JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Judaísmo e filosofia em Emmanuel Lévinas, à escuta de uma perene e antiga - Luigi Bordin

O ensaio pretende mostrar como Lévinas, depois do encontro e confronto
com o pensamento heideggeriano, começa a reconsiderar a tradição da filosofia ocidental em base à cultura judaica. Isto o leva a colocar a alteridade como a questão fundamental,desenvolvendo o seu pensamento, de um lado, numa linha filosófico fenomenológica e, de outro, segundo uma perspectiva hermenêutico-talmúdica em que, mediante uma contínua interrogação, vai solicitar os grandes textos da tradição judaica, à escuta de uma antiga sabedoria. Daqui a atualidade de sua proposta éticofilosófica em contraponto à cultura pós-moderna, relativista e fragmentária, na qual a ética leiga, natural e racional, entrou em crise.

JUDAÍSMO     E     FILOSOFIA EM     EMMANUEL     LÉVINAS À     ESCUTA     DE     UMA     PERENE     E     ANTIGA     SABEDORIA

Luigi Bordin UFRJ 552 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998 l —

Pensar depois de Auschwitz

A obra de Emmanuel Lévinas apresenta-se em sua luz mais exata quando projetada no pano de fundo dos traumas e dos choques da história humana, como a tragédia do holocausto, pois é nesse contexto que sua filosofia surge como modalidade de resposta à crise do mundo moderno e como uma provocação1. Diante dessas catástrofes, chegou à mesma conclusão de Theodor Adorno, de que a violência, a guerra e toda usurpação, são causadas por um sistema unidimensional que aniquila o indi- víduo e por um tipo de saber que se tornou adequação ao sistema2. A referência a Auschwitz é, nos dois pensadores, essencialmente filosófica. Auschwitz se tinha tornado um ponto de não retorno de uma degradação humana, interpretada pelos dois filósofos como a conclusão lógica de uma filosofia da totalidade, onde o saber se identifica com o poder, e a que se precisava responder com uma inversão de pensamento3. “O alvo polêmico dessa orientação de pensamento é certamente Hegel, mas também toda filosofia que se apresenta como saber absoluto e que dá a primazia à consciência teórica e à representação”4. Com efeito, Adorno, apesar de consi- derar a filosofia hegeliana uma referência fundamental, recusava- lhe todavia o desfecho positivo no sistema, na medida em que com isso, segundo ele, Hegel teria legitimado, sem avaliá-la criticamen- te, a dinâmica totalitária da sociedade burguesa. Pensar depois de Auschwitz significou para eles, como para mui- tos outros intelectuais nessa época, a urgência de sair desses parâmetros filosófico-culturais. Adorno procurou alcançar tal obje- tivo através de uma genial leitura desconstrutiva do próprio Hegel, assumindo porém o elemento dinâmico e negativo de sua dialética. Lévinas, ao invés, empreendeu uma original desleitura de Heidegger.

1 A. NEHER, L’esilio della Parola, Casale Monferrato: Marietti, 1983, 152, 153. 2 T. W. ADORNO, Dialettica Negativa, Torino: Einaudi, 1975, 326, 327; E. LÉVINAS, Difficile Liberté, Paris: Albin Michel, 1976, 406. 3 A obra de LÉVINAS, Autrement qu’etre ou au-dela de l’essence, La Haye: Ed. Nijhoff, 1977, pretende oferecer a indicação de um novo caminho e dar-se, como ele diz, como uma epígrafe do livro: um testemunho “à memória dos seres mais pró- ximos entre os seis milhões de assassinados pelos nazistas, junto aos milhões de seres humanos de toda confissão e de toda nação, vítimas do mesmo ódio do outro homem, do mesmo anti-semitismo”. 4 E. BACCARINI, Lévinas, Soggettività e Infinito, Roma: Studium, 1985, 25. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998      553

 

 2 — Para além de Heidegger, experiência judaica e filosofia

Heidegger foi um marco no itinerário filosófico de Lévinas; com ele aprendeu a superar o racionalismo e o idealismo da cultura moderna5. Nos primeiros textos da obra levinasiana comparece um elemento cla- ramente heideggeriano: a contestação radical do pensamento teorético. Com efeito, Heidegger contestou o papel que a tradição tinha atribu- ído à teoria, mostrando como o momento cognitivo, tematizador, es- tava enraizado em comportamentos humanos não imediatamente cognitivos. Através da mediação heideggeriana, Lévinas acusa, tam- bém ele, a filosofia racionalista ocidental de teoreticismo e de violência na medida que, não enxergando sua origem não teórica, oculta seus pressupostos a ela inacessíveis, tornando-se incapaz de sair de si mesma. Todavia, apesar de sua grande admiração por aquilo que Heidegger representou na história da filosofia, e de muito dever a ele em termos de pensamento e de método, sente a necessidade de afas- tar-se de sua filosofia do ser6. Nas específicas condições desastrosas dos anos 20-30, pareceu-lhe que pôr como a questão mais fundamental a do ser, isto é, daquilo que é mais abstrato e longínquo do homem, fazendo disso a chave para chegar ao sentido, não podia senão revelar-se um malogro. Não liber- tava o homem da inautenticidade e da náusea. Uma vez entendido o ser como fundamento, o homem continuava a sentir-se prisioneiro de um mundo tragicamente insensato, marcado pela violência, em um campo de forças que não pertence a ninguém. A abertura à dimensão ontológica não libertava efetivamente do niilismo, do naufrágio, do vácuo7. Para sair da impessoalidade do ser ( “Il y a”), Lévinas, pois, propõe um outro caminho. A partir das experiências feitas na Segunda Guerra mundial e como testemunha do holocausto, perguntou-se se- riamente se, enquanto judeu, podia continuar a reconhecer-se somente através das categorias claramente definidas pela filosofia ocidental, ou se a tragédia que o tinha posto diante da singularidade de seu destino, não as colocava em crise, mostrando não ser possível, através delas, buscar o sentido da história no terreno da política. Seguindo a lição de Franz Rosenzweig, e pondo-se em sintonia com Martin Buber, começou a aprofundar sua identidade judaica e a procurar

- 5 E. LÉVINAS, Ética e Infinito, Lisboa: Ed. 70, 26 e 35; IDEM, En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger, Paris: Vrin, 1972. 6 IDEM, De l’évasion, Montpellier: Fata Morgana, 1982; Totalité et Infini, LA Haye: Nijhoff, 1978, 43-45. 7 IDEM, Ética e Infinito, 47 e 54; ver também: Le temps et l’Autre, Montpellier: Fata Morgana, 1979. 554 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998  o sentido dos eventos que tinha vivido, no terreno da ética e bus- cando um diálogo entre filosofia e religião. Daí em diante seu pensa- mento será marcado por uma dura crítica à autonomia do filosofar e por um contínuo inspirar-se nas fontes do judaísmo. Distanciando-se da filosofia heideggeriana do ser, começou a reconsi- derar inteiramente a tradição filosófica ocidental a partir da cultura judaica, remetendo-se às tradições mosaica e talmúdica. Porém, se de um lado, aborda a história da filosofia numa alternativa de sentido e de inteligibilidade, em que noções bíblicas como eleição, santidade, obediência, etc, têm uma precisa cidadania; de outro, os textos sagra- dos são por ele solicitados por uma leitura decididamente filosófica e, pois, “greco-ocidental”. A filosofia de Martin Buber estimulou Lévinas a pensar uma nova espiritualidade, oferecendo-lhe uma ocasião ulterior para recuperar e aprofundar o sentido do humanismo judaico. Como Buber, acha que a relação homem-homem é mais originária que a relação homem-ser. Trata-se de uma visão propriamente judaica: com efeito, a injunção primeira que Deus endereça ao homem na Bíblia é: “Não matarás”, que é menos uma simples proibição e mais um comando que implica o respeito absoluto à finalidade de salvaguardar a fraternidade huma- na8. “Descobri através do pensamento judaico”, relata ele, “que a ética não é uma simples região do ser. O encontro com o outro nos oferece o sentido primeiro, e nesse prolongamento encontramos todos os ou- tros. A ética é uma experiência decisiva”9. “Se olharmos de perto os textos proféticos, perceberemos que o outro é descrito ali sempre como o mais fraco de nós. Tenho sempre uma obrigação para ele. Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov , diz que somos todos responsáveis por todo o mundo, e eu próprio ainda mais do que os outros. Sou sempre responsável, cada um não pode ser trocado por outro. Aquilo que faço, ninguém pode fazê-lo em meu lugar. O núcleo da singularidade é a responsabilidade”10. No judaísmo, o ato mediante o qual os israelitas aceitam a Torá pre- cede o conhecimento. Para eles, é a fonte do sentido e o evento fun- damental que instaura a ética11. Antes da liberdade, antes do sujeito constituído como liberdade, existe uma responsabilidade irrecusável. A escolha da Revelação, da Lei, da Torá, caracteriza o homem como resposta, como consciência da destinação ao outro. O sentido pois não está no cuidado de si, mas na responsabilidade para com o outro. É

8 IDEM, Noms propres, Montpellier: Fata Morgana, 1976. 9 C. DELACAMPAGNE (org.), Filosofias, entrevistas do Le Monde, Rio de Janeiro: Ed. Ática, 1990, 130. 10 Ibidem. 11 E. LÉVINAS, Difficile Liberté, 201-206 (“Aimer la Thora plus que Dieu”). Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998      555

por isso que o esquecimento mais radical, de que é responsável a filosofia ocidental, não é, para Lévinas, o da questão do sentido do ser, como afirma Heidegger, mas o da alteridade. Do ponto de vista filosófico, a tarefa de Lévinas não foi a de escrever uma nova ética, mas de mostrar que a perspectiva ética deve ser o ponto de partida de toda filosofia. A descoberta de que eu sou um sujeito infinitamente responsável pela vida do outro é o início de uma meditação em torno da pergunta sobre o ser. A tomada de consciência de minha responsabilidade é o início de cada conhecimento em geral, pois cada conhecimento deve ser purificado de sua tendência natural ao egocentrismo. A base da consciência de si não é a reflexão, mas a relação com o outro. Lévinas recusa conceder à dialética hegeliana do senhor e do escravo, à guerra das consciências, o privilégio da origem da consciência de si. Esta é mais o fruto do milagre da saída de si mediante a abertura ao outro, que, antes de ser uma força alienadora que me ameaça, me agride e me esvazia, pode ser uma possibilidade de abertura que rompe as correntes que me prendem a mim mesmo.

 3 — O outro como ausência e mistério:

Lévinas e Proust Em um belo ensaio sobre o amor, inspirado na obra de Lévinas, o escritor e filósofo judeu-francês, Alain Finkielkraut, tece algumas su- gestivas comparações entre Lévinas e Proust que iluminam de forma penetrante o grande tema, capital em Lévinas, do outro como ausência e mistério. O rosto do outro, assim como nos é apresentado por Lévinas, evoca a memória do rosto amado, como é descrito nas grandes intrigas passionais de A la recherche du temps perdu de Proust, e é também através de uma fenomenologia da voluptuosidade de uma relação deste tipo, em sintonia com certas introspecções psicológicas de Proust, que Lévinas introduz sua reflexão ética em algumas belíssimas páginas da IV seção da obra Totalidade e Infinito12. Nestas, em uma forma finíssima, nos mostra como também no face-a-face erótico pode dar-se a abertura ética. Ele não busca o Eros no Ágape, mas o traço do Ágape no Eros, vendo no comércio dos corpos também a possibilidade de uma comunicação superior13. Com Bataille e Sartre, recusa identificar erotismo e sexualidade, não sendo a voluptuosidade um prazer solitário

- 12 Ver a última sessão de Totalité e Infini. 13 A.FIENKIELKRAUT, La sagesse de l’amour, Paris: Gallimard, 1984, 17 556 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998 

como beber e comer14. O que está ocultado geralmente, segundo ele, no discurso sobre o instinto sexual é o Eros como via de acesso ao outro. Contra Bataille, porém, exalta a separação dos seres no encontro dos corpos: o Eros não é o teatro efêmero onde se dá a descontinuidade entre indivíduos, mas o momento onde se abre e se explora um abis- mo vertiginoso: não há comunhão erótica; descobre-se, ao invés, o Desejo15. Contra Sartre, aponta, na dualidade erótica, não as manobras de um conflito, mas o patético do amor: o outro se me revela não um objeto de que me aproprio, ou uma liberdade que devo circunscrever para afirmar a minha; antes de ser violência ou violação, o erotismo é a experiência da inviolabilidade do outro16. Com singular audácia, Lévinas dá a esta reticência impalpável do outro, até na sua nudez mais obscena, o nome de pudor. Na busca de um complemento, de um partner, encontro o irredutível: queria um corpo que se doasse a mim, uma alma que se unisse à minha, e descubro só a obsessiva proximidade de um rosto; desejava o acordo perfeito e faço expe- riência de uma distância insuperável, esperava conquistar e pos- suir um outro ser, mas este permanece para mim obstinadamente exterior, a relação que me une a ele não anula mas confirma a separação17. Encontramos todos estes motivos também em Proust. “O ensinamento mais profundo de Proust”, escreve Lévinas, “se todavia a poesia im- plica ensinamento, consiste em situar o real em relação com o que permanece outro, com o outro como ausência e mistério....”18. Proust traz a contribuição inédita ao debate sobre o amor, mostrando como ele visa o enigma do outro, sua distância e incógnita, também nos momentos mais íntimos. Em sua grandiosa obra, aponta, como Lévinas, para a dessimetria do amor; nas páginas da Recherche, a paixão amo- rosa se alimenta do mistério que, desvelado, a destrói19. A paixão é sofrimento, pois quem ama nunca é igualmente correspondido. Com efeito, o amor nos torna cegos, mas esta noite passional não é ne- cessariamente negativa. Talvez seja forçoso desejar através do sofri- mento para aceder, além da beleza e das qualidades, àquilo que faz a alteridade do outro. Amar é expor-se, votar-se, submeter-se, como diz Lévinas; o amor nos faz refém do outro. É isto que provoca o deses- pero do amante, mas que é também o seu tesouro mais caro, pois a violência que sofre se transforma no valor que o afirma. “Incomodado, habitado até a obsessão pelo outro, extenuado de esperar, o amante

14 Ibidem. 78. 15 Ibidem. 16 Ibidem, 79. 17 Ibidem. 79-80. 18 E. LÉVINAS, L’autre dans Proust, in Noms propres, 155-56. 19 A. FINKIELKRAUT, op. cit., 54. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998      557

prefere ainda a indigência, onde caiu, ao seu antigo domínio”20, pois trata-se de uma passividade que não é uma capitulação. Mais que uma ofensa aos bons costumes e uma transgressão das normas, é nisso tudo que consiste o escândalo do amor. O mérito de Proust é ter mergulhado a fundo nos enigmas da paixão amorosa, o de Lévinas ter aí também sondado a dimensão ético-meta-física.

4 — Linguagem e profetismo, a vertente talmúdica de Lévinas

Pela vontade de entender filosoficamente a sabedoria judaica da Bíblia e do Talmud, Lévinas dá a seu pensamento uma dimensão hermenêutica que, em sua obra, se prolonga além de uma vertente filosófica propriamente dita, em outra mais especificamente talmúdica: uma série de ensaios, de meditações que remetem especificamente a textos das Escrituras e particularmente do Talmud21. Tais textos, em razão de seu caráter heterogêneo e peculiar, parecem destinados a frustrar uma racionalidade animada pelo desejo de sua própria coe- rência, pois se justificam por um modo de pensar em que a coerência está na exigência ética22. Por sua forma, o Talmud se apresenta como um discurso irredutivelmente plural, comentário de comentários, turbilhão de questões em que a maior parte permanece sem res- posta. O interesse da filosofia nesse tipo de pensamento está em sua dialética aberta e na relação à verdade que ela implica, onde a multiplicidade dos aspectos é irredutível e alimenta uma eterna discussão23. A hermenêutica que, nesses ensaios, Lévinas usa não é a clássica, que frisa a necessidade de se recorrer à totalidade da obra para interpre- tar a parte, e que vai da letra ao espírito da letra; ele assume judaicamente aquela que dá a primazia à letra através de uma contí- nua interrogação e solicitação de sentido24. Trata-se de compreender

20 Ibidem, 73. 21 D. BANON, Une herméneutique de la sollicitation, Lévinas lecteur du Talmund, in AA.VV., Emmanuel Lévinas, Les Chahiers de la nuit surveillé, Paris: Ed. Verdier, 1984, 95-115; E. LÉVINAS, Difficile Liberté, essais sur le judeisme; IDEM, Du Sacré au Saint, cinq nouvelles lectures talmudiques, Paris: Éd. de Minuit, 1977; IDEM, L’au-delà du verset, Lectures et discours talmudiques, Paris: Éd. de Minuit, 1982. 22 D. BANON, op. cit., 103; J. GREISCH, Du vouloir-dire au pouvoir-dire, in AA.VV., Emmanuel Lévinas, Les Chahiers de la nuit surveillé, 123. 23 J. GREISCH, op. cit., 213, 214. 24 D. BANON, op. cit., 107,111. 558 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998

a unidade interna de um texto, de um livro, onde a leitura não é guiada por um magistério ou unificada por um “credo”, mas pelo conceito da Lei, da Torá, em função não de uma teoria mas da prática ética25. O intérprete deve remontar do sentido objetivo do texto ao “que- rer-dizer” do qual procede, pois cada um possui um aumento de sentido que deve ser exposto. Essa oposição entre “poder-dizer” e “querer-dizer” nos põe no centro da hermenêutica de Lévinas, que nos mostra o caráter inspirado e profético de toda a linguagem que possui significação ética26. “Eu penso”, diz ele a respeito, “que não só a Bíblia, mas através de cada literatura fala o rosto humano(...). Existe participação nas sagradas Escrituras das literaturas nacio- nais, em Homero e Platão, em Racine e Victor Hugo, em Tolstoi ou Agnon...”. “A linguagem, na hora de sua verdade ética, isto é, de sua plena significação, é inspirada(...), pode dizer mais do que diz, e assim a profecia não é uma generalidade, mas a espiritualidade do espírito que se expressa”27. O profetismo não é um fenômeno religioso particular da história das religiões, toda linguagem que não trai o movimento da significância à significação, toda a lingua- gem que resiste à tematização é, de fato, uma linguagem profética e inspirada, seja religiosa ou não28.

5 — Atualidade de Lévinas, à escuta de uma antiga sabedoria

 No nosso horizonte pós-moderno, em que não existe mais um sen- tido unívoco, quando dizemos ética arriscamos, com esse termo, contrabandear muitos conteúdos diferentes. Em geral, sob a noção de ética, somos modernamente levados a pensar numa teoria raci- onal da qual se deduzem comportamentos humanos. Também no pensamento cristão tradicional a ética se constrói, em continuidade com a filosofia clássica, como edifício especulativo, dedutivo e sistemático. Tudo isso, porém, está longe do pensamento bíblico. A Torá proíbe qualquer indagação baseada em critérios racionais que se esforce em compreender, e, por conseguinte, justificar a razão da norma imposta por Deus

29. O fundamento da moral na Bíblia é 25 J. GREISCH, op. cit., 216. 26 Ibidem. 27 E. LÉVINAS, Ética e Infinito, 111. 28 J. GREISCH, op. cit., 220. 29 S. QUINZIO, Radici ebraiche del moderno, Milano: Ed. Adelphi, 1991, 138, 139. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998      559

a presença daquele valor absoluto que não é uma ordem articulada de leis universais, nem a consciência humana da liberdade. Na base da relação entre o homem e o valor moral, não estão as rela- ções homem-lei, homem-ordem, homem-instinto, homem-cosmos- harmonia universal, mas a aliança entre o homem e o seu Deus. O homem bíblico se define como resposta ao Deus que o chama: aqui está sua medida e a intencionalidade de seu agir30. Mas quem é este Deus? Não é o demiurgo que cria o mundo com base em idéias eternas, construindo uma ordem cosmológica da qual, depois, vai deduzir uma ordem ética. É o Deus da palavra que, antes de tudo, fala ao homem através da interpelação moral, naquela primeira criação que é a da consciência humana enquanto responsável. Aqui a ética não é pensada como prolongamento da criação do mundo, mas a criação do mundo é pensada como cha- mamento ético31. Hoje, na cultura pós-moderna e fragmentária, vemos esmigalhar- se qualquer possibilidade de se construir uma ética como sistema universal de normas e estamos aprendendo a reconhecer a relati- vidade de cada código, não mais sustentado pela pretensão abso- luta da razão32. Isto é para nós certamente uma tragédia, mas tam- bém pode paradoxalmente ser um início de novos horizontes, e é nesse contexto que se pode vislumbrar a atualidade da filosofia de Lévinas. Sua originalidade se manifesta sobretudo no deslocamento do éti- co à posição de filosofia primeira. Não funda a ética, como na tradição cristã-ocidental, como um edifício especulativo-dedutivo- sistemático. Não a funda, como Kant, em um ideal de humanidade comum a mim e aos outros, ou, como Apel e Habermas, na estru- tura transcendental de um agir comunicativo, pois, segundo ele, estas propostas mantêm ainda a centralidade do eu como portador de responsabilidade. A proposta é outra: não a de uma ética da responsabilidade, mas como responsabilidade, onde a dedicação ao outro é a própria estrutura que nos constitui enquanto sujeitos. “Definir o sujeito por sua resistência ao condicionamento, ao invés de inocentá-lo, acorrentando-o a um determinismo que ignora, (...)dar ao homem o poder que lhe indica o seu lugar no ser; opor, em uma palavra, a reflexão ética à desculpa do homem que, hoje,

30 C. CHALIER, Singularité juive et philosophie, in AA.VV., Emmanuel Lévinas. Les Chahiers de la nuit surveillé, 82; A. RIZZI, Crisi e ricostruzione della morale, Torino: SEI, 1992, 37. 31 A. RIZZI, op. cit., 41. 32 S. QUINZIO, op. cit, 144 560 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998

está no lugar do humanismo; isto é, sem dúvida, uma das originalida- de mais decisivas da filosofia de Emmanuel Lévinas”33. “O pensamen- to da responsabilidade, sua centralidade na Bíblia, suas conseqüências quanto à idéia que o homem tem dele — a primazia da eleição sobre a liberdade, a impossibilidade de desistir, de escolher a comodidade ao preço da solidariedade, a primazia enfim da humildade e da dis- ponibilidade(...) — não são tematizados filosoficamente como tais pela tradição (judaica). Estas idéias se elaboram, de fato, fora do campo filosófico. A maior parte dos sábios do judaísmo não viu a necessidade de dirigir-se ao Dito filosófico, temendo a perversidade dos efeitos deste logos”34. Bastava a eles a Lei, a Torá. Um ponto fundamental da Bíblia é que o mundo, apesar de sua iniqüidade e violência, recebe graça e perdão, e não destruição, porque os justos intercedem e o salvam. Nos textos proféticos o próprio Deus é apresentado como aquele que está próximo ao homem, que, sofrendo, expia em substituição de um outro. É este absoluto de doação e de humildade que impede que o mal triunfe e torna possível a cada instante a salvação. Retomando este conteúdo da mensagem bíblica e dando-lhe forma filosófica, a meditação audaciosa de Lévinas leva a identificar pen- samento messiânico e pensamento filosófico, a subsumir ao conceito de substituição este poder do justo de suportar o sofrimento do mun- do. Com seu gesto, propõe-se fazer entender, segundo as modalidades do Dito filosófico, um princípio bíblico essencial — o messianismo — ignorado pelos gregos, tentando levar à inteligibilidade a racionalidade de um Dizer mais antigo35. Sobretudo em sua obra decisiva, Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, procura libertar-se da palavra e da lógica do ser a fim de se educar na palavra e na lógica do rosto. Daí o uso de termos como eleição, expiação, substituição, etc., que reenviam diretamente às fontes de uma antiga e perene sabedoria

36. 6 — Convite a uma religião para adultos: a ética como filosofia primeira

“Rompendo com a visão tradicional da subordinação da filosofia à religião ou de sua recíproca indiferença, Lévinas vai explorar a área de fronteira entre elas, sem nunca ultrapassá-la, nem refutando as razões de uma com o credo da outra”

33 A, FINKIELKRAUT, op. cit., 114. 34 C. CHALIER, op. cit., 91. 35 Ibidem, 97. 36 S. PETROSINO, D’un livre a l’outre, Totalité et Infini — Outrement qu’être, in AA.VV., Emmanuel Lévinas, Les Chahiers de la nuit surveillé, 194-210. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998      561

 

37. Ele permanece filósofo até o fim, até o limite onde, descrevendo a passagem da ontologia (preocupação pelo ser) à ética (preocupação pelo outro) e a palavra de Deus colhida no rosto do outro, recorre a um vocabulário de ressonância religiosa em que palavras como revelação, eleição, profetismo, etc., liberadas da aura que as cerca e, de certo modo, desconvertidas, passam a integrar- se ao campo filosófico38. Desta forma, Deus, que vem concretamente à idéia através do rosto do outro, em que lemos o mandamento “Não matarás”, não pode certamente ter assim sua existência provada; mas é esta circunstância que faz sua palavra adquirir sentido — é a reve- lação ética de Deus39. É a saída da ordem da representação e a emer- gência da ambigüidade e da alusão num rastro, num indício, num vestígio. Um Deus assim revelado pode considerar-se menos uma presença que uma ausência que, talvez, não seja outra coisa que a grandeza e a humildade de Deus transcendente que não promete nenhuma consolação nem salvação, que nos convida, porém, à aven- tura de uma “fraternidade gratuita”40.Trata-se de uma religião para adultos e não aquela a que se recorre para sermos aliviados do peso da nossa existência. O culto consagrado ao outro, que ele chama de “religião”, não se dá por impulso na ebriedade e na doçura, mas na consciência de uma extrema responsabilidade41. Daí a recusa da esfera do sagrado, que ele considera como uma penumbra onde floresce uma série de formas de degenerescência pseudo-espirituais (bruxaria, certos tipos de espiritismo, astrologia....) e tentações idolátricas. Em Do Sagrado ao Santo, Lévinas reivindica explicitamente a demitização do religioso, operada pela sabedoria judaica, como passo fundamental que conduz a história da humanidade do encantamento do mito ao sentido ético, como última inteligibilidade do humano e também do cósmico42. “A afirmação da independência humana”, escreve Lévinas, “de sua presença inteligen- te numa realidade inteligível, a destruição do conceito numinoso do sagrado implica o risco do ateísmo. É preciso enfretá-lo. Somente através disso o homem se eleva à noção espiritual do transcendente”43. O juda- ísmo, é claro, não pretende negar Deus, mas afirma que o homem existe fora de Deus, dotado de iniciativa própria, e que, através da Revelação, Deus lhe confia o seu destino, por sua conta e risco. A Cabala coloca estas significativas palavras na boca de Deus: “Se testemunharem de mim, então eu serei Deus, caso contrário, não

”44. 37 S. MALKA, Leggere Lévinas, Brescia: Queriniana, 1986, 24. 38 Ibidem. 39 Ibidem, 25. 40 Ibidem, 26. 41 Ibidem, 83. 42 S. QUINZIO, op, cit., 33. 43 E. LÉVINAS, Difficile Liberté, 29. 44 F. ROSENZWEIG, L’étoile de la rédemption, Paris: Seuil, 1982, 203. 562 Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998

 Eis a tarefa do homem em aliança com Deus, segundo o espírito bíbli- co, e eis a essência da filosofia de Lévinas, embora ele não se inspire para isso na Cabala e tome, ao invés, explicitamente partido em favor da tradição talmúdica.  Em sua vasta e contundente obra, ele teve o cuidado de perseguir as origens da preocupação ética, sem porém tentar desvelar seu mistério e definir seus contornos. Frustrado de todos os movimentos que usa- vam a bandeira da moral para legitimar suas traições, recusou-se a formular um discurso positivo sobre a ética ou a reduzi-la à noção de direitos humanos, para fazer dela, ao invés, um evento e uma tarefa.

Endereço do Autor: Rua Pontal do Sul, 503 Jardim Esplanada 26013-350 Nova Iguaçu — RJ

 

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http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/69...

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Jayme, impossível abrir o link para o site e também impossível abrir o arquivo Bordin.mht.

Há solução? Esse tema me interessa muito.

Todáh.

Davy Bogomoletz

Querido Mestre Davy,

 Salvei todo o texto no corpo do artigo agora voce pode ler sem ter que abrir por PDF.

Um Forte Abraço!

 

Shabat Shalom

Judaísmo e filosofia em Emmanuel Lévinas, à escuta de uma perene e antiga - Luigi Bordin

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