JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

SEU ABRAÃO E O PEIXE:

De Seu Abraão, ouvi muitas verdades, muitas sabedorias, talvez pensadas em Polonês ou Yidish no passado, mas já tão traduzidas por ele para o portugues, que eu ate duvido se ele se lembraria delas em seu primeiro idioma.

 As suas “sabedorias”, quase sempre eram passadas em vividas alegorias e sempre me foram úteis, a maioria delas ainda as utilizo no dias a dia, mas a ultima me foi dada entre cervejas e um triste por de sol no Mediterrâneo. Seu Abraão usou de linguagem simples. Tão simples e clara que tive dificuldade em entendê-la. Sou de uma época em que o prolixo denotava o culto, o profundo; lições eram embutidas em complexas estruturas léxicas. O menos ainda não se havia tornado mais. Ou será que ainda não se tornou?

Sim, através dos anos aprendi muitas coisas com o Seu Abraão Neunzigstein. Entre elas tentar buscar um sentido mais profundo para a vida, mas de maneira leve; descobri por que Deus deu ao homem dois ouvidos e somente uma boca; entendi que a motivação fazer o bem movido pela ética é muito mais importante do que a contenção do mal pelo medo;

Também aprendi a xingar em Yidish; a “bater boca com Deus”; a importância de ser humilde, debaixo de todos os títulos e camadas de verniz. Também aprendi a apreciar Spinoza e quebrar a cabeça tentando acompanhar as escritas do Martin Buber. Mas bem acima de tudo isso, por mais medíocre que seja a minha bondade, ela foi bastante melhorada pelo breve convívio que tive com o velho.

Claro que o seu Abraão não era “Neunzigstein”.  Em realidade ele era um Stein qualquer da vida. Mas a comunidade judaica do Rio é tão pequena em tamanho e outras coisas, que se eu escrevesse o nome verdadeiro de família de seu Abraão, seus parentes Cariocas iriam provavelmente me fazer engolir essas palavras, via e-mail, via telefone ou talvez ate por meio de uma intimação judicial. Daí a explicação de eu chamar o seu Abraão por outro nome e digo como aconteceu a escolha.

Realmente a palavra “Pedra” ou “Stein” em Yidish, é parte do nome de família do seu Abraão. Ele é um Stein-não-sei-o–que . Mas como os funcionários da sua fabrica sempre diziam sempre, com dois polegares para cima, que o velho Abraão era “Pedra- Noventa”, eu decidi que esse nome seria uma “pedra” perfeita, para representar o Seu Abraão. Dai surgiu o seu pseudônimo Abraão Neunzigstein: Abraão “Pedra Noventa”. E o Seu Abraão gostou da brincadeira, os amigos, carinhosamente adotaram o novo nome e o nome pegou. Seus novos amigos o tratavam por Senhor Neunzigstein e ele atendia sorrindo.

Sobre essa gente, para mim é o resto da família de seu Abraão e deixemos essa gente ficar como resto. E o resto é pouco, é quase nada: Os bons velhos dessa família já se forem. A terceira e quarta geração tornou-se “Cariocas da gema”, de Zona Sul, de “s” puxado, adoradores do sol, e a maioria deles torce pelo Fluminense.

Bem quanto ao torcer pelo fluminense, afinal, não é pecado.  Julgo ate uma de suas boas escolhas, que pode ser considerado como o caminho natural para a minoria Brasileira que não descende de imigrantes Portugueses ou Africanos.

Mas Seu Abraão era uma ”ave rara”. Era visto pelos parentes ricos quase como um “paria”: Um “onkle”, um tio para se contar piadas jocosas sobre suas idiossincrasias com os amigos ricos - e no dia a dia, manter-lo a uma boa distancia.  Afinal um Tio Judeu flamenguista, “urubu-roxo” e grande apreciador de sambinhas, botecos e mulatas, é algo que só recentemente começa ser aceitável na liberal Colonia Judaica Brasileira.

Esse lado “bacana”, tradicional e respeitável de sua família chegou ao Rio, como Seu Abraão, também de um Gueto da Polônia, porem bem antes da segunda Grande Guerra. Eles já estavam radicados no Rio e já eram comerciantes fortes - e passaram muita vergonha - quando chegaram “Polacas do Ramo” na Capital do Brasil, disseminando classe e encrenca nos bordeis Cariocas – porem solicitamente fazendo seus respectivos Mitzvah,  sempre ajudando os Judeus pobres, muito mais do que esses estabelecidos Steins-e-alguma-coisa.

Mas essas vertentes familiares quase sempre desembocam na fofoca; dai, somente direi que quando em mil novecentos e quarenta e oito o Seu Abraão, chegou ao Rio, com um numero azul tatuado no braço direito e um sotaque pesado do Gueto de Varsóvia, falando “por baixo”,  ele causou um “puta embaraço” a respeitada família Polonesa, os tais não sei que lá Stein.

Mas mesmo assim os parentes ricos, talvez por pressão da Comunidade, o ajudaram a distancia, e começando com uma maquineta circular de fazer meias, o Seu Abraão se tornou um bem sucedido Homem da Indústria Textil e dono de uma Respeitável Fabrica no Rio, mas sem nunca perder a sua humildade.

Creio que um dos poucos pontos em comum com que ele tinha com os parentes ricos, era o seu amor ao Rio – e ao Brasil.

Se pudesse ele abraçaria o chão de tanto amor que ele tinha pelo seu novo pais.  Mas fora isso o seu Abraão tinha uns hábitos não muito salutares na visão de sua família: Além de Flamenguista, ele jogava porrinha nos botecos de beira de praia, gostava de pastel de rua e discutia futebol, sempre defendendo o seu Rubro Negro e para completar a vergonha era acompanhava bem um samba – só na caixa de fosforo – e era um conhecedor profundo de rabos de mulata.

Ele detestava a Polônia, os Pretzels, Bagels e ate a horrível culinária Yidish. Em varias vezes, ele disse que foi traumatizado por sua Avó Materna, enfiando-lhe doses homéricas de caldo de galinha com as bolinhas de Matzo, ao primeiro sinal de um possível resfriado.

Dizia Seu Abraão que Sopa de Galinha de Bolotas de Matzo foi a penicilina de sua infância, e nos guetos da Varsóvia era a panaceia para todos os males...

Talvez ele encontrasse uma reabilitação do trauma esse nas comidas de boteco e de carrocinhas de rua.  Era um adepto do Prato Feito, churrasquinho de gato, pasteis quibes e ovos cozidos. Gostava de sentar aos sábados em Barzinhos fuleiras dois quarteirões da Praia do Leme e tomando cerveja vendo os jogos do Flamengo. E para piorar ela daqueles Urubus que discutia futebol com todos.

Mas eu gostava do velho Abraão: Sempre rindo. Ria mais com os seus olhinhos azuis do que com os lábios. Nunca discutiu religião. Só futebol. Apesar de Judeu, era padrinho de mais de doze crianças filhos de funcionários e lhes dava um presente em todos os seus aniversários.

Eu amava a sua leveza, e sua sinceridade, sinceridade daqueles que já conhecera tanto os bastidores da vida que não mais precisavam de palcos. Também com simplicidade, constava de aconselhar, e nessas horas mostra um conhecimento de que conheceu as trevas, de quem viu muito sangue, de quem aprendeu a andar no tato, no escuro e passou a dar um valor imenso a luz. Seu Abraão foi um amigo iluminado.

Eu o conheci durante um evento há muito tempo em Nova Friburgo. Ele estava tomando uma caipirinha no Antigo Restaurante Rosa Amarela, onde se servia a melhor bisteca que eu já comi.  Com ele estava o Ricardo da Revista Textil e outros amigos e fui convidado a sentar com eles.

Na ocasião, reparei a que ele usava um minúsculo kipá redondinho em sua cabeça grisalha e eu jovem, sem entender de significados, eu ponderei que aquele paramento religioso era de certo modo ridículo, pois não cobriria a sua cabeça em sinal de respeito a Deus. Com a minha visão periférica, discretamente observei a sua tatuagem numérica no braço direito que na ocasião ainda era bem azul, e mal escrita: obra talvez por um Capo Bêbado ou iletrado de um campo de concentração como Belsen ou Auschwitz.

Durante os anos que o tive como amigo eu notei que essa tatuagem parecia que pouco significava a Seu Abraão. Ele nunca demonstrou mágoa, ódios nem traumas de guerra.  Mas não falava sobre o assunto.

Depois disso, varias vezes me encontrei com o velho Abraão, nos frequentes eventos têxteis e exposições de outrora, onde eu sempre “morcegava” um Scotch com ele no Stand da Revista Textil, junto com o amigo Ricardo Haidu e outros do nosso grupo.

As mesas sempre se animavam com a presença do velho Abraão.

Falávamos de quase tudo: Dos Pepinos Azedos da Polônia, de feijoada, de mulatas, da saúde e ate da indústria textil, mas o futebol e o Rubro Negro ela o seu forte: Seus olhinhos azuis brilhavam, seu rosto ficava mais corado e seu nariz mais vermelho e sua fala mais rápida. Sabia de cor escalações do Flamengo em certos jogos e dos títulos do time, enfim, Seu Abraão era um “Urubu” mesmo.

Só uns poucos assuntos sabíamos que era fora do limite do bate-papo com o velho: Politica, religião, família e guerra.

Comecei ir menos amiúde a convenções e feiras têxteis ao Brasil à medida que a Indústria começou a declinar, e consequentemente via com menos frequencia o Seu Abraão. Vez por outra telefonava para a fabrica, e conversamos alegremente e tudo parecia ir às mil maravilhas na cabeça dele, apesar do declínio de sua indústria.

Um dia me reencontrei com o Velho Abraão na feira da ATME (American Textile Machinery Exposition), numa grande Exposição que bianualmente acontecia em Greenville, Carolina dos Sul. 

A Indústria Textil ainda estava nos últimos anos das Vacas Gorda. A exposição internacional durava uma semana e era regada a vinho, cerveja e uísque. O pessoal técnico via tudo o que era de tecnologia nova nos primeiros dois dias, e depois mal gastavam solas de sapatos: Com exceção dos Indianos e Paquistaneses, que sugavam ate o ultimo manual, folheto, refrigerantes ou brindes dos vendedores, o resto dos visitantes ficava na farra, bebendo e comendo nos Stands de Fabricantes de Maquinas, e para nós, a feira era somente festa.

Durante essa particular ATME eu estava hospedado no Howard Inn, bem perto da exposição. La havia um Bar aconchegante e musica ao vivo que durante as feiras ficava aberto ate as tres da manha.

Tinha acabado de tomar um banho frio para despertar, pois sai da exposição já meio “Cananeu”.

Antes de comer alguma coisa dei uma espiada no bar, e eis que ouço uma voz familiar, que sempre me chamou em Hebreu:

“Oi Sh’muel! Vem cá com agente.”

E numa mesa perto do grupo de jazz, estava o Seu Abraão com uns amigos. Antes mesmo de cumprimentar a turma, Seu Abraão já ordenava ao garçom um “visqui” duplo para mim. Ri muito dessa aparente incongruência: Seu Abraão sempre trocava o “w” pelo “v”, ate discutindo a Flamengo.

Na mesa, conversamos sobre todos os assuntos permitidos, sendo que o futebol prevaleceu. O Flamengo andava numa má fase e ele reclamou mais do time do que de suas próprias perdas na fabrica.  À medida que entravamos na madrugada a turma foi saindo e lá pelas duas da manha só estávamos nos dois na mesa. Notei que o seu cabelo estava bem mais branco e que ele ainda usava o velho kipá preto, que parecia um pequeno pires negro no meio de seus cabelos revoltos. Estava com a mesma carinha alegre, não dava para ver direito o seu rosado em seu rosto, mas o seu nariz vermelhão ainda dava para se notar.

Já passado a meia noite o Seu Abraão foi ficando, mais serio e disse: “Estou pensando em vender tudo no Brasil, Sh’muel”.

“Não faça isso Seu Abraão. Ainda que as coisas estejam apertadas, o nosso negocio e cíclico e depois dos “vales” a linha do gráfico vai subir para o ‘pico’”.

“Não é a crise, Sh’muel. No final da ditadura mandei o meu filho estudar um ano em Israel. O sacana se casou por lá. Agora, além dele, tenho um neto e uma neta e ele não quer voltar para o Brasil”. Depois, ficou quieto por uns instantes e disse: “Voce sabe, a minha mulher faleceu faz dois anos”...

Apesar de não a conhecê-la a noticia foi um choque. Todos sabiam quanto o Seu Abraão amava a sua “patrícia” Dona Raquel. Ficamos em silencio, pedimos um ultimo uísque, e ele falou em temas que nunca antes havia falado. Explicou-me sobre a diáspora dos Judeus. Disse que na Europa antiga seria o melhor local para preserva o Judaísmo, e meditou que isso seria em decorrência das perseguições que amalgamava o povo.

Já no Brasil, era dificílimo manter uma família no judaísmo por mais que tres gerações, disse ele. Tudo era muito bom, vida fácil, pais generoso, gente boa, que mal se preocupa com cor, religião, ou ideia politica e por ai foi falando.

Seu Abraão sabia se enfronhar na Lei, no Torá com a profundidade de um Baruch, de um Spinoza e interpretando-a quase que com a simplicidade intensa de um Martin Buber.  Explicou-me que o Judaísmo era mais um código de vida com umas regras arcanas, mais não abria a mão do Teísmo, da adoração a um Deus único.

Eu fiquei calado e parei de absorver a bebida e fiquei absorvendo a torrente de palavras sabias vindo de um Seu Abraão que nunca conheci. Ele me deu conselhos como tratar meus filhos, dedicar mais tempo a família, tirar algum tempo durante a semana para meditar sobre a vida e aprender a contar as bênçãos. Ela falava sobre a vida com a mesma intensidade que tinha com o Flamengo. Seus olhos brilhavam.

Sem ter o que falar disse: “Seu Abraão, mas o resto de sua família esta no Brasil”.

Ele riu. E riu mais e finalmente só disse isso: “Eles são todos Pó-de-arroz”.

“Mas eu também só Pó-de-arroz, Seu Abraão.”

“Voce não, Sh’muel. Voce só é Fluminense,” disse isso com certo pesar.

Durante aquela ITMA aproveitei bem a presença de seu Abraão e ate o levei para jantar em casa. Ele se sentiu como se estivesse em sua própria casa, foi gentilíssimo com minha esposa e um verdadeiro avo para meus filhos, especialmente o mais novo que estava encantado com o seu Kipá. Dias depois era voltou ao Brasil.

Durante uns anos ele permaneceu no Rio, mas vendeu tudo e foi morar num flat no balneário de Haifa, relativamente perto de seu filho e netos que viviam em Telavive.

Mantive correspondencia com ele por anos, vez por outra lhe dava uma chamada telefônica, e apareceu uma oportunidade de Negocio com as Indústrias Kitan em Israel, e eu combinei com ele que o visitaria em Haifa e fizemos os arranjos necessários.

Cheguei lá no final do Outono. Encontramo-nos num restaurante conhecido na praia de Bet Galim. Ele morava perto da Praia, mas, nas montanhas de Monte Carmelo. Ele me disse escolheu esse local, pois tinha um tipo de bondinho a cabo para leva-lo ate seu apartamento, que lhe lembrava do bodinho do Pão de Açúcar.

Segundo ele tinha, seu apartamento era ensolarado e tinha uma linda vista para o Mediterrâneo e que em dias limpos ele podia quase enxergar a ilha de Chipre. Disse que não me convidaria a pegar o bonde e subir ate o seu apartamento porque a lá estava uma “zona” e disse rindo: “Parece ate meu antigo escritório” no Rio.

Eu retruquei: “Uma mesa organizada é sinal de um cérebro atrapalhado”. E Rimos mais.

Sentamos na varanda de um Bar e Restaurante moderno, de baixo de uma sobrinha de plástico e havia musica de Israel e muitas americanas. Seu Abraão apontou para o alto falante e disse: “Tem tantas musicas Americanas que voce deve estar em casa não é?”.

Em seguida um garçom Árabe nos trouxe duas cervejas Gold star, em garrafas de cores âmbar e com um bonito rotulo preto. Educadamente ele nos encheu os copos. Cheirei a espuma e disse: “Tem cheiro bom, deve der forte no malte”.

“O cheiro dela é bom mesmo”.

Em seguida ele deu uma golada, e completou: “E o seu fabricante, a Coca-Cola, carregou no malte, para esconder a agua ruim usada”, disse Seu Abraão, com a sua sempre brutal da franqueza.

E realmente a cerveja era bonita de se ver, mas não passava de uma Budweiser incrementada.

“Sinto falta das musicas e das cervejas Brasileiras também”, disse eu.

O sol se punha dourando as aguas do mediterrâneo, ondinhas mirradas lambiam uma prainha pequena, enfeitada com uns coqueirinhos raquíticos e Seu Abraão disse:

“Isso parece mais a Lagoa Rodrigo de Freitas”. E riu.

“Poxa, seu Abraão, também o senhor não precisa desmoralizar o lugar. É uma ela praia”.

“Tem razão. Isso é o melhor que eles podem oferecer em matéria de praia.”

Depois como se lembrasse de algo, ele me disse: “Por aqui é só Árabe e Russo. Bem há alguns da velha guarda que ainda falam Yidish e são também sobreviventes, sabe?” Ele disse mostrando o antebraço tatuado. “Mas esta gente só sabe falar de guerra e se lamentar”.

Fiquei quieto ele continuou, apontando para duas famílias com varias crianças tagarelando e brincando indo em direção à praia. “Essa juventude só fala Hebreu e os Russos só Russo. Nem Yidish eles sabem.”

E ele ficou quieto.

Notei que a tatuagem numérica em seu braço direito tinha se tornado de um azul desbotado, pálido. Seus cabelos flutuavam mansos na brisa; estavam longos, ralos e bem brancos, e só então que eu notei um kipá rubro-negro, na cabeça do Seu Abraão, e perguntei:

“Seu Abraão, o senhor não usa mais o kipá negro?”.

“Não, agora só uso esse rubro-negro. Sou flamenguista.”

E, referindo-me aos Judeus ortodoxos, de mechas enroladas ao lado da rosto, extremistas religiosos que julgam ter o direito de confrontar a todos, perguntei ao Seu Abraão na gíria Judia:

“E os ‘Pinguins’, não lhe enchem o seu saco”?

“Como me podem encher? Eles só andam com o uniforme do Vasco”. Rimos. Se dando contas da besteira que disse, Seu Abraão riu mais, ate se engasgar. Ele aludiu às roupas negras, chapéu negro e camisa branca, o único tipo de roupa permitida aos “pinguins” ortodoxos.

“Bem Sh’muel, falando serio, eles tentaram me incomodar. No meu flat um deles me interpelou sobre as cores e eu resolvi isto diplomaticamente.”

“Diplomaticamente? O senhor? Como assim?”

“Quase esfreguei essa tatuagem na cara dele”, disse ele mostrado o seu braço já adelgado, “e gritei: a cor vermelha é sangue. Sangue de sacrifícios!” E não menti.

“E o Pinguim? Contestou a cor negra”? Perguntei.

“Não. Com ele estava um Rabino Russo, também com esse numero no braço, sobrevivente de Buchenwald. Esse era um velho inteligente. Ele mesmo concluiu que a cor negra era representativa do medo, da morte e dias de tribulação! Disse-lhe a historia do Flamengo”. Rimos mais.

“Sh’muel, e a coisa não ficou por ai: O velho Rabino abençoou o kipá em Yidish e o fez Kosher, bom para uso Judaico!” Se Abraão ria tanto que lagrimas desciam seu rosto, e concluiu: “Agora o Rubro-Negro, finalmente, é Kosher”!

Rimos muito e falei: “Seu Abraão, agora vou lhe pedir um favor: E possível o Senhor obter também a benção para um kipá do fluminense”? Ele ficou serio e disse: “Nunca”.

Depois talvez se lembrando de que eu sou Fluminense ele disse mais moderado:

”Sh’muel Pensa! Pensa direito Sh’muel: Como eu posso justificar o branco e o verde”?

Ele tinha razão. As cores do Tricolor Carioca, para a raiva dos “Stein não sei o que” lá do Rio, jamais seria Kosher.

A noite caia e pedi a ultima outra cerveja.

Ele disse quase para si mesmo, “O Brasil é um pais lindo.”.

“Concordo, mas anda muito avacalhado. Temos tudo para dar certo seu Abraão e quando a coisa parece ir... Vem para trás”.

Ele fez um sinal de “sim” com a cabeça e ficou meditando. Depois disse:

“Sh’muel, o grande problema é que o Brasileiro não sabe ainda por onde o peixe mija’!

“Que”?

“Por onde o peixe mija”, repetiu  Seu Abraão, e eu fiquei com cara de besta, sem entender nada.

“Voce não conhece este ditado?”

“Não”

“Eh mais velho de o vento Sul”, disse ele em alusão ao Minuano.

“Mas eu não o conheço. Pode me explicar”?

“Explicar não; vou lhe ensinar”. Pensou um pouco e disse: “Voce já teve um aquário”?

“Sim, quando criança. Um pequeno.”

“Tinha peixe nele”

“Obviamente”, disse eu.

“Obviamente uma ova, Sh’muel. Nem tudo que parece ser, é tão obvio quanto voce pensa.”

“Sim Seu Abraão, tinha um casal de peixes durados”. Disse meio exasperado.

“Voce já viu seus peixes fazer cocô”?

“Já sim. É uma tripinha escura que fica arrastando por baixo deles ate cair ao fundo do aquário”.

“Ótimo. Perfeito: Agora me responda. Eles mijam”?

“Acho que sim. Ora”... Eu disse meio irritado com a aparente insensatez do assunto.

“Acha ou sabe”?

“Eu sei - porra. Claro que eles mijam. Tem cheiro de amônia no filtro do aquário que só poderia ser do mijo”. Disse eu mais irritado.

Seu Abraão ria mansamente, como um Santo Homem que iria me conceder uma revelação muito importante. Mais irritado fiquei, pois senti que talvez o velhinho estivesse me gozando.

“Então Sh’muel, voce sabe que o peixe mija, mas não sabe por onde, não é”?

“É isso mesmo. Porra, Seu Abraão, esse assunto não é de importância”!

“Claro que é de importância, se não fosse relevante e não teria falado nisso.”

“Como que mijo de peixe é importante”, resmunguei após mamar quase toda a garrafa.

“Não e o mijo do peixe. O assunto e saber por onde. Falamos agora de localização”.

“Não sei Seu Abraão. Pela pele? Pelas guelras?”

“Adivinhado? Sabe ou não?”

“Não sei”.

“ah, finalmente me respondeu de modo direto: Voce não sabe”.

“Não sei”

Ele olhou para as aguas do Mediterrâneo, iluminadas pela muitas luzes de Haifa. Um navio Cruzeiro ia em direção a Chipre, e depois era só a escuridão de um Mar Velho, experiente e guardador de muitas estórias...

Como um pai, o Velho Abraão pos a sua mão sobre o meu joelho e seus penetrantes olhinhos azuis furaram meu crânio, e com uma voz mansa e um sorriso que quem sabia discernir as grandes verdades, ele simplesmente disse:

“O peixe mija pelo rabo, Sh’muel. Pelo mesmo buraco que faz a outra necessidade.”

Pensei que ele estava brincando, mas sua face estava sombria e seria. Continuava me olhando como se fosse um velho professor, decepcionado com o desempenho de seu melhor aluno.

Esse foi o seu ultimo conselho. E demorou alguns anos para que eu finalmente pudesse discernir que muitas vezes o obvio é simplesmente o obvio.

Que a verdade pode muitas vezes estar oculta na cara da gente.

Meses depois recebi a noticia que o Seu Abraão morreu e foi cremado.

Eu tenho a certeza absoluta que o obvio foi o obvio: Ele se foi, junto ao seu estranho Kipá rubro negro, julgado Kosher por um Rabino que conhecia a verdade.

 

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Respostas a este tópico

E eu por aqui de madrugada perdendo o meu tempo para ler esse texto...

Beleza de texto multifacetado! Foi uma delícia lê-lo.

Marcelo: Tive matutando - e a realidade muitas vezes não é aceita "in natura". Vou burilar essa ideia do tributo a Seu Abraão e a inserir no meu novo livro, “A UM PASSO DO VENETO”, como um conto. Ai será mais bem aceito e talvez ate classificado como "na vertente do Realismo  Fantástico". Confesso que já  ando desiludido do Terceiro Mundo... Geralmente só gostam de espelho ou aguas tranquilas, ondem podem apreciar as suas caras. Caras de Lula! Como Seu Abraão eles, apreciam botecos, bundas e jogos porrinha. Mas diferentemente do Seu Abraão, são vazios ou rasos - e não sabem "por onde o peixe mija". No evento de meus livros, que estão sendo negociados aqui como THE BUG EATER (no BR “O PAPA-BESOUROS) e A STEP FROM VENETO forem aclamados, parafraseando o Albert, o Brasil brigara pela minha cidadania. Os EUA clamarão o meu passaporte. A comunidade de chamara de Israelita. Não o sendo, Patrão, o Brasil dirá que sou um escritorzinho Gringo e medíocre, e os Estados Unidos dirão que eu Sou Judeu, e a Comunidade me chamara de um “Gentil Vira-lata”. O que o Terceiro Mundo gosta mesmo, mesmo em nossa comunidade, eh de Cabala Cabeluda, “Pemba”, Galinhas Pretas, Duendes, Gnomos, Cristais, Fadinhas, e afins exotéricos. “Coelhagem” e plágios em diversas nuances do Saint-Exupéry. Fazer grana literária com esses trouxas é formula relativamente fácil, mas não me comprometo e as suas predileções a mim pouco importa. E como diria o Seu Abraão: “E eu ando ca....do e andando para todos”! Já começo a  adquirir a “coragem dos velhos”. Hug, Sam

Parabens Shmuel, o texto me fez viajar, prendeu até ao fim, merece ser inserido num livro, és um otimo escritor.

Abraços Nalin, Shavua Tov!

Brigado Nalin: Amanha indo para as Asturias, fronteira com Gakicia, e meditarei em terras Galegas, Asturianas, Bascas e Celtas. Necessito de por o binomio SER e ESTAR,  num tipo de formulacao aceitavel. O Escriba e Seu Abraao lhes agradecem o comentario. Abracao Nalin.

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