JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Entrevista: Stav Shaffir por João K. Miragaya da conexão Israel

A mais jovem parlamentar da Knesset, há pouco mais de três anos poderia ser encontrada de short e chinelo caminhando pelas ruas de Tel-Aviv. Stav Shaffir cresceu num povoado de classe média no centro-norte país, participou do movimento Hanoar Haoved VeHalomed (Juventude Estudantil Trabalhista) até ingressar na aeronáutica, onde, após ser reprovada nos exames para piloto, serviu como jornalista do periódico militar BaMachane (“No Quartel”). Após o exército, Shaffir estudou jornalismo e sociologia na City University em Londres, onde participou de um projeto israelense-palestino para a criação de novas lideranças no Oriente Médio. Ao voltar a Israel, estudou na Escola de Música Rimon, e iniciou sua pós-graduação em história e filosofia na Universidade de Tel-Aviv, firmando sua residência na mesma cidade. Trabalhava como jornalista no site Xnet. Poderia facilmente ser encontrada nos pubs da zona sul da cidade, onde passaria despercebida como qualquer outro habitante de Tel-Aviv.

No verão de 2011 as coisas mudaram bastante para a jovem de então 26 anos. Shaffir despontou como uma das líderes de protestos, que levaram mais de 500 mil israelenses para as ruas, a exigir justiça social. Na pauta, o alto custo de vida, a cobrança por melhores presente e futuro para os jovens, e a solução imediata para o problema do preço da moradia, sobretudo na região central do país. Ao contrário de Daphni Leef (outra das lideranças), Stav Shaffir atendeu ao pedido da líder trabalhista de então, Shely Yechimovitch, e decidiu ingressar nas fileiras do Partido Trabalhista. Hoje é membro da Knesset (parlamento israelense), e tem realizado um trabalho surpreendente na Comissão de Finanças. Um discurso notório seu, igualmente, foi feito neste ano contra o Departamento de Assentamentos. Leia-o aqui traduzido para o português.

No dia 4 de agosto de 2014, Stav Shaffir nos recebeu na Avenida Ben-Gurion, em Tel-Aviv, após algumas semanas de tentativas frustradas de entrevistá-la. Iniciei meus contatos diretamente com ela, cheguei a agendar uma entrevista filmada na própria Knesset, que foi sendo adiada semana trás semana, devido às complicações geradas pela Operação Margem de Proteção. O que poucos sabiam, no entanto, é que em breve aconteceria uma reunião decisiva na Comissão de Finanças (leia aqui), totalmente preterida pelos meios de comunicação em detrimento do conflito em Gaza. Ela abaixo explica mais sobre seu trabalho na Knesset, sobre os protestos sociais de 2011 e sobre seu partido.

A entrevista foi realizada em conjunto com Bruno Lima e os Irmãos Wolo, e contou com a participação de toda a equipe do Conexão Israel.

João: Shalom parlamentar Stav Shaffir. Há três anos 500 mil pessoas saíram pelas ruas do país para exigir justiça social e melhorias nas suas condições de vida. Como você observa atualmente os protestos sociais de 2011, e qual é a sua influência na sociedade israelense hoje?

Stav: Os protestos causaram uma série de mudanças no discurso israelense. Ele passou de um discurso que foca a maior parte do tempo na segurança e nas relações exteriores, para um discurso que compreende que há uma forte ligação entre a situação da segurança, das relações internacionais e a nossa situação interna – a situação econômica de cada cidadão em Israel. As pessoas sentiram que pela primeira vez poderiam sair às ruas e falar sobre seus problemas do dia-a-dia. Boa parte dos israelenses não se sentia à vontade para falar deste tipo de problema: a dificuldade de fechar o mês, ir ao supermercado com as crianças e ser obrigado a dizer: “isso não, isso não, isso também não, precisamos economizar nesta época…”. Desistir de coisas – além de atividades culturais – como atividades e cursos para os filhos. Isso sem falar na moradia: a maioria da população via que até mesmo sonhar com a compra de um apartamento era limitado, se não impossível. E vimos que as nossas condições de alugar um apartamento pagando um preço “normal” era quase impossível. Tudo isso mudou: primeiramente, o público sentiu que tinha força para exigir uma mudança, que há aqui chance de algo diferente. Mudou muito a forma como os meios de comunicação lidam com este tema hoje. Hoje a mídia lida com estas questões de forma bem mais crítica. Nós vimos, desde que eu fui eleita parlamentar, o Primeiro Ministro Netanyahu lidar com estas questões de forma bem mais centrada do que o governo mais direitista radical do seu mandato anterior. Mas vamos com calma: eu acho que o maior ganho que os protestos deram às pessoas é a sensação de esperança. Existe a possibilidade, eu posso fazer coisas como estas. Eu posso sair junto a 500 mil pessoas às ruas e exigir mudanças. Há possibilidade de mudança, há esperança. Uma mudança subentendida num discurso de medo, estagnação, desespero, que é muito dominante na política israelense, para a exigência israelense significativa de um discurso de esperança, de otimismo. É possível.

Protestos Sociais de 2011 em Tel-Aviv.

Protestos Sociais de 2011 em Tel-Aviv.

João: Você é tida como uma liderança dentro do que foram os protestos sociais. O que te transformou num líder? Quem decidiu quem seriam os líderes? Qual era o seu papel neste acontecimento?

Stav: Cerca de duas semanas antes dos protestos eu conheci um grupo de pessoas através da página do Facebook da Daphni, nos encontramos para organizar protestos, dos quais não imaginávamos que contariam com tanta gente (risos). Queríamos fazer algo distinto de levar placas para as ruas, queríamos vir e dizer: de verdade, não temos onde morar. Vir morar em barracas no centro de Tel-Aviv, num bairro de relativo prestígio, e dizer: não temos casa. Mas veja: foi muito surpreendente ver quantas pessoas participaram destes protestos. Muitas pessoas chegaram de repente, e 120 “acampamentos” foram abertos em todo o país, e de dez pessoas que abriram barracas na rua, crescemos para 500 mil pessoas que protestavam por justiça social. E dentro de toda esta situação nós éramos os organizadores, precisávamos ser um pouco mais do que aqueles que organizam as pessoas que vêm para a rua, precisávamos propor soluções. Dizer o que era preciso ser feito. Criamos o Comitê dos Especialistas, do qual participaram mais de 200 especialistas de todas as áreas da economia israelense, que se sentaram conosco para chegarmos às soluções. Eu viajei a várias cidades do país para falar com as mais diversas comunidades e populações variadas: judeus religiosos e laicos, árabes, aposentados, jovens, para compreender as necessidades de toda a população, de cada setor da sociedade israelense. Precisávamos dar um direcionamento. Dentro disso está o papel da liderança. Direcionar para algum lugar as aspirações das pessoas, que eram muito maiores do que nós mesmos.

Bruno: Ainda sobre os protestos sociais: durante as manifestações, você alegou que a política institucional não era uma forma real de mudança, e agora nós te vemos como parlamentar. Há alguma percepçãp de que a política formal é o real caminho para as mudanças?

Stav_ShaffirStav: As duas formas. Se você quer mudança, não pode dizer que vai trabalhar só por um caminho. Deve estar em todos os campos que puder para provocar uma mudança. Tanto nas ruas, em manifestações e em protestos, como dentro da política, ou dentro de outros sistemas, como o sistema educacional. Ou dentro de sindicatos. Você deve estar em todos os lugares para realizar uma mudança destas. Durante os protestos eu era… não tenho palavras para me referir a isso, eu odiava política. Desapontei-me muito com o sistema político, pensava as coisas eram tocadas de forma muito cínica, de forma que não poderiam trazer nenhuma mudança. Achava que nós poderíamos trazer isto de fora. E eu passei por um longo aprendizado durante o ano que se sucedeu aos protestos. No início nós, parte dos organizadores dos protestos, criamos um movimento não-parlamentar. Queríamos preparar ativistas em todo o país para o ativismo social. Começamos a lidar com o sistema político quando começamos a dialogar com políticos para influenciá-los de alguma forma a pressionar por um orçamento mais social, para o aumento de investimento no social. E em um determinado momento entendi que nós tínhamos muito medo do poder. O medo da política era medo do poder. Medo que vemos hoje em muitos jovens, principalmente do lado esquerdo do mapa político. Medo de realmente botar a mão na massa e levar as coisas adiante. O poder é subentendido como algo negativo, como algo que destrói, que não constrói. Talvez por nossas experiências, pelos que detiveram o poder, são experiências muito negativas. Vimos políticos corruptos, vimos as ligações terríveis entre capital financeiro e poder, o que eles nos fazem, o que fazem aos trabalhadores, o que fazem aos jovens, à classe média… e então, ao invés de pensar em não participar porque lá há gente corrupta e cínica, entendemos que precisamos trocá-los. Pensávamos: precisamos fugir disso sem nem sequer tocar nesta sujeira. E em um determinado momento eu pensei: se eu quero mudar, tenho que meter as mãos nisso e mexer as coisas. Ninguém fará isso por nós.

João: Por que o Partido Trabalhista? Há alguma figura que te inspirou? Como vocês estão desempenhando seu papel na oposição?

Stav: O Partido Trabalhista, antes de tudo, possui valores com os quais eu me identifico. A sua proposta econômica e história de lutas pelos direitos dos trabalhadores e dos cidadãos não é de se jogar fora. Por outro lado há a sua preocupação no que tange o conflito, desde sempre, e a história do partido que criou o Estado, do Ben-Gurion, uma figura muito presente na minha infância, que passa a imagem do pioneirismo, de alguém que chega e decide construir, com fogo nos olhos, algo novo, algo até mesmo um pouco utópico. Há também a identidade com uma perspectiva de bem estar social em relação à sociedade, como os kibutzim e as comunidades que foram criadas ainda antes da criação do Estado. Há alguns meses eu estive nos EUA e tive um debate com um pessoal, tanto de direita como de esquerda, sobre o Obamacare. Foi surpreendente a grandeza da rejeição à ideia de criar-se um seguro de saúde universal, até mesmo de pessoas que se identificam com os democratas, não são os que estão do lado direito do mapa político. Ali eu pude ver bem como há algo no DNA israelense, que criou uma sociedade dentro da qual uma das crenças mais básicas é a de que nós precisamos cuidar dos outros. Que nós somos uma grande comunidade, todos temos responsabilidade para com todas as pessoas na comunidade, não importa quanto dinheiro temos na carteira ou de onde o sujeito vem. Esta é uma verdade básica que a geração dos fundadores implantou no DNA israelense. Esta verdade não se mostra unânime agora, nós vemos o que está acontecendo aqui nas duas últimas décadas. Nós vemos a tendência louca do governo de privatizar. O sistema educacional, seus professores, as enfermeiras, o Arquivo Nacional, até o gás natural – e o que não? É um governo com uma tendência neoliberal radical, que simplesmente se priva de suas próprias responsabilidades, e nos vende por um preço muito barato. Mas no nosso DNA, nas nossas raízes, somos absolutamente distintos disto, isso é muito claro. Por isso a resistência tão grande às políticas deste governo durante os protestos sociais. Por isso o governo fez uma pausa. Eu acredito que esta pausa continuará relativamente nos próximos anos. Estes protestos estão distantes de terminar.

Bruno: O que você traz para a Knesset (parlamento) de novo? Como é o seu trabalho na Comissão de Finanças?

Stav_Shafir_MKStav: Antes de tudo eu trago as exigências e as necessidades da minha geração no país. Sou de uma geração que tem necessidades distintas das anteriores. O que nós queremos? Esta é a sociedade israelense. Nossa geração quer viver nesta sociedade. Mas o que ela diz? De que forma nos relacionamos com nossos vizinhos? Como ela funciona internamente? Onde começam e terminam as responsabilidades do Estado e da comunidade? Estes são os pensamentos básicos. As outras coisas se refletem no nosso dia-a-dia. Eu estou apresentando a Lei da Cidadania Honesta, que nos permite finalmente viver normalmente em nossos apartamentos alugados. Eu também alugo um apartamento, e tenho que mudar praticamente todos os anos, porque os proprietários se aproveitam de nossa fraqueza, a fraqueza das gerações jovens, como em quase todo o mundo ocidental hoje. A instabilidade do mercado de trabalho, a falta de autossegurança… aqui em Israel os jovens são liberados do exército com 21, 22 anos, começam os estudos mais tarde do que no resto do mundo. Mas paralelamente aos estudos, precisam pagar o aluguel, trabalhar 45 horas por semana – há uma quantidade muito reduzida de bolsas de estudo e de ajuda de custo –, e então as pessoas estão o tempo todo lutando por algo. Lutam para progredir na vida, para alcançar seus objetivos, para encontrar trabalho… e eu acho que o nosso governo tem responsabilidade nisso. Nós não podemos criar grandes expectativas sobre esta geração, parte deles que agora receberam a chamada para apresentarem-se imediatamente ao exército, gente que entrou aos 18 anos no exército, que antes disso tirou um ano de suas vidas para voluntariado, faz trabalho social, etc… alguém precisa cuidar destas pessoas. Alguém precisa cuidar destas pessoas quando são liberados do exército. Ajudá-los a começar a sua vida pós-exército da melhor forma possível. Garantir o seu futuro, a nossa aposentadoria. Todo um sistema de oportunismo foi desmontado. Sobre a Previdência Social, nós sabemos – eu pedi uma investigação da Knesset há uns meses –, e descobriu-se que daqui a 40 anos não haverá Previdência Social em Israel. O dinheiro acabará. A instituição é gerida com desperdícios, irresponsável, e nós seremos os prejudicados por isso. São perguntas que devem ser respondidas. Com respeito à Comissão de Finanças, lá dentro eu descobri coisas horríveis sobre a forma como é gerido o orçamento do Estado. O nível de conchavos corruptos e interesses privados reproduzem a forma de gerenciamento do orçamento. Corrupção que o Estado lava. Práticas que em nenhum negócio seriam aceitáveis. Mas o Estado simplesmente as torna possíveis. Na verdade o que eu fiz foi descobrir qual era o orçamento secreto do Estado de Israel. E descobri que o orçamento que nós vemos, pelo qual lutamos uma vez por ano na Knesset, na verdade há um orçamento secreto, o orçamento verdadeiro, que passa silenciosamente pela Comissão de Finanças, e permite que interesses políticos direcionem o seu uso. Eu me convenci que isto simplesmente não pode acontecer desta forma, e comecei a exigir que uma série de ministérios monitorem este “orçamento secreto”, e mudar isso. Movimentei um grande número de voluntários, dispostos a trabalhar nesta investigação, estive presente nas mais diversas reuniões da comissão, para como parlamentar compreender como as coisas acontecem ali, como acontecem no Ministério das Finanças. E consegui salvar que um orçamento de dezenas de milhões, que quase foi aplicado em lugares onde a maioria da população israelense não concordaria. O objetivo é direcioná-lo para alvos positivos. Falando da forma mais simples possível, eu encontrei o dinheiro que nos pode servir para melhorar os serviços públicos de bem-estar social, a educação, a Previdência Social… construir aqui um Estado viável. Agora meu objetivo é que o dinheiro realmente vá para estes lugares, e não desperdiçá-lo. Dentro desta luta eu fui à Suprema Corte de Justiça, e descobri que o Ministério das Finanças descumpre uma das leis básicas 1, quando se serve destas práticas desviadas. Hoje eu me encontro num processo de negociações com o Ministério das Finanças, com supervisão da Justiça, com o intuito de criar uma nova forma de gerenciamento, mais eficiente, muito mais transparente, e que seja também muito mais honesta para os cidadãos israelenses. Neste processo, conseguimos fazer com que todo o orçamento do Estado fosse divulgado de forma transparente. Hoje, finalmente, depois de todas as mudanças, todo o orçamento se encontra na internet em rede aberta, todo o público tem acesso a ele, e isto já é uma revolução.

João: Muito obrigado.

Stav. Obrigada.

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