JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

O Brasil também é judeu Por Mauro Leonardo de Brito Albuquerque Cunha

CARTA ABERTA AOS JUDEUS DO BRASIL ! (M.V)
Salvador, 13 de janeiro de 2014

Carta aberta de um ex-marrano às comunidades judaicas do Brasil (Por Mauro Leonardo de Brito Albuquerque Cunha)

Caros Ajim,

Permitam-me que me apresente. Como muitos no País, particularmente numerosos no Nordeste, sou descendente tanto pela via materna quanto paterna, de remanescentes das visitações da inquisição e de outras sucessivas formas de perseguição e intimidação. Tanto minha enorme família paterna quanto minha pequenina família materna guardaram inúmeras tradições e costumes que somente muito depois pude identificar como sendo judaicos.

Na rua, como dizemos, fui educado no catolicismo romano e em casa fui educado pensando que todos os costumes ou eram cristãos ou meros hábitos de família. Em minha casa fui eu destacadamente interessado em religiosidade. Irmão, pai e mãe afastados de qualquer vida religiosa comunitária. No quarto de meus pais um antigo oratório da família... restaurado mas sem a cruz que originalmente ornava seu topo.

Desde a infância no Recife meus pais nos criaram convivendo com vários amigos judeus da comunidade oficial daquela cidade: nos prédios em que morávamos, nas escolas, etc. Fui a bar mitzvá, casamentos. Havia até uma senhora judia simpática que falava que no futuro eu devia casar com sua neta. Só depois soube que era uma kohen e o que isto significava em termos de aceitação. Eu era só uma criança enormemente assimilada (pelo menos no que as aparências externas indicavam).

Eu e meus amiguinhos tivemos uma professora de catecismo peculiar cujo nome era Fortuna. Não era freira nem nada, apenas alguém que se voluntariou por meio de uma promessa. E o que ela fez de foco no “Velho Testamento”... Só muito depois soube como ela foi ousada. E justo dessas histórias de seres-humanos imperfeitos – e que evoluíam! – eu gostava mais. Hoje sei que isto tem a ver com a identificação do crescimento espiritual de nossos patriarcas, de nossos neviim, de nossos reis, de nosso povo.

Pois além de batizado, agora eu fizera a primeira comunhão... E não parei de buscar na única fonte que estava disponível para mim algum acesso ao desenvolvimento espiritual. Por fim, totalmente desanimado com a vida das paróquias (dita diocesana) fui procurar as ordens religiosas. Tive um convívio muito interessante na ordem primeira do Carmo no Recife. Depois soube quantos marranos passaram por lá. Quantos valores judaicos estavam presentes naquele grupo cristão. À época não guardava nenhuma consciência desse fato. Lá li profundamente a patrística católica, sem jamais me satisfazer.

Tanto que jamais me confirmei. Jamais busquei ou aceitei a crisma. Indicador de que jamais me reconheci plenamente na vida e na fé católicas. Cheguei a ser convidado por instrutores dos cursos de crisma para palestrar para as turmas. O seu objetivo era mostrar que por mais conhecimento que se tivesse não se devia aceitar a crisma se não houvesse certeza de coração. Se imaginassem que eu chegaria a ter noção de minha identidade judaica... Enfim, aos 24 anos, formulei a pergunta que mudaria minha vida: isto tudo não quer dizer que para ser um bom cristão é preciso, antes de mais nada, ser um bom judeu? E recebi a resposta irrazoável (da minha perspectiva de então) que me faria continuar incessantemente minha busca: de forma nenhuma.

Pois bem... Resolvi (algo lá do Alto deve ter me influenciado) estudar como é que os judeus viam o messias. Começava a perceber – e saborear – a enorme diferença entre as culturas grega e hebraica, ambas fundadoras da cultura ocidental. E entendi gradativamente que o cristianismo, ou o paulinismo, como eu agora o chamava, nada ou pouco tinha de hebraico.

Um belo dia (estou fazendo um atalho enorme em atenção ao tempo dos leitores) entrei em contato com o único rabino residente em Salvador (já havia me mudado do Recife) à época. A SIB estava sem rabino. Buscava a via da conversão. Aquele senhor sério, firme e generoso, de nome Israel – claramente asquenazita e jassídico – respondeu-me, depois de me acolher com um carinho seco e abundante, e de me ouvir pacientemente inclusive sobre as minhas amizades judaicas no Recife (de quem sempre disse: não é um judeu, um judeu não é isso, o judaísmo é uma religião). Escutou que eu acreditava que as melhores pessoas com quem eu convivera eram judias e judeus. Ao fim, disse-me: vá se conhecer, vá buscar suas raízes. À época pouco entendi.

Pouco mais de um ano depois desta visita àquele atencioso rabino, em visita à casa de meus pais: minha mãe me apresenta um DVD que colocava em contexto muitos de nossos hábitos e costumes familiares, inclusive a particular forma de pensar e falar, ou de falar para constituir um pensamento e pensar para urdir a fala. Mas também os horários de rezar ao acordar e ao recolhimento para dormir, o hábito fortíssimo de alimentar o cachorro de estimação antes de todos da família (isso do lado paterno) e a forma de abater galinhas (do lado materno). De ambos os lados a forma de varrer a casa, respeitando-se o pórtico da casa... Como se ainda lá houvesse uma mezuzá. Tantos costumes... Alguns segredos... Não me alongo nisto.

Tratava-se de A Estrela Oculta do Sertão. Para mim nada mais havia de oculto naquela Estrela desde o momento que eu vira o documentário. Talvez meu caso não fosse de conversão... Quando eu olhava a bíblia e só via a Torá... Interessante o nome da Fortuna... Mudou minha sorte, o meu Mazal, e eu nem imaginava. Daí não parei mais de (me) pesquisar.

Comecei daquele momento em diante a viver aceitando – e gradualmente afirmando – a minha judaicidade. Primeiro passo (uns dois anos antes de eu haver visitado o Rabino Israel)... Foi pensar assim... Tudo bem parece, que Jesus é o messias. Mas messias é um conceito judaico que nada tem a ver com o conceito de cristo... (Este pensamento durou pouco mais de um ano). Hum... Mas logo depois pensei... Como assim, ele é o messias? O mundo está cheio de guerras, etc... As profecias não se realizaram.

Logo depois, e isto já tem mais de nove anos, descobri-me 100% monoteísta ético... Provavelmente judeu... Bastava ir fuçar a história da família. Não parei de ler mais sobre o judaísmo um só dia de minha vida desde então (e não, não é força de expressão). Daí a mais 3 anos visitando um parente queridíssimo de minha ex-esposa, que por (co?)Incidência morava em Higienópolis e trabalha até hoje como dramaturgo... Eu, já com uma kipá na cabeça todo o meu tempo pessoal (ou boné, boina, etc) conheci o Rabino Ventura, que fora prestar uma consultoria sobre judaísmo ao dramaturgo, tio de minha então esposa. Quando o rabino me viu de kipá e não me reconheceu... Perguntar quem eu era foi-lhe muito natural.

Quando lhe contei brevemente o que agora vos narro de forma mais organizada... Surgiram as bases para um interesse recíproco: um na essência e na história do outro. Ele falava de histórias que me ajudavam a entender vários amigos da família e de infância. Quanto a mim eu era uma pessoa de carne e osso que representava um objeto de estudo e da própria atuação do Moré.

Pouco tempo depois éramos amigos. Algum tempo depois, amigos chegados. Mais algum tempo passei a conhecer e desfrutar da companhia de toda a sua família. Pouco tempo mais tarde passei a só comer carne kaxer, rezar todo dia. Acordar dizendo modê ani...”. Creio que representamos um para o outro a possibilidade não exatamente de retorno e de reconhecimento, mas sobretudo, de re-encontro. Do re-encontro creio que virão o reconhecimento mútuo e os retornos. Como pode se reconhecer quem não se reencontrou?

Fique claro aqui que falo de um universo que engloba, mas que vai muito aquém e além da religiosidade. Falo de comida, de música, de literatura. Tanto, que antes mesmo de buscar a Eretz, fiz minhas malas para Portugal e, sobretudo para a Espanha e, destacadamente, a Catalunha. Senti-me em casa. Livretos que eram idênticos a cordéis... Um linguajar que era em muito parecido com a sonoridade do falar de meus tios-avós e meu avô da época em que eu era menino... Isso sem falar numa tia bisavó lá da Paraíba.

Compartilhei com meus amigos no nordeste o máximo que pude a alegria e o alívio de ter conhecido o Moré Ventura... Um ser-humano raro, capaz de ajudar na urdidura desse reencontro, que a meu ver se avizinha. Ele mesmo, meio sefaradita, meio asquenazita. Ele que tem na história de sua família a fuga do Egito como algo tão recente.

Nosso contato acabou sendo quiçá o mais regular que o rabino mantém com qualquer nordestino. Fui favorecido com a possibilidade econômica de ir a São Paulo mensalmente. O que, além de me permitir (re)encontrar a kaxrut, permitiu ter num rabino um amigo íntimo. Dois mundos se ligavam por duas pessoas.

A atuação do rabino na internet fez acontecer algo que no nordeste parecia impossível: os grupamentos de remanescentes da inquisição eram tradicionalmente isolados, escondidos, inconscientes, semi-insconscientes ou desconectados do restante do pensamento judaico. O Rabino Ventura traçou um fio, que ao fim pode perpassar as pérolas que são as comunidades nordestinas e torná-las interconectáveis. Gentes da Nação vindas dos mais variados rincões do nordeste só passaram a se conhecer de verdade quando as aulas do rabino (numa didática “Or laGoiym”) permitiam o encontro de tantos seres-humanos isolados, privados de sua identidade e consciência judaica.

Muito recentemente as comunidades se organizaram e promoveram um giro do Moré Ventura em 12 dias pelo Nordeste. Este foi um tempo mágico. Como se um dia para cada tribo, um dia para cada caravela, um dia para cada porta do Betamikdax. Cada dia, um mês. Esse período valeu por um ano na vida dessas comunidades em formação. Todas elas já desvencilhadas de qualquer ranço de messianismo ou pensamento helênico-paulinista.

Permitam-me só um parêntese: não joguem, por favor, pedras contra os que se dizem messiânicos. Há vorazes manipuladores, mas muitos deles são cristãos-novos em processo de desapego do cristo que tão longa e duramente lhes foi imposto. Permitam-me ainda dizer que o diálogo inter-religioso é importante até mesmo para facilitar a construção do traçado da árvore genealógica de muitos dos nossos, uma vez que os registros de nascimento eram feitos em sacristias, que à época do império faziam as vezes de cartórios.

É um prazer, uma honra... É bom, doce e justo poder reencontrá-los e à minha própria identidade.

Hoje, a esta hora, é já 13 de Xevat. Jag Samej!

Ke el Altisimo Senyor de muestros patriarkas mos pueda konseder un aniyo de munchos frutos, muy dulses i tiernos. Ke arbores kuvran toda la Eretz Israel i todo muestro Sefarad de un i otro kostado de la mar.

Mauro Leonardo Cunha

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Respostas a este tópico

Caríssimo Mauro!
Algo parecido tem acontecido comigo na busca de minhas origens. Tenho estudado e pesquisado muito!
Shabat Shalom!

Sérgio Freitas Oliveira.

Caro Mauro, LEHAIM !!!!

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