deve ser percorrido desde o detalhe até o todo e vice-versa, seguindo o curso que Kant tomou. E ele é um todo, só pode ser examinado como tal, sob pena de reeditarem-se os mesmos erros.
No entendimento de Cohen, Kant distingue os diversos a priori pela análise psicológica da experiência interna, não péla compreensão indutiva, mas por uma reflexão abrangente sobre os elementos necessários e universais da experiência humana, cabendo à dedução transcendental a tarefa de prová-los. Kant age em três tempos para estabelecer sucessivamente o que podemos denominar os três degraus do a priori.
1. a constatação de um fato;
2. o estabelecimento de sua forma (lei de produção do conteúdo);
3. a condição formal sine qua non da possibilidade da experiência.
Segundo Henri Dussort, “o assunto mais importante de todos, até mesmo a única tarefa, a razão última, é esclarecer e justificar os princípios onde predominam o terceiro e último sentido do a priori. Este é o leitmotif e a novidade fundamental do comentário de Cohen, decorrente de seu princípio de consi8derar a Crítica no seu todo e no seu movimento. Sua exposição está misturada à Crítica de todos aqueles que por não aplicarem este princípio, se fixaram sobre tal ou qual ponto afastado, e assim trouxeram quase sempre o a priori kantiano à idéia de
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inato dos pré-kantianos: Trendelemburg, Fischer, Ueberweg, Herbart e sobretudo Schopenhauer.” (7)
Ainda na exposição de sua tese sobre a noção do a priori kantiano, Cohen insistirá na importância da distinção entre o a priori metafísico e o a priori transcendental elaborado por Kant na segunda edição da Crítica da Razão Pura. “O a priori transcendental é causa final, verdade última do a priori metafísico. (...) A dedução transcendental, que é o coração e a essência da coisa, é autônoma de fato. (...) A dedução metafísica que precede a dedução transcendental é uma reflexão, um simples estabelecimento do fato da possessão de certos conceitos fundamentais; só possui um valor preliminar, formula tão somente os dados do problema a ser resolvido. (...) Cabe à dedução transcendental,a tarefa de resolver e legitimar estes conceitos e o seu emprego, ligando os princípios ao supremo da possibilidade da experiência e mostrando neles a condição „sine qua non‟ da experiência (científica) e não das experiências simplesmente subjetivas. Do mesmo modo, a exposição transcendental é a razão de ser, a causa final da exposição metafísica, cuja verdadeira função é barrar o caminho às pretensões empíricas. Daí a necessidade de elevar-se do a priori metafísico ao a priori transcendental, de tal modo que o a priori metafísico se desvaneça em elementos da consciência, deixando em presença o realismo e o idealismo. Restringir-se ao a priori metafísico é querer reduzir a experiência à consciência e recair no psicologismo. No entanto, se nos elevarmos do a priori metafísico ao a priori transcendental, compreendendo os conceitos como objetivações, veremos que o idealismo crítico reúne idealismo e realismo no conceito de experiência.” (8)
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Para Cohen, os diversos momentos do a priori de Kant não devem ser separados uns dos outros à mercê das orientações metafísicas. Todos os seus momentos devem totalizar-se e unificar-se no princípio supremo de todos os juízos sintéticos. “Nós afirmamos a aprioridade, não tanto das categorias quanto da categoria. É somente em sentido vasto, transposto, que pode ser confirmada a aprioridade das categorias, que a unidade seja de fato uma forma necessária do pensamento, necessária para a possibilidade da experiência, ou simplesmente a causalidade, ou ainda a ligação pela finalidade (opinião de B. Meyer), neste ponto existe contestação, e pode haver contestação sem prejuízo do caráter a priori da categoria.” (9)
E explica Cohen: se o a priori transcendental é a causa final, a verdade última do a priori metafísico, são então os princípios que justificam as categorias, ao mesmo tempo no conjunto e no detalhe. Ainda que afirmemos que sobre o plano do a priori metafísico a tábua de julgamento é o fio condutor da descoberta e um estágio preparatório (o da origem), é a nível propriamente transcendental que a tábua dos princípios é a justificação da tábua das categorias. Do mesmo modo que o a priori metafísico não é totalmente compreensível sem a ajuda do a priori transcendental, a Estética tampouco o é sem a Lógica. “É no momento em que a intuição se vai revelar susceptível de ser construída a partir do conceito, que o a priori transcendental encontrará sua apoteose. Esse momento é o determinado pelo princípio das antecipações da percepção, quando Kant, se apoiando sobre o cálculo infinitesimal, mostra a possibilidade de uma passagem da consciência pura à consciência empírica e inversamente.” (10)
Essa possibilidade, segundo Cassirer, constitui o triunfo do pensamento, capaz de construir o real e determiná-lo. É neste
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movimento de integração que se verifica a tomada de consciência da experiência. A análise transcendental não procura descobrir novas leis ou novos princípios, mas tão somente tematizar pelo movimento da unificação o sentido da experiência. O essencial na Crítica da Razão Pura, segundo Cohen, é o ponto no qual se totalizam concretamente os momentos do a priori. Não é a forma do pensamento ou a função da unidade nos juízos que nos permite afirmar a categoria, mas inversamente. Da mesma maneira, não se vai das categorias aos princípios, mas dos princípios às categorias. É o desenvolvimento efetivo das ciências que fornece os princípios que a teoria transcendental deve levar à consciência da sua possibilidade. Deste modo, o que comanda e determina a possibilidade da experiência não é a lógica aristotélica, mas a lógica transcendental. A tal ponto que a validade da lógica formal, naquilo que ela pode colaborar para a edificação do sistema da ciência, é decidida pela lógica transcendental. “Consequentemente, a lógica transcendental doravante soberana, vai pôr de lado todos os conceitos transcendentes, purificando ao mesmo tempo a idéia de coisa em si. Cumpre antes de tudo cessar de opor a coisa em si, real inacessível, e o fenômeno, real acessível, como se houvesse dois mundos. O combate sustentado por Fichte contra a coisa em si, captada ou antes entendida como uma realidade absoluta, independente das funções transcendentes, é inteiramente legítimo. O que não é legítimo é a recusa da coisa em si como idéia. A função da coisa em si não é certamente ser a fonte da afeição a partir da qual se elabora a sensação; há nisso uma concepção realista contra a qual justamente protesta Fichte. Sua função original no sistema do conhecimento consiste em prescrever ao pensamento uma tarefa sempre nova com relação às suas aquisições e, por conseguinte, em comandar a autolimitação do
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conhecimento trancendentalmente compreendido. A oposição do sujeito e do objeto cumpre substituir a oposição da coisa em si e do fenômeno, a primeira indicando o termo, a Idéia do saber, ao passo que o fenômeno caracteriza a atualidade, isto é, o progresso constante do conhecimento. Numa única palavra, a coisa em si é a Idéia da relatividade presente de nosso saber considerado em seu mais profundo fundamento. Entende-se então: a coisa em si não é, por assim dizer, o resíduo transcendente no kantismo, mas o princípio, a Idéia que define o conhecimento em seu movimento. É o problema infinito do saber e, como tal, supera toda identificação da coisa em si com uma realidade qualquer.” (11)
Para Cohen, as afirmações de alguns pós-kantianos de que a coisa em si é considerada por Kant como causa dos aparecimentos, pode ser refutada com as próprias palavras de Kant: “o conceito de causa, é-me dado primeiramente a priori pela lógica, a forma de um juízo condicionado em geral, a saber, um conhecimento dado utilizável como fundamento e um outro como consequência. Mas é possível que seja encontrada na percepção uma regra da relação, que afirme: um determinado fenômeno segue regularmente outro (embora não inversamente), e este é um caso para me servir do juízo hipotético e dizer, por exemplo: se um corpo fica exposto ao sol por tempo suficiente, torna-se quente. Aqui não há ainda, na verdade, uma necessidade de conexão e nem, por conseguinte, o conceito de causa. Mas continuo e digo: se a proposição anterior, que é apenas uma conexão subjetiva de percepções, deve ser uma proposição de experiência, deve ser considerada necessária e válida universalmente. Tal proposição seria, pois: o sol é, através de sua luz, a causa do calor. A regra empírica anterior é agora considerada lei, e assim não só válida para fenômenos, mas para os fenômenos que visam a uma experiência
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possível, a qual necessita de regras universais e necessariamente válidas. Compreendo, portanto, muito bem o conceito de causa como um conceito pertencendo necessariamente à simples forma de experiência e sua possibilidade como ma união sintética das percepções numa consciência em geral; não compreendo, porém, de maneira alguma, a possibilidade de uma coisa em geral como uma causa, e isto porque o conceito de causa designa uma condição inerente não às coisas, mas à experiência, a saber, que esta só pode ser um conhecimento objetivamente válido dos fenômenos e de sua sucessão no tempo na medida em que o antecedente pode ser ligado ao conseqüente, segundo regras dos juízos hipotéticos.” (12)
Desse modo, o conceito de coisa em si é definido por Kant como conceito problemático e delimitante, possuindo:
1. a limitação da sensibilidade que não pode nos dar objetos independentes do nosso modo de intuí-los (Estética);
2. a representação da tarefa de ascender através de uma simples atividade do entendimento, a um conhecimento independente da sensibilidade (Analítica);
3. a representação da possibilidade de se exercer esta tarefa (Dialética).
Uma vez desfeitas as ilusões do emprego dos conceitos da razão como determinantes, visto que a causalidade só é um princípio determinante para os aparecimentos, para as sucessões e não para as coisas em si mesmas, podemos procurar a chave de seu emprego legítimo (como princípio da procura, como axiomas reguladores) formulando a priori os princípios reguladores do processo indefinido do
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conhecimento dos seres, que asseguram a ligação entre as leis gerais e particulares da natureza.
O sentido comum acha que encontra os fatos, a realidade sólida nas coisas; a reflexão crítica mostra nestas coisas simples aparecimentos, que são radicalmente diferentes de puras aparências na medida em que são submetidas às leis universais. A necessidade de uma realidade encontra a sua satisfação legítima, não imediatamente nas coisas, mas nas leis, afirma Cohen. Os princípios (leis supremas) são os únicos a garantir as coisas, ou seja, os aparecimentos enquanto dados. Não que as leis criem o existente, mas instalam, o instituem no seu ser, na sua validade objetiva. Não é a existência que é proclamada na lei, mas o ser da existência; o real sensível fica sendo da lei. Daí porque a lei é entendida por Cohen como a primeira significação da coisa em si; a primeira garantia da objetividade. Todavia, “a lei está longe de esgotar a significação da coisa em si, ela não é nada mais do que a sua expressão mais simples (...). O sentido comum pré-crítico esquece-se das condições de possibilidades da experiência e faz uso transcendental de seus conceitos, concedendo-lhes uma universalidade absoluta, sem levar em conta a limitação de fato imposta pela sensibilidade. Cabe ao entendimento a tarefa de delimitar de fato, de fixar a fronteira de seu próprio uso. Ele cumpre essa missão através da coisa em si, cuja tarefa é expressar a contingência inteligível da experiência.” (13)
Depois de garantir a experiência e mostrar sua contingência, a coisa em si irá procurar uma finalidade, uma causa última, além da série indefinida, nunca totalizável e portanto contingente, dos efeitos e das causas. Se a causalidade tivesse um valor absoluto, independente das condições da experiência, esta finalidade não seria possível. Como isto não acontece, pois a causalidade só é um princípio a priori determinante
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para os acontecimentos, para as sucessões múltiplas e não para as coisas, podemos pelo menos conceber um outro tipo de produção dos fenômenos além do da causalidade. Se denominarmos de liberdade este outro modo de produção, a teoria da experiência poderá, no máximo, garantir o que é logicamente, jamais o efetivamente possível. Como tal possibilidade é puramente lógica, o estudo do poder teórico da razão nada mais poderá dizer.
Ao opor-se à interpretação da idéia como ser, Cohen nos diz que a idéia é antes de mais nada hipótese, não no sentido psicológico, de suposição mais ou menos contingente, mas no sentido de pressuposição necessária do conhecimento do ser, do existente; no sentido de fundamento que é fundação; como princípio diretor dos julgamentos científicos. (...) “Tendo colocado em cada caso como hipótese a razão que julgo ser a mais sólida, tudo o que me parece conciliar-se com ela, coloco como existente verdadeiramente, quer se trate de causa ou qualquer outra coisa, e no caso contrário, como não existindo verdadeiramente. (...) Não é portanto a Idéia que está formulada como existindo verdadeiramente, mas o fenômeno bem fundado; a Idéia é o que permite fundá-lo. Em termos mais modernos, a Idéia é método: aquele sábio, que parte do sensível para assentar a lei, e o do filósofo, que parte dos resultados científicos para assentar as condições superiores de possibilidade.” (14)
Entretanto, para que a idéia possa desempenhar o seu papel de validação, é necessário que não haja abismo entre o sensível e o inteligível, mas uma mediação permanente que, no entender de Cohen, é realizada pela matemática. De um lado, diz ele, o mensurável, o matematizável, o que permite discernir dentro do sensível e o que pode levar ao inteligível, ao pensamento e, através disso, à validade objetiva
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– despertador do pensamento. De outro lado, a meditação sobre o método matemático, dedução a partir de hipóteses, análise supondo conhecido o que não é conhecido.
O fio condutor para a compreensão retrospectiva não é para Cohen a intuição intelectual no sentido fichtiano, mas a intuição pura no sentido kantiano. “A teoria da idéia não é apenas uma filosofia da matemática. Se esta é o ponto de partida da concepção da idéia como hipótese, esta última verifica-se susceptível de uma utilização mais ampla: permite reciprocamente subordinar a matemática ela mesma à Dialética, que tende a ultrapassar seu nível, indo à procura de um princípio supremo, onipotente e por isso mesmo mais além do ser, o Bem. Deste modo, este distintamente exprime que as Idéias são hipóteses, que somente a Idéia de Bem não possui pressuposição; que a partir deste último fim de toda procura, o caminho para as Idéias no sentido estrito, teórico, pode e deve ser cada vez mais reencontrado.” (15)
Na exposição da teoria da ciência, Cohen afirma que o método transcendental só poderá produzir todos os seus frutos e atingir todo o seu rigor a partir da ciência da realidade, da física-matemática, e que sua pedra fundamental é a aptidão para esclarecer e legitimar os conceitos fundamentais da física. No entanto, afirma Cohen, seria uma tarefa bastante longa tratar do problema em seu conjunto. Talvez seja possível começar por um deles. Mas qual escolher? Interroga no Princípio do método infinitesimal e sua história (1883). “Se se tratasse de uma pesquisa psicológica, de uma origem de fato, a escolha seria predeterminada, já que a ordem de aparecimento dos conceitos não é qualquer uma. No entanto, o processo é diferente na crítica do conhecimento, onde o espírito conhecente não está no início diretamente
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em questão, e sim o conteúdo do conhecimento. Neste aspecto, todos os princípios são igualmente essenciais, todos são entrelaçados e cada um remete a todos os outros tão bem que podemos começar por qualquer um deles.” (16)
Cohen decide-se pelo conceito de infinitamente pequeno. A escolha deste conceito, além de lhe parecer propícia para mostrar in concreto a superioridade, em seriedade e em certeza do método transcendental sobre o método metafísico, apresenta três vantagens:
1. ele não retoma historicamente, como quase todos os outros conceitos fundamentais, à antigüidade; por conseguinte e susceptível de maior clareza histórica.
2. ele manifesta o abismo que separa a concepção empírica do real, fundada sobre a sensação e, a concepção crítica, sobre um princípio científico. O que é empiricamente dado (em aparência) não oferece nenhuma garantia;
3. ele permite esclarecer o sentido e a relação mútua da intuição e do pensamento; é ao mesmo tempo condição de determinação da intuição pura e da construção física.
Segundo Cohen, foi justamente na crítica infinitesimal que Hegel naufragou, mas apesar disso, teve o mérito de ressaltar a importância da qualidade, do momento qualitativo da quantidade para este conceito.
Como o princípio é apresentado pela ciência, é dele que devemos partir na busca do conhecimento. Daí porque o método transcendental inicia a sua procura na ação da ciência matemática da natureza. E, se os problemas que ele descobre e suscita são um fio condutor para o estudo da pré-história da análise superior (desde
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Galileu, Leibniz e Newton), reciprocamente os seus problemas levam à correção do pensamento kantiano e da teoria do conhecimento em geral, à dupla relação da sensibilidade e do pensamento por um lado, e do espaço e do tempo no interior da sensibilidade pura, por outro.
As primeiras pesquisas matemáticas sobre o infinitamente pequeno, no entender de Cohen, foram confusas e obscuras “resultantes de problemas geométricos, sujeitos à intuição espacial, elas o apresentavam como um limite (de uma diferença decrescente, menor do que toda quantidade, tão pequena, por exemplo, entre a superfície de um círculo e a dos polígonos inscrito e circunscrito). Era introduzi-lo, negativamente, como o não institucionável no interior de uma ciência fundada na intuição pura! De onde o perigo do antropologismo: o indivisível era o que nós, espíritos finitos, não podíamos intuir. Encontrava-se a mesma dificuldade na teoria dos números, com o problema dos cortes. Teríamos então de considerar o infinitesimal como um meio auxiliar de determinação.” (17)
Somente com o aparecimento de um novo problema, o do movimento, e de uma nova ciência, a mecânica, a partir de Galileu, a ambigüidade e a dificuldade puderam ser levantadas. As dificuldades passadas são esclarecidas e uma notável transposição se opera, e Kant será o primeiro, no campo filosófico, a tomar consciência disso. Não há dúvida, afirma Cohen, de que a física pressupõe a matemática como órgão, mas esta só lhe é útil porque já está trabalhada por problemas físicos; a matemática pura já deve ser intrinsecamente aplicável; sua liberdade em relação à física no oposto de uma indiferença.
Ao distinguir o extensivo e o intensivo. Galileu livra o infinitesimal de sua significação negativa, colocando-o positivamente como aquilo que produz o movimento. A quantidade, objeto tradicional
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da matemática, passa a ser uma espécie de grandeza. Uma matemática do qualitativo enquanto intensivo passa a ser possível. Tal concepção torna-se madura em Leibniz e Newton, e Kant tirará conclusões.
Leibniz ressalta a importância do princípio de continuidade como fundamento do conhecimento. Newton, por sua vez, deriva, depois de Galileu, as grandezas espaciais das grandezas temporais, instaurando aí o ponto de vista transcendental: em vez de pressupor que o espaço e as grandezas extensivas sejam dadas pela experiência, ele as origina por variação, por acréscimo contínuo. O corpo ou coisa em mudança parece pressuposto, mas a pesquisa mostra que ele também deve ser produzido, objetivado. Só o tempo é pressuposto. Daí porque o idealismo de Cohen é um sistema científico de pensamento que não aceita como dado justamente aquilo que o sentido comum, a consciência pré-crítica acredita ser dado, ou seja, tudo adquirido e possuindo uma objetividade absoluta. Se a natureza fosse toda feita, a aplicabilidade da matemática seria um mistério.
Como então, indaga Cohen, a física-matemática, que é um fato para o filósofo e não a rapsódia cintilante das impressões sensíveis, pode ser possível? Responde: é um só e mesmo processo de produção, de constituição que estabelece o meio de conhecimento como válido e seu objeto como real. A física utiliza a matemática porque esta já é, em quase todos os seus aspectos, uma antecipação da física. O pensamento do real, a categoria da realidade – ingrediente indispensável ao princípio das grandezas intensivas – já se encontra no seio da intuição pura onde se determinam as grandezas extensivas.
Daí o entendimento de Cohen de que a ordem de apresentação seguida por Kant na Crítica não é em absoluto uma ordem hierárquica decrescente; ao contrário, há uma primazia do pensamento sobre a
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intuição, do tempo sobre o espaço, no plano de determinação. No entanto, afirma ele, não podemos efetuar esta transposição sob pena de correr o risco de conduzir a um idealismo especulativo. Entretanto, “se o infinitesimal é a fonte e a ilustração exemplar do princípio da grandeza intensiva, ele tampouco o esgota. A psicofísica utiliza-o para determinar essa outra realidade intensiva, a “sensação”. Pela sua descoberta de lei do limiar, ela possui o mérito de não mais pensar a consciência como um receptáculo. A sensação não é reação à excitação, mas a uma grandeza finita determinada desta última. (...) A sensação só tem um tipo de grandeza: intensiva.. Como a análise infinitesimal é a regra especial do conhecimento físico, ela é a única que permite estabelecer o sentido da realidade física.” (18)
No entender de Cohen, Kant determina a natureza da ciência através do estudo da ciência da natureza e não abstratamente, na atmosfera da especulação. Empenha-se obstinadamente na fundamentação de uma filosofia verdadeiramente científica como filosofia da ciência, a partir de uma reflexão constituída sobre a ciência. E sentencia: até ele, existia uma metafísica como arte, somente com ele passa a existir uma metafísica da ciência. “Para ser ciência, a filosofia deve ser sistemática (e não rapsódia de propostas). Em Kant, o sistema reside na trindade das Críticas, e é justamente essa palavra, crítica que distingue a sua filosofia de todos os sistemas anteriores. Sua diferença específica, metódica é a de não querer ser ciência em primeira instância, nem de natureza, nem de espírito, e ainda menos de Deus, mas de referir-se a uma ciência já presente para procurar-lhe a razão. De doutrina, a filosofia transforma-se em censura. Ela aprende a se resguardar do erro, e fornece aquilo que não é possível em nenhuma ciência: determinar o horizonte do conhecimento. Tomado consciência
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da diferença de método que a distingue da matemática, ela renuncia a „construir‟ a experiência, para compreender „como são constituídos os objetos e as leis da ciência matemática e da natureza‟. Deste modo o idealismo crítico reúne o idealismo da razão e o realismo da ciência. Igualmente em Ética e em Estética, o filósofo crítico não tem de produzir ou promulgar novas leis ou novos conteúdos, mas emiti-los na sua pureza a partir dos fatos culturais e das obras de arte.” (19)
A descoberta do método transcendental por Kant encerra, segundo Cohen, a longa procura empreendida por Platão e abre caminho para novas conquistas. Ele é o fio condutor de todo empreendimento crítico; é a partir e em função dele que devemos compreender e apreciar os desenvolvimentos e os resultados alcançados. É, de fato, o método que dirige as pesquisas em Kant em todas as questões. Nele reside, principalmente, a originalidade e a missão de Kant.
A partir de tais pressupostos, Cohen tentaria, do mesmo modo que os intérpretes de Kant que o antecederam, construir um sistema que coroasse a crítica. Assim, constituiu com grande sucesso uma epistemologia calcada no conhecimento científico. No que se refere, entretanto, à separação entre razão analítica e razão prática, que era o grande problema do kantismo, não se considera que haja sido igualmente bem sucedido. Tampouco na determinação do a priori na ética. Influenciado pela teoria do Estado de Hegel e sendo socialista, imaginava que as teorias do socialismo solucionariam o problema, adequando o Estado (sujeito ético por excelência) à organização social que, por sua vez, se adequasse ao imperativo categórico (socialismo). Se teve algum sucesso nesse plano, o foi na esfera do direito, onde suas idéias seriam desenvolvidas por Kelsen através da mediação de Stammler.
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Rudolf Stammler (1856/1938), como Cohen professor em Marburgo, concebeu uma filosofia do direito de sentido formalista, projeto que viria a ser coroado por Hans Kelsen (1881/1973), autor da Teoria pura do direito (1933), dando origem a uma das mais importantes escolas no período contemporâneo.

* Fonte desse Texto : O NEOKANTISMO NO BRASIL da tese de doutoramento de Rosa Mendonça de Brito

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