Fragmentação do judaísmo ou fim dos tempos? Jayme Fucs Bar
Israel é um país muito especial em todos os sentidos. Para entendê-lo, é necessário não só muito estudo, mas também lançar um olhar atento sobre sua complexidade, que, em grande parte, acontece em função do desenvolvimento e das fragmentações existentes no judaísmo na atualidade.
Um bom exemplo é saber como definimos “esquerda” e “direita” em Israel. Essas posições políticas não são exatamente socioeconômicas como são no Brasil e no resto do mundo. Em Israel, esquerda e direita têm a ver com a questão do conflito israelo-palestino.
Para entender o que quero dizer quando falo sobre a complexidade, é que você pode encontrar muitas pessoas que são consideradas de “direita” no contexto desse conflito, mas que, no contexto socioeconômico, têm um posicionamento de “esquerda”; e muita gente de “esquerda” no que diz respeito ao conflito e na questão socioeconômica mantém posições de “direita”. Eu sei que é difícil de entender! Mas, aqui em Israel, isso é uma realidade!
Para ajudar a entenderem essa complexidade, procurando acalmar os ânimos, tão cheios de ódios e de acusações mútuas, apresento a vocês um pouco de como vejo essa fragmentação existente no judaísmo atual!
Talvez a única afirmação sobre a qual possa existir algum consenso entre os judeus é que Israel, no contexto global, continua a exercer um papel de protagonista no mundo judaico. As relações entre as comunidades judaicas da diáspora e o Estado de Israel são constantes, em particular, porque Israel se tornou o espaço real de fortalecimento da identidade judaica frente à cultura global.
Quanto ao restante, todo o mais que envolve o povo judeu, não existe consenso. O verdadeiro divisor de águas entre os judeus das comunidades da diáspora e de Israel não é a discussão socioeconômica, mas sim as tendências adotadas por cada judeu diante das posturas dos diferentes governos de Israel no contexto do conflito israelo-palestino, além da própria questão religiosa.
Isso não quer dizer que não há problemas econômicos e sociais em Israel, mas isso não é a prioridade das discussões, nem Israel e nem nas redes sociais de todo o mundo judaico. Na verdade, o que mais discutimos, e divergimos, são as questões ligadas ao conflito e à separação entre Estado e religião! É sobre isso que as opiniões se divergem: as questões, os temas e os acontecimentos são tratados de forma positiva ou negativa entre os judeus, conforme o pensamento de cada um.
Judeus do mundo inteiro se sentem cada vez mais pressionados e cobrados a explicar, justificar, defender e, também, criticar as posturas do Estado de Israel diante do mundo não judeu, ou mesmo no interior das comunidades judaicas.
Essas relações entre opiniões distintas se manifestam, cada vez mais, em tendências e concepções distintas, causando o surgimento de uma tensão interna entre os judeus, uma tensão que jamais apareceu durante toda a nossa história pós-emancipação!
Tudo isso se assemelha aos momentos finais da destruição do Segundo Templo, quando surgiu o que chamamos de ódio gratuito entre judeus, o sinat hinam, vivenciado por um judaísmo que estava exatamente como está hoje: totalmente fragmentado. O perigo não é a sua fragmentação, mas sim o ódio entre os próprios judeus.
Para ajudar a entender esse processo de fragmentação e ver se conseguimos aceitar o direito legítimo de cada um pensar de forma diferente, no judaísmo, sem precisar odiar outros judeus por isso, apresento alguns desses “fragmentos judaicos”, e veja onde você talvez possa se identificar e se incluir.
Israel como centro da civilização
Os reconstrucionistas, que constituem uma nova manifestação pós-moderna do judaísmo criada por Mordecai Kaplan (1893-1983), defendem a ideia de que o judaísmo é uma civilização milenar, a qual, de um lado, deve estar integrada às sociedades e nações onde nasceram os judeus, mas, de outro, entende que o judaísmo tem seu próprio centro civilizatório, que é o Estado de Israel, sendo que é preciso que haja relações constantes entre as comunidades e seu centro civilizatório.
Isso quer dizer que os judeus podem decidir viver nos seus estados nacionais, mas jamais abandonando a sua relação com o seu centro civilizatório judaico, que é o Estado de Israel.
Mordecai Kaplan e Moisés Mendelssohn, que viveram em tempos diferentes, tinham a mesma mensagem: que devemos viver como bons e leais patriotas brasileiros, americanos, franceses etc., mas nunca esquecer que o nosso judaísmo está totalmente relacionado com nossa civilização que tem como centro o Estado de Israel. Em seu livro Judaísmo como civilização, Kaplan define bem esse contexto: “Não somos somente povo, diáspora, religião, cultura ou filosofia; somos um pouco de tudo, pois somos uma civilização”.
Israel como centro de visão messiânica
Para os religiosos fundamentalistas e ultranacionalistas, o judaísmo e Israel são frutos de uma visão messiânica. Por isso, essas pessoas se posicionam contrariamente a qualquer tendência de mudança que possa ameaçar essa crença, julgando que, para alcançar seus objetivos, devem usar todos os recursos, pois estão regidos pelas leis divinas. Essas pessoas almejam criar o Terceiro Templo e um novo grande Reino de Israel, crença que teve como consequência o assassinato de Yitzhak Rabin, em 1995, cometido por um ativista religioso ultranacionalista. Do mesmo modo, as ameaças sofridas por Ariel Sharon por ocasião da devolução do território de Gaza, em 2005, se encaixam nesse contexto.
Atualmente grande parte dessa vertente está integrada e representada no Parlamento israelense. Essas pessoas procuram ser uma parte integral das coalizões do governo de Israel, com o objetivo de criar leis que venham fortalecer sua visão de um Estado Judeu messiânico com forte base na religião ortodoxa ultranacionalista, ampliando como nunca a força das autoridades rabínicas. Hoje, sua influência se pode sentir em toda a sociedade israelense, inclusive dentro do Exército.
Israel como centro ameaçado
Para a direita sionista liberal nacionalista, o Estado de Israel vive permanentemente uma realidade política de ameaças a sua própria existência, avaliando o processo de paz como parte das ameaças aos direitos históricos judeus da “Grande Israel”, apoiando e incentivando os assentamentos judaicos nos territórios ocupados em 1967.
Os adeptos dessa concepção vivem a “síndrome do medo”, acreditam que Israel, como centro do mundo judaico, está constantemente com sua existência ameaçada. Preconizam a necessidade de se fortalecer militarmente cada vez mais para fazer frente às ameaças do mundo árabe e às forças terroristas islâmicas.
Obviamente, a ameaça declarada de o Irã destruir o Estado Judeu, a repercussão da saída de Israel da Faixa de Gaza e suas consequências à segurança de Israel fortaleceram esse setor da política israelense, que encara a posição da esquerda sionista israelense como perigosa e ameaçadora à segurança do Estado de Israel.
Israel que ainda não cumpriu seu papel histórico
Para muitos judeus da esquerda sionista, Israel foi uma necessidade histórica do passado, que ainda não conseguiu cumprir a Carta Magna de sua independência: o Estado de Israel na visão dos profetas, o Estado que almeja a paz, igualdade e justiça, e pratica a moral e a ética.
Para esse grupo, Israel continua a ser um importante centro judaico, porém, sua realidade política se tornou inoportuna, vendo os ideais sionistas ameaçados pelo grave problema demográfico, com a continuidade da ocupação dos territórios ocupados e a grande possibilidade de Israel se tornar um Estado binacional de maioria árabe, levando ao fim do conceito sionista do Estado Judeu Democrático e, em consequência, ao fim do Estado de Israel.
Essa vertente propõe, como única forma de garantir a maioria judaica e o conceito do Estado Judeu Democrático, a desvinculação total da ideia da “Grande Israel” e a criação de um Estado Palestino ao lado do Estado Judeu.
Israel como centro bíblico
Para os grupos ultraortodoxos não sionistas que procuram cada vez mais se fechar às influências do mundo externo, o Estado de Israel moderno e emancipado é um perigo para as leis judaicas. Eles usam um termo pejorativo em relação aos judeus seculares, que vivem em Israel, dizendo “Israel é o lugar onde goyim [não judeus] falam hebraico”.
Eles negam as leis do Estado de Israel moderno, para eles Israel continua a ser somente o centro bíblico. A ultraortodoxia procura cada vez mais se segregar do mundo exterior e vem sendo o setor da população judaica que mais cresce nos últimos anos. Estatisticamente, daqui a 40 ou 50 anos provavelmente serão o grupo majoritário dos judeus em Israel. Parte dessa população, em sua maioria, não serve ao Exército, não trabalha e nem paga impostos. Devido ao sistema parlamentar, são muito beneficiados pelos acordos políticos que os partidos majoritários necessitam para formar os governos.
Israel como só mais um centro judaico
Uma dessas vertentes está na revisão da centralidade de Israel, uma vez que, para muitos judeus, o movimento sionista cumpriu seu papel histórico, e Israel se tornou mais um importante centro do mundo judaico, mas não o único, postura bastante comum em tendências do judaísmo pós-sionistas em Israel e no resto do mundo. Essa vertente vê a necessidade de se criar um Estado de Israel onde possa haver uma maioria judaica, mas entendendo que a forma de garantir uma plena democracia é criar um Estado para todos os seus cidadãos, e não mais um Estado para judeus, abolindo assim a Lei do Retorno, redefinido o hino nacional, a bandeira de Israel e com a criação de novos símbolos nacionais israelenses, que deixariam de ser símbolos nacionais judaicos, proporcionando a integração de todas as minorias dentro da nação israelense, como cidadãos de plena igualdade e direitos.
Israel como centro de refúgio necessário
Finalmente, a postura mais popular e totalmente integrada aos aspectos individuais do comportamento judaico na era da revolução global é, de um lado, o forte apoio individual dos judeus à existência do Estado de Israel e aos seus diferentes governos. Para esse grande grupo, o Estado de Israel é um importante refúgio pessoal em caso de momentos difíceis. Israel se torna necessário nas épocas de crise econômica, social e política nos países que os judeus e as judias vivem em todo o mundo!
Em muitos casos, essa é uma imigração de porta giratória a judeus e judias, quando a vida em seus países de origem se torna difícil ou perigosa. A imigração para Israel é uma resposta temporária e só dura até que a situação melhore e essas pessoas possam retornar aos seus países de origem.
Atualmente, podemos perceber esse processo na grande imigração de judeus brasileiros a Israel. Parte deles chega buscando refúgio da crise que se vive no Brasil. Muitos têm a ilusão de que é possível criar uma nova identidade de imediato, sem saber dar tempo ao tempo para abandonar seus costumes e os vícios criados na cultura brasileira. Isso faz com que parte desses judeus se transformem, de um dia para o outro, em “fervorosos patriotas sionistas”, sem entender ainda a grande complexidade que é a realidade cotidiana em Israel.
Na verdade, no contexto de sua realidade individual, esses judeus procuram muito mais um bunker pessoal necessário para responder às suas necessidades individuais e imediatas. No fundo, essas pessoas não buscam realmente viver em suas vidas a plena ideologia sionista! Para Israel, toda imigração judaica é muito necessária e, independentemente de seus interesses individuais, todos os judeus e todas as judias sempre serão bem-vindos!