JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Com a criação, em 1918, da Segunda República Polonesa, os judeus acreditavam que passariam a ser aceitos na nova nação com igualdade de direitos. Mas, nas duas décadas de existência da República, as esperanças judaicas se transformaram em desespero. Os sinais do precipício que os iria tragar já se faziam ver. No entanto, apesar da hostilidade, discriminação e isolamento, no período entre guerras o judaísmo polonês forneceu grande vitalidade à vida judaica.
Edição 98 - Dezembro de 2017

No dia da invasão do Terceiro Reich, 1º de setembro de 1939, viviam na Polônia 3,2 milhões de judeus – era a maior comunidade judaica da Europa. Milhares de autores têm escrito detalhadamente sobre a Shoá, sem dúvida o mais doloroso período da História Judaica, e sobre o extermínio de milhões judeus em terras polonesas. Pouco, porém, tem-se escrito sobre o período em que existiu a Segunda República Polonesa (1918-1939), quando o endêmico e profundo antissemitismo dos “poloneses étnicos” cresceu ainda mais. E, infelizmente, sobrevive até os dias de hoje. Neste 11 de novembro de 2017 houve em Varsóvia uma manifestação durante a qual cerca de 60 mil pessoas gritavam “Europa Branca”, “Fora, judeus” e “Retirem os judeus do poder”.
Em 1918, quando nasceu a Segunda República, os cerca de 3 milhões de judeus que viviam no país eram vistos como “elementos estranhos”, que ocupavam funções econômicas e posições de poder que deveriam estar em mãos dos poloneses étnicos, e, para “o bem da nação”, tais elementos deveriam ser removidos e substituídos por poloneses.
Varsóvia era a capital do novo estado, e os judeus que lá viviam desempenhavam um papel central na vida da cidade, da população judaica polonesa, bem como dos asquenazitas do mundo todo. Em 1921, viviam em Varsóvia cerca de 310 mil judeus, número apenas superado por Nova York. A vida judaica na cidade era ao mesmo tempo tradicional e criativa, religiosamente ortodoxa e sionista, politicamente atuante. Era grande o número de partidos, instituições, organizações beneficentes e movimentos juvenis com sede na cidade.
No período entre guerras o judaísmo polonês forneceu uma poderosa, podemos até dizer inigualável, vitalidade à vida judaica religiosa e secular, à sua cultura, ao teatro iídiche, assim como à vida política, apesar da hostilidade e pobreza de grande parte da população, principalmente após a Crise de 1929.
Era uma comunidade organizada, tinha suas próprias escolas, ieshivot, hospitais, instituições assistenciais, partidos políticos, editoras, jornais e teatros. Na Polônia se fortaleceram partidos e movimentos judaicos de todas as tendências - sionistas, religiosos, socialistas, revisionistas. Viviam na Polônia grandes rabinos e talmudistas, importantes mestres chassídicos, líderes de movimentos juvenis que se tornaram heróis, renomados sionistas, historiadores, artistas, escritores e músicos de renome. A comunidade judaica polonesa era a principal arena onde floresceram diferentes linhas de pensamento religioso, ideológico, político e cultural.
Os anos que antecederam a independência
No final do século 18, desaparece do mapa da Europa a Comunidade Polaco-lituana. Em 1772, 1793 e 1795 a nação foi invadida e seu território anexado por seus poderosos vizinhos. O Reino da Prússia ficou com a parte ocidental - Poznan, Silésia e Pomerânia até o Mar Báltico; o Império Austro-húngaro com o Sul, que incluía Galícia e Cracóvia; o Império Russo ficou com mais de 60% do território: a Ucrânia, Lituânia e Polésia, inclusive Varsóvia. Com as anexações, a vida política e econômica dos habitantes, principalmente dos judeus, passa a depender das decisões tomadas em Berlim, Viena e São Petersburgo.
A Era napoleônica, de 1799 a 1815, provocara mudanças geopolíticas em toda a Europa. Após a derrota de Napoleão, para trazer de volta a estabilidade, representantes dos países vencedores (Impérios Austríaco e Russo, Prússia e Reino Unido) reúnem-se, em 1815, em Viena e redesenham o mapa da Europa. No Congresso de Viena é criado o Reino da Polônia, mais conhecido como Polônia do Congresso, para distingui-lo de reinos poloneses anteriores. Seu território correspondia, a grosso modo, às regiões de Lublin, Lódz, Mazóvia e Kielce. O novo estado era uma monarquia constitucional, a princípio semiautônoma em relação ao Império Russo. O Czar da Rússia era também o Rei da Polônia. A Polônia do Congresso constituía o coração da Polônia étnica, centro político e cultural; uma área econômica de grande importância.
Após o esmagamento de uma revolta armada polonesa contra o domínio russo – o Levante de Novembro (1830-1831) pelas forças imperiais – a Polônia do Congresso perde grande parte de sua semi autonomia. No ano seguinte é abolida Constituição, fechada a Assembleia Legislativa e desmantelado o exército.
Há uma intensificação da política de “russificação”. Em 1863, após ter sido esmagada mais uma revolta, a Polônia do Congresso é incorporada ao Império Russo e, em 1874, o nome oficial da região passa a ser País do Vístula.
No entanto, apesar das repressões e ausência de estruturas políticas formais durante mais de um século, os poloneses mantiveram vivo o anseio por um estado soberano. As lutas pela independência fortaleceram o nacionalismo polonês. Nesse período são levantadas questões do que era a “Polônia” na ausência de um estado soberano e sobre a natureza da identidade nacional. O nacionalismo polonês era profundamente católico e praticamente imune à secularização, consequentemente, um “polonês étnico”, um “verdadeiro polonês”, era necessariamente católico. Nesse período, o lugar das minorias dentro de uma futura nação soberana, principalmente dos judeus, é questionado. Com a criação de novos partidos políticos poloneses, o tema das minorias torna-se questão de extrema importância.
Vida judaica antes da Independência
Após a anexação dos territórios da Comunidade Polaco-lituana, os impérios invasores viram sua população judaica aumentar consideravelmente, e a vida dos judeus passa a depender de cada um dos soberanos. Viviam em sua maioria, nas regiões anexadas pela Rússia e sua história será ainda mais sofrida do que a daqueles que ficaram sob domínio da Prússia e da Aústria.
Assim como havia uma identidade nacional polonesa, havia uma enraizada identidade judaico-polonesa. Inúmeros foram os esforços realizados pelos diferentes governos para assimilar os judeus, mas tais esforços não tiveram, na prática, nenhum impacto sobre as massas judaicas. Eles continuavam a falar o iídiche; eram ortodoxos – divididos entre Mitnagdim ou Chassidim. A educação judaica era a tradicional, no cheder ou na ieshivá. Casamentos com não-judeus eram raros, assim como conversões. Os judeus eram orgulhosos de seu judaísmo, de suas lindas sinagogas, de seus Rebes e sábios...
Em 1772, após a primeira anexação, milhões de judeus se tornaram os novos súditos indesejados e desprezados pelo Império Russo. Num primeiro momento de seu governo, a Czarina Catarina II, a Grande, concedeu-lhes o direito de residência. Mas, em 1775, ela promulga um decreto determinando seu confinamento numa parte de seu Império, a chamada “Zona de Residência” ou “Território do Acordo” – em russo, Cherta Osedlosti. A área incluía parte da Rússia Ocidental, a Ucrânia e os territórios atuais da Bielorrússia, Lituânia e Moldova. Na Cherta viviam mais de 90% dos judeus do Império; seus maiores contingentes na região das atuais Polônia e Bielorrússia. Em seu ponto alto, a Zona de Residência tinha uma população judaica de mais de 5 milhões, constituindo o maior componente (40%) da população judaica mundial, à época.
Era também substancial a população judaica que vivia na Galícia (os judeus Galitsyaner), que se tornara uma província do Império Austríaco. O Imperador José II sobe, em 1765, ao trono da Áustria. Entre todos os governantes da época, ele foi o mais adepto às ideias iluministas, introduzindo inúmeras reformas, inclusive em relação aos judeus. Em 1781, aboliu o infame distintivo amarelo nas roupas. No ano seguinte, emitiu o Toleranzpatent - o “Edito de Tolerância”, que, entre outros, eliminou algumas das restrições em vigor em relação à população judaica. Entre as concessões estava a liberdade de viver onde quisessem, apesar de não poderem adquirir imóveis, e podiam frequentar universidades. O Edito também removeu algumas das restrições a determinados ofícios e profissões liberais. Por outro lado, passaram a vigorar várias leis para acabar com as particularidades do judaísmo.
Na região anexada pelo Reino da Prússia, o nacionalismo polonês foi reprimido e seu povo submetido a uma política de germanização. A população judaica teria status legal separado até que a região foi incorporada no arcabouço geral da Prússia. Em 1812, a Prússia se torna o primeiro Estado a emancipar os judeus.
Na Polônia do Congresso eram substancialmente diferentes do restante do Império russo as leis que governavam os judeus. Em 1862, são removidas as restrições legais sobre eles, apesar de algumas terem sido reintroduzidas pelo Czar após 1863. O estatuto jurídico dos judeus que viviam na Polônia do Congresso ainda era preferível à dos judeus que viviam em outras partes do Império. Esse fato, juntamente com o desenvolvimento econômico da região na segunda metade do século 19, levou muitos judeus a migrarem para lá. Foi particularmente grande o influxo dos chamados Litvaks, os judeus originários de Lita, palavra em iídiche que identificava a Lituânia.
Nas últimas décadas do século 19, já emancipados, os judeus se organizam politicamente. Um de seus maiores problemas era a atitude a ser tomada em relação aos vários concorrentes à hegemonia sobre os territórios da antiga Comunidade Polaco-lituana onde viviam. Nas rebeliões armadas dos poloneses de 1830-1831 e 1863, haviam participado milhares de judeus. Muitos acreditavam que a independência polonesa levaria ao desaparecimento do antissemitismo. Mas, a “indecisão” demostrada pela população judaica no primeiro momento sobre quem deveriam apoiar não seria esquecida pelos poloneses.
No final do século 19, os judeus eram um elemento basicamente urbano em uma região grandemente camponesa. Eram um grupo econômico distinto, uma minoria mais educada cuja fé, idioma e costumes diferiam frontalmente dos da maioria. Apesar da emigração em grande escala para o continente americano, nos territórios da atual Polônia cerca de 14% dos habitantes eram judeus, sendo que em inúmeras cidades eram uma grande parcela dos habitantes e, nos shtetls, muitas vezes a maioria.
Os judeus haviam desempenhado importante papel na urbanização e industrialização da Polônia, inclusive em empreendimentos comerciais e financeiros. A média e alta burguesia judaica se destacava em todas as áreas econômicas e comerciais. No final do século, em Varsóvia, dos 26 principais bancos privados 18 eram propriedade de judeus ou de judeus convertidos ao catolicismo. E os judeus se destacavam cada vez mais nas profissões liberais.
O crescimento de uma classe média urbana católica, aliado ao fortalecimento do nacionalismo, levam à exacerbarão das relações entre os “poloneses étnicos” e população judaica. As acusações contra os judeus de práticas comerciais “desleais” e de “separatismo” vão ressoar doravante com força.
A criação, em 1897, do Endecja (ou Endeks), partido nacionalista de extrema-direita, profundamente antissemita, é sintomática do forte crescimento do anti-judaísmo. As raízes econômicas e políticas do novo antissemitismo (sem contar a tradicional vertente religiosa) manifestaram-se, claramente, em 1912, quando o Endecja organizou um boicote às empresas de proprietários judeus. Na véspera da 1ª Guerra Mundial, as relações entre poloneses e judeus estavam extremamente tensas.
Segunda República Polonesa
Em 1918, depois de 136 anos de ocupação, França e Reino Unido decidem restabelecer um estado polonês soberano, a Segunda República Polonesa. Os impérios que tinham anexado o território polonês no final do século 18 haviam entrado em colapso. Áustria-hungria e Alemanha, derrotadas militarmente, estavam arrasadas internamente. Na Rússia, a Revolução de 1917 depusera o Czar e o país estava engolfado numa sangrenta guerra civil entre os bolcheviques e as várias forças contrárias a eles, inclusive polonesas.
No Tratado de Versalhes de 1919, que encerrou oficialmente a 1a Guerra Mundial, os termos impostos à Alemanha incluíam a perda de uma parte de seu território para nações fronteiriças. A Polônia acabou ficando com territórios dos Impérios Austro-húngaro e Alemão – entre outros, a Província de Posen, outrora parte da Grande Polônia, “berço da nação polonesa”, e a parte leste da Alta Silésia. Ficou, também, com parte do território que a Rússia perdera no Tratado de Brest-Litovski1. Depois de anexar a região da Galícia oriental, a Polônia, no decorrer da Guerra Polaco-soviética (1919-1921), consegue expandir-se mais para leste. A guerra era, em parte, o resultado da insegurança dos poloneses em relação às fronteiras orientais por causa da Guerra Civil na Rússia. Mas, a verdade é que o Marechal Józef Piłsudski, revolucionário e líder das forças armadas, viu nesta instabilidade a oportunidade de expandir as fronteiras do jovem estado, como de fato ocorreu.
Em 1921, quando foram definidas as fronteiras, a Segunda República da Polônia era o sexto maior país da Europa, contando com 27,2 milhões de habitantes. Destes, cerca de 11 milhões eram minorias. Os judeus chegavam a 3 milhões.
Em teoria, as minorias, inclusive a judaica, eram protegidas por tratados internacionais assinados pelos recém-criados estados na Conferência de Paz de Versalhes, em 1919. Entre outros, esses tratados garantiam a liberdade religiosa e a igualdade civil; asseguravam o direito das minorias de manter suas tradições sem ser discriminadas, e seus idiomas. Entre as garantias dadas aos judeus, em particular, estava o respeito ao Shabat por parte do Estado.
Os tratados das minorias não foram bem recebidos pelos recém-criados Estados. Polônia, assim como Romênia, resistiram fortemente. Alegavam que outras nações não tinham o direito de interferir nos assuntos internos e que esses tratados eram fruto do lobby judaico-americano. As negociações desses tratados ocorriam enquanto na fronteira russo-polonesa eclodiam pogroms.
Que papel as minorias teriam no novo Estado era uma pergunta que muitos poloneses étnicos se faziam. Por que “estrangeiros” detinham o controle da indústria, comércio, e de outros setores fundamentais à economia? A bem da verdade, os judeus não eram o único alvo dessa hostilidade. Milhões de cidadãos das antigas potências imperiais eram também vistos como “estrangeiros” usurpadores da riquezas e direitos dos poloneses. Havia, porém, uma diferença básica: todos, a não ser os judeus, tinham um “estado-irmão” ao qual podiam recorrer mesmo não sendo cidadãos. Os judeus estavam sós.
Na época da criação da Segunda República, o pensamento político em relação a estrutura de um estado polonês independente apresentava duas vertentes principais. A da direita acreditava que deveria haver uma completa identificação do Estado com a nação polonesa étnica – ou seja, com a população polonesa e católica. A extrema direita, o Endecja, ia além, queria um estado polonês católico de domínio exclusivo dos poloneses étnicos. A esquerda e centro se inclinavam para uma “parceria” mais ampla do Estado com as minorias. Poloneses étnicos eram “os primeiros entre iguais”, mas a Polônia seria um estado de muitas nacionalidades. Parecia não haver muito espaço para os milhões de habitantes não poloneses que viviam no território da Segunda República, muito menos para a população judaica.
Os judeus na Polônia independente
A criação de um estado polonês soberano não levou, como muitos judeus acreditavam, a uma aproximação com os não judeus. Nenhum tratado internacional poderia mudar a atitude polonesa em relação a eles. Os judeus eram vistos como “elementos desnecessários”, até mesmo “prejudiciais”. Eles eram “estranhos”, sem nenhum direito legítimo de estar na Polônia. A Igreja católica para qual a esmagadora maioria de poloneses se voltava em busca de orientações morais, era profundamente impregnada de doutrinas antijudaicas e preconceitos antissemitas. Apesar do Papa Pio XI ter dito, em 1938, que o antissemitismo era “inadmissível”, ele próprio, enquanto Núncio Apostólico da Polônia, em 9 de janeiro de 1919, época marcada por pogroms, escreveu numa carta ao Cardeal Pietro Gasparri, Secretário de Estado do Vaticano: “Uma das influências mais fortes e nocivas aqui sentidas, talvez a mais forte e a mais nociva de todas, é a dos judeus”.
Ademais, a 1a Guerra e a independência polonesa haviam deixado um legado de profunda amargura. Para os poloneses, os anos de Guerra provaram que os judeus eram “anti-poloneses”, “pró-bolcheviques” e “pró-ucranianos”. Para a população judaica, foram anos extremamente trágicos. Milhares foram mortos pelos russos tanto durante a invasão do território do futuro Estado polonês, como na retirada de seu exército. Em inúmeras ocasiões os judeus foram apanhados entre forças inimigas – entre os poloneses e os lituanos em Vilna, entre os poloneses e os ucranianos em Lvov, e entre os poloneses e os bolcheviques durante a guerra de 1920. Como se não bastasse, haviam-se tornado alvo de uma campanha polonesa de terror e pogroms. Os dois principais ocorrerem em Lvov, em 1918, e em Vilna, em 1919.
Outros milhares foram mortos no decorrer da Guerra Polaco-soviética (1919 -1921), quando as forças polonesas invadiram regiões onde viviam um grande número de judeus ucranianos. O soldado típico, camponês-polonês, era católico fervoroso e crescera sendo alimentado com ideias antijudaicas. Seu ódio crescia ainda mais ao identifica-los com os odiados bolcheviques. No avanço ou retirada de suas tropas, os polacos devastavam comunidades judaicas inteiras, que já haviam sido massacradas pelos russos e ucranianos. Eles invadiam os bairros judeus, bombardeando casas, incendiando lojas, enfileirando os judeus que capturavam para os fuzilar. Cerca de 30 mil judeus foram mortos, outros milhares feridos, mulheres violadas. O assassinato em massa só terminou quando os Aliados ameaçaram intervir; mas as matanças esporádicas seguiram em frente.
Apesar do derramamento de sangue judaico, em termos jurídicos a situação da população judaica na Polônia independente era aparentemente excelente. Eram grandes as esperanças de um futuro pacífico lado a lado aos poloneses.
As esperanças não demoraram a cair por terra. Os líderes judeus encontravam dificuldades em assegurar a implantação dos termos do Tratado das Minorias. Os dois elementos fundamentais da autonomia judaica – a escola e a Kehilá (comunidade organizada) – não foram autorizados a se desenvolver livremente. Ademais, a República Polonesa chegou a tolher os poderes das Kehilot, restringindo-as a funções puramente religiosas. Os dispositivos legais discriminatórios remanescentes contra os judeus nos territórios herdados do Império Russo e Austríaco permaneceram até 1931. Nesse ínterim, uma série de medidas tornou o tratado ineficaz e, em 1934, diante da aprovação pública, o governo o repudiou.
Mas os judeus poloneses eram resilientes, determinados a lutar pelos seus direitos na arena política. A política judaica atingira nesse país seu mais pleno desenvolvimento. O sionismo, que emergira em meados do século 19, era uma força política não apenas na comunidade, mas também na política nacional, e internacional. Quando o governo polonês, que, no início, era constituído por partidos de centro e direita, tentou adotar um sistema eleitoral que afetaria a representação proporcional das minorias no Sejam (Parlamento), os judeus reagiram formando uma frente unida para concorrer às eleições. Em 1922, o “bloco das minorias” conseguiu uma substancial vitória. A facção judaica elegeu 35 dos 444 membros do Sejm, Câmara de Deputados. Mas a união entre as minorias não perdurou e a influência dos partidos judaicos foi diminuindo.
Política de Estado
Em termos da História Judaica, o que distingue o período antes da 1ª Guerra daquele entre as duas Guerras é a política de Estado abertamente antissemita. Em tempos caracterizados pelo papel dominante que o governo assumira na vida econômica, essa discriminação foi desastrosa. Na década de 1920, a situação econômica da Polônia era grave e o governo adotou a política de estatismo, uma forma de capitalismo de Estado. No campo econômico essa política implica uma forte intervenção do Estado que atua como empresário em diversos setores.
As medidas antijudaicas adotadas pelo governo, que podemos definir como um “pogrom morno”, era resultado dessa política, aliado a uma grande dose de antissemitismo.
À medida que o estado passa a controlar toda a economia, as políticas econômicas arruinaram muitos dos grandes comerciantes e industriais judeus, assim como os pequenos empresários tradicionais. Uma lei que obrigava a todos os cidadãos o descanso dominical acabou arruinando os lojistas judeus que perderam o lucrativo comércio dos domingos. Até os artesãos passaram a necessitar de licença para trabalhar. Ademais, os judeus deixaram de ser contratados para trabalhar na administração pública, em bancos e monopólios estatais. Milhares foram demitidos de fábricas de cigarro quando o Estado assumiu o monopólio do tabaco. Outros tantos ficaram sem emprego em outros setores controlados pelo estado. Líderes judeus chegaram a acusar o governo de estar promovendo “o extermínio econômico dos judeus poloneses”. Esse processo, já perceptível no final do século 19, foi acelerado de forma tremenda por um governo que queria todas as principais posições econômicas em mãos de elementos “leais”, a dizer, poloneses étnicos.
Em 1926, em meio a profunda crise econômica e uma inflação galopante, o marechal Józef Piłsudski, herói nacional, dá um golpe de Estado e assume o poder, instalando um governo autoritário. A princípio, seu governo tem uma atitude positiva em relação aos judeus. Apesar de odiá-los, pessoalmente – como demostrara durante a Guerra Polaco-soviética – um dos primeiros atos de Piłsudski foi acabar com a política antissemita do governo. Centralizando a maior parte de suas atenções nos assuntos de defesa e relações públicas, ele não demostrava um interesse especial em relação à “questão judaica” e nem exibia em público sentimentos contrários aos judeus. Um líder sionista, Apolinary Hartglas, escreveu que, no primeiro ano do governo de Piłsudski, a “propaganda antissemita cessara ... ninguém se atrevia mais a publicar listas negras de poloneses que ousavam comprar de estabelecimentos judeus… ninguém atacava ou surrava os judeus ...”. No entanto, nenhum avanço foi feito em relação às minorias, principalmente a judaica.
O banimento de Piłsudski ao antissemitismo “oficial” veio muito tarde para poder ajudar a população judaica. Menos de três anos mais tarde, a Crise de 1929 atinge a Polônia e o país entra em profunda depressão econômica. Empresas faliram e havia desemprego em massa entre os trabalhadores e os agricultores. Os que mais sofreram foram os judeus, que, já enfraquecidos economicamente pelo estatismo, foram alijados para uma marginalização econômica da qual nunca se recuperaram.
O desemprego entre sua população era bem maior do que entre os não judeus, em parte pelo fato de terem sido barrados do serviço público onde os empregos eram mais seguros, e porque era pequeno o número de trabalhadores judeus nas grandes empresas. A maioria trabalhava em pequenas oficinas que rapidamente foram à falência.
Em 1931, um milhão de judeus estavam desempregados. Lódz, importante centro têxtil, fora transformado num necrotério industrial. Em Lvov, 29 % dos judeus estavam sem emprego. Em 1931, em Varsóvia, onde dois de cada cinco habitantes eram judeus, 34% da força de trabalho judaica estava desempregada. A Beth Lechem, uma entidade de assistência social judaica, mantinha vans nas ruas oferecendo chá e pão para que judeus famintos não caíssem de fraqueza. A Sociedade de Proteção à Saúde dos Judeus (TOZ), fundada em 1921, forneceu em seus relatórios a trágica evidência do colapso econômico de sua gente. As comunidades judaicas do exterior ajudavam como podiam; o Joint (American Jewish Joint Distribution Committee - JDC), organização de assistência humanitária norte-americana2, sustentava mais de 150 mil famílias e fornecia fundos para a TOZ e outras congêneres. Mas a ajuda acabou sendo reduzida por causa da Grande Depressão de 1929 e, após 1933, pela necessidade de enviar recursos para ajudar os judeus alemães vítimas da perseguição nazista.
Cresce o fascismo polonês
Com a Crise de 1929, as ideias de Piłsudski de um Estado que abrangesse todos os cidadãos deu lugar à ideologia nacionalista. Com a paralização de um segmento da economia nacional após o outro, os camponeses, o proletariado urbano e a classe média polonesa começam a vociferar cada vez mais seu descontentamento.
As classes privilegiadas polonesas – os grandes industriais, a oligarquia nobre, assim como os latifundiários e a Igreja – donos de grande parte das terras cultiváveis da Polônia, não estavam dispostos a implementar as mudanças necessárias no tecido econômico do país, que implicaria necessariamente na perda de seus privilégios, para sanear a economia. Esses grupos usaram o antissemitismo da população ao máximo para ocultar das massas trabalhadoras e dos camponeses a verdadeira origem das dificuldades econômicas que a nação enfrentava.
A maioria dos poloneses estavam convencidos de que a economia, e consequentemente sua situação, melhoraria se os judeus fossem eliminados, ao menos da esfera econômica.
As atitudes políticas dos poloneses étnicos passaram a variar de profunda hostilidade da direita a uma atitude cautelosa da esquerda. Os partidos da direita, como o Endeks, defendiam abertamente a completa eliminação dos judeus da sociedade e dos postos de emprego remunerado e sua imigração em massa. Os socialistas, embora condenando os ataques físicos e verbais violentos que ocorriam na época contra os judeus, não estavam imunes ao antissemitismo. Havia inclusive socialistas entre aqueles que preconizavam a partida em massa da população judaica. O partido dos Camponeses, que se opusera ao antissemitismo na década de 1920, em meados da década de 1930 declara que os judeus eram uma “nação estrangeira”, endossando o incentivo à emigração judaica.
A partir de 1933, o problema da sobrevivência judaica se complicava. Um antissemitismo cuidadosamente cultivado somou-se ao desastre econômico da Grande Depressão. Após a morte de Piłsudski, em 12 de maio de 1935, o ódio aos judeus aumentou; parecia que com sua morte as forças que o haviam contido se desencadearam. Uma variedade de grupos paramilitares fascistas, apoiados pelos acontecimentos na Alemanha, proliferam pelo país inteiro, abertamente estimulados pela propaganda católica. Os grupos paramilitares mais notórios eram Endeks e Naraso. Vagando pelas ruas à procura de judeus, os grupos fascistas provocavam badernas, distúrbios públicos, atacando brutalmente os judeus nas ruas e nos trens. Lojas e residências judaicas eram saqueadas.
Uma campanha ativa, semioficial, procurou limitar o acesso dos judeus à instrução superior, com o fatídico numerus clausus. Os poucos que conseguiam ser aceitos nas universidades eram perseguidos; em inúmeras universidades eram obrigados a assistir às aulas nos “bancos do gueto”.
De 1935 em diante, a violência irrompeu em um clima de ardorosa retórica e de atividades políticas, com distúrbios organizados em 50 cidades polonesas que deixaram muitas mortes. Em março de 1936 um pogrom em Przytyk, um shtetl perto de Radom, deixou dois judeus mortos e muitos feridos. Em julgamentos subsequentes dos envolvidos, os defensores judeus receberam penas muito mais pesadas que os atacantes. Milhares de judeus participaram de marchas de protesto em Radom e outros lugares da Polônia. O clima entre judeus e não judeus se intensifica e cresce o número de pogroms.
Um boicote econômico foi iniciado tendo amplo apoio da população, e a aprovação da Igreja e membros do governo. Em 1936, uma carta pastoral do Cardeal Hlond, Primaz da Polônia, publicamente conclama a população de aderir ao boicote. O primeiro MinistroFelicjan Sławoj Składkowski o endossa, com a única ressalva de “não violência”.
No início de 1937 formou-se um novo agrupamento político, o OZON, “campo da unidade nacional”. A ênfase dessa facção política, que dominou até a invasão alemã, era sobre os princípios totalitários e os laços católicos. Era extremamente antissemita, não aceitando membros judeus, preconizando leis discriminatórias e também exigindo a emigração judaica.
Nos primeiros anos da república, o antissemitismo embora um fato aceito, era contido; em 1938 era aberto e unia governo e oposição. Na época, chegou a ser cogitada a imigração de judeus para o Madagascar. Eles eram vistos como um “empecilho” ao progresso da Polônia. Alguns círculos liberais e socialistas saíram em defesa do judaísmo, mas suas vozes se perderam.
A verdade era que para a maioria dos poloneses, a Polônia sofria de uma “superpopulação judaica” e sua emigração em massa era uma necessidade premente. Muitos judeus pensaram em deixar o país. Em 1936, Vladimir Jabotinsky, cognominado Ze’ev, que fundou o Movimento Revisionista Sionista Betar, declarou publicamente que os judeus deviam deixar a Polônia. Mas a pergunta era: para onde? Na década de 1930 inúmeros países, para não dizer a grandíssima maioria, não hesitavam em declarar sua má-vontade em recebê-los.
Os judeus poloneses estavam cercados de hostilidade. Sem poder contar com aliados poloneses, tampouco com nações-irmãs, os partidos judaicos e os líderes da comunidade não conseguiam influenciar o curso dos acontecimentos. A participação dos partidos judaicos no parlamento havia sido imensamente reduzida a partir de 1935. A resposta política dos judeus foi voltar-se para o nacionalismo judaico. O colapso econômico e crescimento do antissemitismo levaram a uma maior radicalização dos partidos e movimentos.
À medida que desapareciam as esperanças de uma autonomia judaica e de um avanço pacífico, ganharam mais adeptos as soluções mais extremas para a “questão judaica”. Dentro do Movimento Sionista cresceram as facções socialistas e a Direita Revisionista, encabeçada por Jabotinsky, assim como o Partido Sionista Religioso, o Mizrahi. O Bund disputava o terreno com o Comunismo e o Sionismo Socialista. Aumentam os movimentos como o Halutz, HeHalutz Hatzair, Hashomer Hatzair, que resultaram na emigração em larga escala para Eretz Israel.
Em 1939, Varsóvia com seus 381 mil judeus, número maior do que em qualquer cidade do continente, chegava mais perto do status de “capital da Diáspora Judaica”. Nos dias que antecederam a invasão alemã, a atmosfera entre os judeus da cidade era uma mistura de medo e euforia patriótica. A medida que aumentava a probabilidade de uma guerra, eles ingressavam na mobilização civil e militar. Estavam aliviados em perceber que, ao menos nessa crise suprema, os poloneses os aceitavam. Grave engano.
No dia 1º de setembro, quando a Alemanha nazista invadiu a Polônia, viviam no país 3,3 milhões de judeus, quase 10% do total de seus habitantes. Quando a guerra terminou, entre 50 a 70 mil estavam ainda vivos na Polônia, e outros 180 mil na União Soviética. Três milhões de judeus poloneses haviam sido assassinados.
1Tratado de Brest-Litovski, assinado em março de 1918 entre o novo governo russo e as Potências Centrais
(os Impérios Alemão, Austro-húngaro, Otomano e a Bulgária), reconhecia a saída da Rússia do conflito. A Rússia foi obrigada a abrir mão da Finlândia, Países Bálticos, Polônia, Bielorrússia e Ucrânia.
BIBLIOGRAFIA
Wasserstein, Bernard,On The Eve: The Jews of Europe before the Second World War. eBook Kindle
Gold, Ben-Zion, The Life of Jews in Poland before the Holocaust: A Memoir

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