O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana
Rabenu Shlomo ben Yitzhak, Rashi, o maior de nossos mestres e o erudito bíblico mais brilhante de todos os tempos, é o comentarista clássico da Torá e do Talmud. Sua contribuição ao estudo da Torá é atemporal. Decorridos quase mil anos desde a publicação de suas obras, estas permanecem insuperáveis.
Desde o século 12, quando seus escritos foram publicados, os mesmos se tornaram um recurso indispensável para o estudo dos textos sagrados judaicos, adquirindo praticamente o status de texto bíblico. Ao longo da história judaica, muitos sábios e místicos escreveram comentários sobre os Cinco Livros da Torá e o Talmud, mas nenhum deles alcançou a importância e a imortalidade de Rashi.
É imensurável o impacto de suas interpretações e explicações sobre o Tanach, particularmente sobre os Chamishá Chumshei Torá, em todo o mundo judaico. De fato, é raro alguém estudar o Pentateuco sem consultar os comentários de Rashi. E é graças à sua obra que o Talmud, uma verdadeira enciclopédia da Lei e Sabedoria Judaica até então hermeticamente fechada, tornou-se compreensível. As mais brilhantes mentes ainda se surpreendem com a exatidão de suas interpretações e pelo vastíssimo conhecimento que possuía.
A verdade é que em toda a história judaica, ninguém, além de Rashi, conseguiu escreveu um comentário bíblico capaz de ensinar uma criança que acabou de iniciar seus estudos da Torá e, ao mesmo, enriquecer o conhecimento de um grande erudito com toda uma vida dedicada ao estudo dos textos sagrados.
Quase mil anos após ter sido escrita, sua obra ainda é estudada e analisada, pois sempre há algum novo ensinamento a ser descoberto. As palavras de Rashi contêm camadas quase infinitas de significado e até o número de palavras em cada comentário tem um significado especial. É também quase infinito o número de ensinamentos ocultos, muitos dos quais místicos, acobertados por sua linguagem simples ao olhar do leigo.
Ao estudar a obra de Rashi percebe-se que há algo de extraordinário e sobrenatural em seus escritos. É evidente que seu trabalho é fruto da Providência Divina: Rashi foi um canal por meio do qual D’us revelou muitos dos segredos de Sua Torá a Seu Povo. Nenhum Sábio – antes ou depois dele – conseguiu produzir algo que se assemelhasse a seus comentários.
O Mestre dos Mestres
Por que Rabi Shlomo ben Yitzhak é conhecido pelo seu acrônimo? Uma explicação nos é dada por Rabi Chaim ben Attar, o Or HaChaim: o nome Rashi advém das letras iniciais do título Raban shel Israel, “Mestre de todo o Povo de Israel”. Já o grande mestre chassídico, Rabi Nachman de Bretslav, apelidou Rashi de “irmão da Torá”. O título é cabível, pois desde que Rashi publicou seu comentário sobre o Pentateuco, a Torá e ele se tornaram inseparáveis. Contudo, a melhor denominação é simplesmente “ha-Moré ha-gadol” – o Grande Mestre. Rashi é o professor dos professores, o mestre dos mestres, pois, independentemente de idade, sabedoria ou nível de conhecimento, somos todos seus alunos.
Na literatura chassídica, ele é chamado de “o sagrado Rashi”, pois sua pena foi guiada pela própria Shechiná – a Presença Divina. É impossível para um ser humano realizar tudo o que ele realizou. Foi provado que é fisicamente impossível alguém ter tido tempo de escrever todos os comentários que escreveu. Não obstante, não há dúvida de que foi Rashi, sozinho, quem os escreveu.
Nenhum outro Sábio escreveu tanto a respeito de tantas obras judaicas. Os comentários de Rashi elucidam além dos Cinco Livros da Torá, os Livros dos Profetas (Nevi’im), as Escrituras Sagradas (Ketuvim) e quase todos os tratados do Talmud Bavli.
Evidentemente, Rashi possuía poderes que iam além das leis da natureza: ou o seu dia possuía mais de 24 horas ou ele conseguia fazer parar o tempo. De qualquer forma, não se trata de um ser humano como outro qualquer. As leis da natureza não se aplicavam a Rashi: sua extensa obra o comprova.
Graças a ele – sua erudição, genialidade e generosidade – qualquer judeu tem a possibilidade de compreender a Palavra de D’us. Se não fosse por ele, o Talmud permaneceria um livro fechado. Antes de seus comentários, poucos eram os que entendiam essa sagrada obra, que é o fundamento da Lei judaica, pois mesmo os eruditos judeus se perdiam no gigantesco labirinto que é o Talmud Bavli.
Por meio de seus escritos – de seu conhecimento enciclopédico e de seu estilo, sempre claro e cativante, preciso e inspirador – os segredos da Torá foram revelados e o Talmud se tornou compreensível. As explicações de Rashi são tão claras, tão didáticas, que, às vezes, quando um aluno estuda sua obra, tem a nítida sensação de que o mestre está estudando ao seu lado, guiando-o.
Apesar de sua grandeza e genialidade, no entanto, a obra de Rashi irradia simplicidade. Em geral, quando buscava a palavra ou a frase certa para explicar um verso bíblico ou um ensinamento talmúdico, o “mestre de todo o Povo de Israel” escolhia a mais simples e acessível. O principal objetivo de Rashi era esclarecer as coisas, principalmente as mais difíceis e complicadas. Ele jamais tentou impressionar com sua sabedoria sem fronteiras, seu domínio dos conhecimentos laicos ou religiosos. Em alguns casos, Rashi até candidamente confessava desconhecer o significado de um verso bíblico ou ensinamento talmúdico, tampouco hesitando em admitir que não conhecia a resposta para uma pergunta ou a solução para uma dificuldade. Nenhum outro Sábio fez o mesmo de forma tão franca e frequente.
A genialidade de Rashi ilumina o texto bíblico. Graças a seus comentários originais e, ao mesmo tempo, fiéis ao texto, o significado de um verso se torna claro, a armadilha das más interpretações é driblada, fazendo emergir detalhes e nuanças que nunca antes haviam sido notadas.
O que mais importava para Rashi era a verdade e seu principal objetivo era revelar o significado literal do texto. Seu principal intuito ao escrever seus comentários sobre os Cinco Livros da Torá foi torná-los compreensíveis até mesmo para uma criança de cinco anos.
Ele próprio declarou: “Vim apenas para explicar o significado simples da Torá ”. Contudo, suas explicações são tão ricas e profundas, tão cheias de sabedoria e significado, que enriquecem até os maiores eruditos da Torá.
A Torá com os comentários de Rashi foi o primeiro livro hebraico a ser publicado – em 1470. Nenhuma obra judaica foi tão difundida: logo atravessou as fronteiras e cruzou os mares. O mesmo vale para seus comentários sobre o Talmud. E é notável que estes, diferentemente dos escritos de Maimônides, nunca foram criticados. Suas obras tiveram aceitação imediata e praticamente unânime.
Mesmo eruditos cristãos se beneficiaram de seus comentários. O erudito franciscano, Nicolas de Lyra, que viveu durante o século 13 e foi o líder dos franciscanos na França, traduziu a obra de Rashi para o latim. Essa tradução teve grande influência sobre Martinho Lutero, cuja tradução da Bíblia para o alemão transformou não apenas a face do cristianismo, mas influenciou toda a história do Ocidente.
Vale ressaltar que Rashi não era apenas um mestre da Torá, mas também dos outros âmbitos do conhecimento humano. Eruditos, inclusive não judeus, ainda estudam suas obras para se aprofundar na língua francesa falada durante a Idade Média; há termos em francês nas obras de Rashi que não se encontram em nenhum outro lugar.
Sua vida
Descendente direto do Rei David, Rabi Shlomo ben Yitzhak nasceu no ano de 1040, em Troyes, França. Sabe-se pouco sobre sua vida.
Acredita-se que seu pai foi um grande erudito. Sua obra sobre os Cinco Livros da Torá faz alusão ao fato, pois seus comentários têm início com uma pergunta de Rabi Yitzhak: por que a Torá, que é, fundamentalmente, um livro de leis, começa com a descrição da criação do mundo? De acordo com vários comentaristas, “Rabi Yitzhak” teria sido o pai de Rashi, e a inclusão da pergunta teria sido uma forma por ele encontrada de homenagear seu pai.
Se são poucos os detalhes históricos que nos chegaram sobre sua vida, muitas, porém, são as lendas que envolvem seu nascimento, sua vida e, mesmo, sua morte.
Uma das lendas conta que a mãe de Rashi, nos últimos meses de gravidez, estava andando por um beco sem saída, estreito e escuro, quando uma carruagem quase a atropela. É salva por milagre, pois, ao apoiar a barriga contra a parede, a pedra curvara-se para dentro. Diz-se que em Troyes ainda pode ser visto um nicho arredondado nas pedras.
Outra lenda conta que no dia de seu Brit Milá, seu pai, Rabi Yitzhak, não estava conseguindo reunir um minyan, 10 homens judeus, para a cerimônia. Os Céus o ajudaram, pois o minyan foi completado por Avraham, nosso Patriarca, o primeiro judeu a ter sido circuncidado. De acordo com outra versão, quem veio para completar o minyan foi Eliyahu HaNavi. É bem verdade que nosso profeta Eliyahu está espiritualmente presente em todo Brit Milá, mas, na circuncisão de Rashi, ele teria comparecido em carne e osso, e, segundo outra lenda, foi Eliyahu HaNavi quem se sentou na cadeira e segurou o menino no colo, durante a circuncisão.
Esse homem racionalista, cuja missão foi tornar compreensível o incompreensível, foi também um grande místico, que vivia uma vida “sobrenatural”, desafiando as leis da natureza e do tempo. Rashi acreditava em milagres – e não apenas os que haviam ocorrido durante os tempos bíblicos e talmúdicos. Ele era da opinião que o advento da Era Messiânica não ocorreria de forma natural – acreditava que o Terceiro Templo não seria construído pelo Mashiach, e sim, pelo próprio D’us, que o faria descer dos Céus à Terra.
Na realidade, Rashi personificava a face revelada e a oculta da Torá: a Halachá – Lei Judaica – e a Cabalá – o misticismo judaico. O perito em Halachá estuda os escritos de Rashi e se maravilha com a contribuição que ele fez à nossa compreensão acerca da dimensão legal da Torá. Ao mesmo tempo, o Cabalista se aprofunda nas palavras de Rashi e se encanta com a forma pela qual o mestre transmitiu profundos ensinamentos cabalísticos por meio de seus comentários, aparentemente simples.
Rashi, que recebeu o nome do homem mais sábio de todos os tempos, o Rei Salomão, Shlomo, nasceu com uma missão e com talentos singulares. De acordo com alguns comentaristas, ele falava todas as línguas, dominava todas as ciências e viajava para terras distantes.
Aluno precoce, começou a escrever seus famosos comentários na juventude. Como vimos acima, na época, era difícil entender o significado das palavras da Torá e o Talmud era indecifrável para a grande maioria dos judeus. O jovem Rashi decidiu, então, escrever explicações e comentários, em linguagem simples, para facilitar o estudo dos textos sagrados.
A Providência Divina o abençoou com oportunidades singulares e com mestres extraordinários, que o ajudaram a cumprir sua missão. Em sua infância, estudou com um tio materno, Rabi Shimon bar Yitzhak, conhecido como Shimon, o Ancião. Aos 18 anos foi estudar em Mainz, na Alemanha, na Yeshivá que havia sido fundada por Rabenu Gershom. Chamado de “A Luz do Exílio”, Rabi Gershon foi o primeiro grande erudito do judaísmo do Norte da Europa.
Rabenu Gershom já não vivia quando Rashi chegou à Yeshivá. Mas o jovem estudou com grande eruditos que haviam sido discípulos e alunos da “Luz do Exílio”. O mestre que mais o marcou foi Rabi Yaacov ben Yakar, a quem Rashi admirava e amava mais do que a qualquer pessoa no mundo. “Tudo que sei devo a ele, meu entendimento, minha compreensão e meu coração”, escreveu Rashi a respeito de seu mestre. Foi Rabi Yaacov quem introduziu o jovem aluno aos raros manuscritos do Talmud e a comentários do Midrash, sem os quais seria impossível estudar o Talmud em profundidade. Rashi teve acesso, também, a manuscritos do Talmud que haviam sido escritos por anciãos e pelo próprio Rabenu Gershom – um privilégio raro.
Após deixar Mainz, Rashi foi estudar durante vários anos em Worms, na Yeshivá liderada por Rabi Yitzkah Ha-Levi. Na época, os mais renomados centros de estudos judaicos se encontravam na Alemanha, não na França.
Quando Rashi finalmente voltou a Troyes, fundou uma Yeshivá que passou a atrair alunos da França e de outros países, inclusive da Alemanha e da Europa Oriental.
O conhecimento de Rashi era extraordinário, ele sabia muito sobre praticamente tudo: não apenas a Torá e o Talmud, mas também as Ciências, inclusive Matemática, Astronomia, Geologia e Zoologia.
Ele também entendia muito a respeito de sua profissão: a vinicultura, pois vivia da produção de seus vinhedos. Como muitos outros grandes Sábios de nossa história, Rashi não usou a Torá como fonte de sustento, jamais cobrou de seus alunos e tampouco recebia salário como rabino.
É um mistério como ele encontrava tempo para aprender tudo que aprendeu, ensinar tudo o que ensinou, escrever tudo o que escreveu e, além de tudo isso, trabalhar para sustentar a si, à família e a seus alunos.
Rashi não teve filhos homens, teve apenas três filhas: Miriam, Yocheved e Rachel. As três ajudavam o pai no vinhedo e em seu trabalho sagrado. Pois Rashi não apenas lhes ensinara a ler e escrever em hebraico e francês, mas também a Torá e o Talmud, algo muito incomum na época. As filhas de Rashi se tornaram famosas por cumprirem um mandamento da Torá que tradicionalmente recai apenas sobre os homens: a colocação dos Tefilin. O marido de Miriam, Rabi Yehudá ben Nathan, foi um grande Sábio. Yocheved também se casou com um grande erudito: Rabi Meir ben Shmuel. A terceira filha de Rashi, Rachel, era conhecida por sua beleza: seu apelido era “Belle-assez”, bela demais.
Os alunos de Rashi estão entre os maiores eruditos em toda a história judaica, inclusive seus dois genros, que se tornaram os ilustres Tosafistas franceses. De fato, os genros de Rashi colaboraram na obra do sogro – como consultores, copistas e editores de seus manuscritos. Rabi Yehudá conseguiu escrever comentários sobre o Talmud que replicaram o estilo original do sogro. Após o falecimento deste último, foi ele quem concluiu seus comentários sobre o Tratado Makot do Talmud Bavli. Já o outro genro de Rashi teve um filho, Rabi Shmuel ben Meir, o Rashbam,
que foi um grande Sábio e comentarista.
Mas o mais famoso e admirado dos netos de Rashi foi outro filho de Rabi Meir, Yaacov, mais conhecido como Rabenu Tam (Ver Morashá 70). Ele nasceu quando Rashi tinha 60 anos. Rabi Yaacov ben Meir, o maior dos Tosafistas, foi, simultaneamente, o maior defensor e o maior crítico dos comentários de Rashi. O avô tornou o estudo do Talmud acessível; o neto o tornou mais profundo. Rashi permitiu que todos os judeus nadassem no mar do Talmud; Rabenu Tam convidou-nos a explorar suas profundezas. Juntos, avô e neto revolucionaram o estudo da Torá e modelaram a Halachá – a Lei Judaica – de forma significativa. Muitas das leis e dos costumes fundamentais do judaísmo, como o horário de início e término do Shabat, a forma como a Mezuzá é colocada no umbral da porta – são realizados conforme os decretos de Rashi, Rabenu Tam ou uma combinação dos ensinamentos de ambos.
Mas, apesar de todas as contribuições dos netos e genros, e de outros alunos, a grandeza de Rashi e o impacto de sua obra sobre o mundo judaico permanecem singulares, incomparáveis, insuperáveis. Já faz quase um milênio desde que ele deixou este mundo, mas ainda permanece sendo o companheiro de eruditos e o tutor dos alunos que começam a dar seus primeiros passos no estudo da Torá. Sua autoridade é indiscutível e a ajuda que ele presta através de seus comentários, indispensável.
Se há muitas lendas a respeito do nascimento de Rashi, há tantas outras sobre sua morte. De acordo com uma lenda chassídica, Rashi nunca faleceu. Assim como o profeta Eliyahu, ele não morreu fisicamente, mas ascendeu aos Céus. Isso explicaria o porquê de ninguém saber onde se encontra seu túmulo. Devemos acreditar nessa lenda? Talvez. Mas o que sabemos é que mesmo em seus momentos finais de vida, ele não parou de trabalhar para difundir os ensinamentos da Torá.
Na página 29 da edição de Veneza do Tratado de Bava Batra do Talmud da Babilônia, está escrito: “Aqui faleceu Rashi, abençoada é sua memória. Daqui em diante, segue o comentário de (seu neto) Rabi Shmuel ben Meir”. Mas em outro Tratado do Talmud, no de Makot, na página 19, encontra-se a outra anotação semelhante: “A alma pura de nosso Mestre aqui deixou seu corpo puro. E ele parou de comentar. Daqui em diante, a linguagem é de seu aluno, Rabi Yehudá ben Natan”. Será que Rashi estava escrevendo comentários sobre dois tratados do Talmud simultaneamente? É muito provável.
Se ele tivesse vivido mais, teria escrito ainda mais comentários sobre todo o Talmud Bavli, o Talmud Babilônico, e, também, sobre o Talmud Yerushalmi, o Talmud de Jerusalém. Cada momento de sua vida se reverteu em um enriquecimento espiritual para o mundo.
De fato, não é possível estudar o Talmud e não apreciar a contribuição singular e eterna de Rashi à compreensão desse texto sagrado. É inegável que outros comentaristas também escreveram comentários brilhantes, mas Rashi foi o pioneiro. Além disso, ninguém foi tão claro e didático como ele. É impossível estudar suas obras e não amá-lo – e agradecer-lhe – por elas. Rabi Akiva, o maior Sábio do Talmud, ensinou que um judeu sem a Torá é como um peixe fora d’água. A Providência Divina escolheu Rashi para ser aquele que ensinou nosso povo a nadar.
Aos que perguntarem como se estudava a Torá e o Talmud antes dele publicar seus comentários, respondemos: Poucos estudavam a fundo e apenas os grandes eruditos compreendiam o Talmud. Depois de Rashi, a Torá se tornou acessível a todos os judeus. Rashi mantém o título de Grande Mestre porque foi ele quem “democratizou” a Torá: por meio dele, a Palavra de D’us, que foi transmitida no Monte Sinai, verdadeiramente se tornou morashat kehilat Yaacov – a herança da congregação de Jacob, ou seja, do Povo Judeu.
No ano de 1105 da Era Comum, aos 65 anos de idade, Rashi deixou a Terra e voltou para seu lar, certamente na maior altura espiritual atingível por um ser humano. A data de seu passamento foi registrada no pergaminho Parma de Rossi por um de seus alunos: “A Arca Sagrada, o Sagrado dos Sagrados, o grande Mestre Rabenu Shlomo, o justo de abençoada memória, filho do mártir Rabi Yitzhak, o francês, foi tirado de nós na quinta-feira, o dia 29 do mês de Tamuz, no ano de 4865, na idade de 65 anos, e chamado de volta para a Yeshivá de cima”.
O legado de Rashi
Transcorridos quase mil anos desde seu falecimento, Rashi permanece sendo o pai de todos os comentaristas. Como escreveu Nachmanides: “A ele [Rashi] pertence os direitos do primogênito”.
Desde que Rashi publicou seu comentário sobre os Cinco Livros da Torá, praticamente todos os Chumashim são impressos com seus comentários. Estes se tornaram inseparáveis do Texto sagrado: não se estuda a Torá; se estuda a Torá com Rashi. Em muitas comunidades, há o costume de estudar, ano após ano, a Parashá da semana com os comentários de Rashi.
Mais de 300 obras já foram publicadas analisando os comentários de Rashi. O Maharal de Praga, um dos maiores Sábios e Cabalistas de todos os tempos, escreveu uma obra prima, Gur Aryeh – seu comentário sobre os comentários de Rashi sobre a Torá.
Desde que os escritos de Rashi foram publicados, foram estudados e analisados a fio por Sábios e eruditos que o sucederam. Seus comentários sobre o Talmud servem como fonte para outros comentários, que ajudam a elucidar os ensinamentos dessa Enciclopédia Sagrada.
Rashi viveu na época das Cruzadas – tempos difíceis e violentos, de muito sofrimento para o Povo Judeu. Apesar de sua erudição e fama, de sua espiritualidade, ele nunca se distanciou das necessidades de outros judeus. O que motivou seu trabalho não foi apenas seu amor pela Torá, mas também seu profundo amor pelo Povo de Israel. Sua obra fortaleceu a alma coletiva de seu povo, que estava sendo massacrado por sua lealdade ao judaísmo e sua fé inabalável em D´us.
Tudo o que Rashi fez foi em prol do Povo Judeu. Ele usou toda a sua genialidade, brilhantismo e intelecto incomparáveis, para trabalhar arduamente por um único objetivo: ajudar os judeus a compreender melhor o judaísmo. Esse é o motivo pelo qual escreveu comentários da forma mais simples e direta possível. Ele não se permitiu exibir seu intelecto sem igual e arriscar alienar qualquer judeu que estivesse iniciando seus estudos de Torá.
É notável que Rashi escrevesse sua opinião sobre os Cinco Livros da Torá após ter escrito a maioria de seus comentários sobre o Talmud. Esperar-se-ia que após explicar o Talmud, Rashi escreveria um comentário sobre um texto mais místico – talvez o Zohar, Livro do Esplendor, ou outra obra cabalística – e não um comentário sobre o Chumash, para que até uma criança de cinco anos o entendesse. Mas Rashi, diferentemente de tantos outros comentaristas, optou pela inclusão, não pela exclusão. Ao final de sua vida, ele decidiu escrever sobre a Torá para que todo judeu pudesse compreender e apreciar a Palavra de D’us.
Contudo, é um erro pensar que Rashi era apenas um erudito, um grande professor, e não um místico. Ele possuía poderes sobrenaturais e o domínio da Cabalá. Seus comentários sobre o Talmud e a Torá contêm referências ocultas a conceitos cabalísticos. Tampouco é necessário relatar os milagres que tenha realizado, pois sua própria vida foi um milagre. Suas obras são por si só milagrosas.
Há 613 mandamentos na Torá. Conta-se que Rashi jejuou 613 vezes antes de iniciar sua obra. Esses jejuns fizeram com que ele merecesse uma forte inspiração Divina, que o guiou em toda palavra que escreveu.
Os ensinamentos cabalísticos presentes nos comentários de Rashi sobre os Cinco Livros da Torá levaram Rabi Shneur Zalman de Liadi, o autor da obra cabalística Tanya, a declarar: “Os comentários de Rashi sobre os Cinco Livros são o ‘vinho da Torá’. Eles abrem o coração da pessoa que os estuda e revelam seu amor e temor a D´us”.
Diz-se que quando o homem reza, ele fala com D’us, ao passo que quando ele estuda, D’us fala com ele. Rashi foi o canal por meio do qual D’us fala com nosso povo. O Zohar revela que há um triângulo místico que liga D’us, Sua Torá e o Povo Judeu. Rashi, talvez mais que qualquer erudito que o precedeu ou o sucedeu, fortaleceu esse triângulo. Seu nome se fundiu com a Torá por toda a eternidade. Como Moshé Rabenu, não se sabe onde Rashi está enterrado, pois ele transcendeu a morte: ele continua a viver dentro da Torá, que, como D’us, Seu Autor, é Eterna, e ao lado de todo aquele que estuda seus comentários e o aprecia por sua contribuição inigualável.
Zecher Tzadik Livrachá – Que sua memória seja uma fonte de bênção e mérito para todo o nosso povo.
Bibliografia:
Wiesel, Elie, Rashi. A Portrait, ed. Schocken
Schiller, Gail, Beam me up, Rashi, Olam Magazine www.olam.org
Rabbi Mindel, Nissan, Rabi Shlomo Yitzchaki, Rashi, www.chabad.org
Miller, Chaim. Rashi's Method of Biblical Commentary, www.chabad.org
Um comentário cabalístico sobre o Talmud
Conta-se a seguinte história: Rabi Shimshon de Ostropol, famoso por seus dois livros sobre a Cabalá, decidiu escrever um comentário cabalístico sobre o Talmud, explicando os segredos e ensinamentos místicos dessa obra.
Ele fez uso de toda sua sabedoria cabalística e escreveu um comentário místico. Sendo homem devoto, decidiu sujeitar sua obra ao teste do sonho, sheeilá chalom. A resposta que recebeu dos Céus foi que sua obra era por demais longa e elaborada.
Ele então a condensou e a sujeitou a outro teste do sonho. Recebeu a mesma resposta: “Longa demais”. Novamente reduziu o trabalho, mas, mais uma vez, foi-lhe revelado que sua obra não era suficientemente precisa e clara. Quando ele finalmente a terminou, conseguindo escrevê-la da forma mais concisa possível, descobriu que havia escrito Perush Rashi – o comentário de Rashi sobre o Talmud.
Rabi Adin Steinsaltz
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