JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

 

Já falei sobre a relação entre ‘guerra e pão‘ e ‘paz, pagar e inteiro‘ nos artigos passados. Hoje é a vez de Beijo e Arma.

Ambas as palavras, beijo e arma, tem a mesma raiz de 3 letras: N-SH-K. Beijo se diz NeSHiKa (נְשִׁיקָה) e arma se diz NeSHeK (נֶשֶׁק).

Podemos inventar centenas de explicações do que o beijo representa, e por que às vezes ele pode ser tão perigoso como uma arma. O exercício pode até ser divertido, mas a ligação verdadeira destas palavras exige menos imaginação que o esperado.

O beijo

Tudo deriva do verbo NaSHaK, que significa ‘encostar’, ‘tocar’, ‘se encontrar’. Escrito desta forma, o verbo é usado para ações nas quais algo ou alguém faz a si mesmo, por exemplo: as ondas encostaram na praia (הגלים נשקו לחוף). Em sua forma super-ativa, o verbo hiSHiK tem o sentido de fazer com que outras coisas ou pessoas se encostem, por exemplo: eles fizeram os copos se encontrarem (הם השיקו כוסיות), ou em outras palavras, ‘eles brindaram tim tim’. O leitor atento deve ter percebido que em hiSHiK a primeira letra da raiz, o N, está faltando. Falarei mais a respeito depois.

De tocar, encostar, pode-se imaginar facilmente como o verbo possa ter ganhado o sentido de ‘beijar’. Uma das definições de NaSHaK no dicionário Even-Shoshan diz: “tocou e trouxe seus lábios perto de alguém ou algo em uma expressão de amor, amizade ou respeito, ou por um sentimento de grande atração.” Hoje, a forma mais usada para beijar é NiSHeK, e NaSHaK tem um sentido mais literário, poético e antigo.

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Propaganda da Benetton

Não faltam exemplos bíblicos de beijos, e eles vêem de vários jeitos. Quando Jacó encontra Raquel pela primeira vez, beijinho de amor (Gênesis 29:11, וַיִּשַּׁק יַעֲקֹב לְרָחֵל). Mais beijos quando Aarão encontra Moisés depois de um prolongado período sem se ver, desta vez de saudades (Êxodo 4:27, וַיֵּלֶךְ וַיִּפְגְּשֵׁהוּ בְּהַר הָאֱלֹהִים וַיִּשַּׁק לוֹ). Há também beijos controversos, como o que Jacó recebeu de seu irmão gêmeo e rival, Esaú (Gênesis 33:4, וַיָּרָץ עֵשָׂו לִקְרָאתוֹ וַיְחַבְּקֵהוּ, וַיִּפֹּל עַל-צַוָּארָו וַיִּשָּׁקֵהוּ; וַיִּבְכּוּ). Tem gente até hoje discutindo se este último beijo foi sincero ou não…

A primeira parte já está resolvida, falta agora entender o que ‘arma’ tem a ver com a história toda.

A arma

Hoje em dia a arma mais comum é a de fogo, e pode-se ferir alguém de uma grande distância. Contudo, em um mundo onde espadas, paus e facas tem um papel bélico central, é entendível como a ideia de ‘encostar’ possa ter emprestado uma de suas raízes (N-SH-K) para a criação da palavra ‘arma’.

Aliás, este processo não é exclusivo do hebraico. A palavra arma em português está ligada ao latim armus, que significava originalmente braço. Assim é que funciona, o abstrato sempre empresta ideias do concreto.

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Propaganda da Benetton

Voltando ao hebraico. A explicação de ‘proximidade’ e ‘contato’ faz sentido quando se explica a origem de NeSHeK (arma), mas como podemos ter certeza que não é apenas uma coincidência? Trago-lhes três evidências, duas muito boas e uma meia-boca. Todas as três pintam a figura que em hebraico antigo os conceitos de toque e violência estão bastante ligados.

Evidência 1, raiz K-R-V: ‘Perto’ se diz em hebraico KaRoV (קָרוֹב), enquanto que ‘batalha’ se diz KRaV (קְרָב). Este exemplo é tão bom para provar meu ponto que eu poderia parar por aqui, mas vamos adiante.

Evidência 2, raiz L-CH-M: ‘Soldar duas coisas junto’ se diz hiLCHiM (הִלְחִים), e ‘guerra’ é miLCHaMa (מִלְחָמָה). Mais uma vez, ‘encostar duas coisas’ e ‘violência’ estão ligadas. Eu ignorei completamente o verbo soldar (hiLCHiM) no artigo “Pão e guerra“, que tratava da raiz L-CH-M, porque simplesmente não cabia na história que eu então queria contar, mas este é um ótimo exemplo agora nesta história.

Evidência 3, do sábio do Talmud RaMBaN, cujo nome é Rabbi Moshe ben Nahman, também conhecido como Nahmanides. Na conhecida história da luta entre Jacó e um homem (anjo), depois da qual ganha o novo nome de Israel, o verbo ‘lutar’ aparece em Gênesis 32:25 com a raiz A-V-K (וַיֵּאָבֵק). Nahmanides discute de onde vem este verbo, dizendo que vayeAVeK (lutou) deve ser entendido como vayeCHaVeK (abraçou, ou clinch, como no boxe). Ele argumenta que é comum a letra Alef (A) ser trocada por Chet (CH), e traz diversos exemplos bíblicos para provar seu ponto. No hebraico de hoje em dia, uma palavra para luta é maAVaK (מַאֲבָק), enquanto que CHaVaK (חָבַק) é uma forma rebuscada de dizer ‘abraçar’. Conclusão: mais um exemplo onde violência (luta) e contato (abraço) estão ligados. Trouxe este exemplo porque quis dar a honra ao RaMBaN (que é isso, a honra é toda minha!), e se o leitor não está convencido e achou forçado, lembre-se das duas primeiras evidências, que certamente são convincentes.

Cadê o N?

Eu disse antes que a primeira letra da raiz N-SH-K desapareceu no verbo hiSHiK (הִשִּׁיק), ou ‘fazer duas coisas entrarem em contato’. A letra N é um tanto fraca quando é a primeira das três letras da raiz, e tende a ser deixada de lado. Isto acontece em vários outros casos. De N-F-L temos NaFaL (cair = נָפַל), mas ‘queda d’água’ se diz maPaL (מַפָּל). De N-G-Ayin temos NaG’A (encostar = נָגַע), mas ‘contato’ se diz maG’A (מַגָּע). Finalmente, de N-SH-K temos NaSHaK (encostou = נָשַׁק), mas ‘tangente’, ou aquilo que encosta em um ponto apenas, se diz maSHiK (מַשִּׁיק).

Nos três exemplos acima o N desapareceu, mas deixou evidências, podemos saber que falta algo! Quem prestar atenção na segunda letra das palavras que não tem N (maPaL, maG’A, maSHiK), verá que existe um pontinho dentro dela. O nome deste pontinho é Dagesh Chazak, e neste caso indica que o N foi embora, mas fez a próxima letra bastante mais forte. As consoantes P, G e SH nos exemplos acima deveriam ser mais longas e pesadas, mas no hebraico de hoje não se fala mais assim. Como soa uma consoante longa? Perguntem a algum amigo italiano a diferença entre pena (punição) e penna (de galinha), e poderão ouvir a diferença.

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Lieberman e Lapid se beijando, montagem do partido Meretz

Derivados

Só para não deixar pedra sobre pedra, listo abaixo algumas as palavras e expressões que tem a raiz N-SH-K, que é o tema deste artigo.

maSHiK (מַשִּׁיק) = tangente, em geometria. hiSHiKu kosiot (הִשִּׁיקוּ כּוֹסִיּוֹת) = encostaram os copinhos, brindaram tim tim. machalat haNeSHiKa (מַחֲלַת הַנְּשִׁיקָה) = literalmente ‘a doença do beijo’, ou mononucleose, que é transmitida pela saliva. NeSHeK cham (נֶשֶׁק חַם) = literalmente arma quente, arma de fogo. NeSHeK kar (נֶשֶׁק קַר) = literalmente arma fria, arma branca. shvitat NeSHeK (שְׁבִיתַת נֶשֶׁק) = literalmente descanso de arma, armistício. mimSHaK (מִמְשָׁק) ou miNSHaK (מִנְשָׁק) = interface em computação. NeSHiKa (נְשִׁיקָה) = o doce suspiro. NeSHiKa tzarfatit (נְשִׁיקָה צָרְפָתִית) = literalmente beijo francês, como é conhecido o beijo de língua. NeSHiKa shvedit/amerikait (נְשִׁיקָה שְׁוֶדִית/אָמֶרִיקָאִית) = literalmente beijo sueco ou beijo americano, ou beijo apenas com os lábios.

Fontes: Blog Mikra Revivim, Haaretz, blog Balashon. A argumentação detalhada de Nahmanides pode ser econtrada aqui, façam uma busca por “אבק”, e logo chegarão ao trecho relevante.

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Respostas a este tópico

Yair, genial o seu artigo. Eu, como tradutor do hebraico (traduzi A. B. Yehoshua ("Fogo Amigo"), Yoram Yovell ("Saarat Néfesh") e Ron Leshem ("Im Yesh Gan Eden" - não publicado), sempre curti essas incríveis associações que existem no hebraico entre palavras da mesma raiz e com sentidos totalmente difetentes. Tenho me divertido muito com suas pesquisas. Uma das coisas que descobri na língua hebraica é a associação entre "Nahash" (cobra), o verbo "Lenahesh" (adivinhar) e "Nehóshet" (cobre), que me levou a imaginar que o cobre, o primeiro metal a ser trabalhado pelo ser humano, era na antiguidade manipulado pelos xamãs, os adivinhos, que tinham como um de seus animais de estimação mais comuns a... cobra. Você já tropeçou com essa incrível semelhança entre as três palavras? (O h sublinhado é uma invenção minha - trabalhei para uma editora especializada em temas judaicos (Exodus), e resolvi "dar um jeito" na bagunça que sempre foi da transliteração de palavras hebraicas para o porguês. O h equivale em português à letra Het, assim como o a entra no lugar do Áyin (para diferençar do "a" normal.)

Abraços.

Davy Bogomoletz

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