Quem matou Yitzhak Rabin?
Bernardo Sorj
Como em todos os crimes contra grandes figuras da historia, a mão que segurou o revolver assassino não foi orientada por motivações individuais. Ela é sempre parte do fio de uma meada costurada por outros, próximos e distantes do assassino, que depois do evento, acabam, também, participando do coro de lamentações.
O que dizer dos cartazes, em manifestações da oposição antes das eleições que escolheram Yitzhak Rabin como primeiro ministro, nos quais ele aparecia com roupas de oficial da SS? Simples exagero eleitoral? E das cerimônias que amaldiçoam e expressam o desejo de que o amaldiçoado morra— Pulsa di Nura — , realizadas por rabinos contra os políticos que se dispõem a negociar a paz com os palestinos? São apenas eventos exóticos? E dos gritos de “Nazis” e “Gestapo” com os quais foram recebidos os soldados e policiais que evacuaram os assentamentos de Gaza? Não passam de um episódio banal de acirramento dos ânimos? E das instruções de tantos rabinos para que os soldados desobedeçam às ordens dos oficiais relativas a retirada dos territórios? Simples retórica religiosa? Ou da granada que, antes do assassinato de Rabin, matou um israelense durante uma manifestação pela paz? Foi mais um ato isolado?
Não nos enganemos: uma parte da sociedade israelense está doente, pois sofre de um fanatismo teológico/nacionalista que é, de alguma forma, compartilhado por aqueles setores da diáspora que a apoiam, ativa ou passivamente. Uma doença que alguns preferem ignorar por medo de “estar fazendo o jogo do inimigo” e/ou que procuram justificar pela situação de conflito. Atitude irresponsável, pois os fatos são todos de conhecimento público, e enfrentar suas consequências nefastas interessa em primeiro lugar aos judeus pois o silêncio só prejudica ao povo judeu e ao Estado de Israel.
Todos os que se calam sobre uma ideologia que dificulta a possibilidade de se atingir a paz e que está transformando o Estado de Israel em um país onde grupos religiosos questionam cada vez mais o pluralismo e a liberdade de consciência individual, estão compactuando com ela. Uma ideologia que representa o oposto daquilo que dois mil anos de história judaica nos ensinara: que o segredo da sobrevivência está na sabedoria dos livros e no respeito à vida, que não idolatramos nem pedaços de pedra nem de terra, que o nacionalismo fanático é destrutivo, que a religião só pode preservar seu papel espiritual se estiver destituída do poder de impor crenças e que a chegada do Messias é um ideal espiritual em de um mundo mais harmônico e pacífico que não pode ser imposto pelas armas.
Devemos ter a coragem de entender como surgiram no interior do povo judeu forças obscuras, porque elas nos dizem algo a respeito de cada um de nós, e quanto mais adiamos o momento de encará-las, com mais vigor elas vão nos atingir. Forças obscuras ancoradas em dois mil anos de história nos quais elaboramos a maioria das conquistas culturais das quais nos orgulhamos, mas que também nos levaram a recalcar emoções e desejos (de sermos poderosos, de impor a nossa vontade pela força, de xenofobia) que vieram à luz com a conquista do território palestino na Guerra de 1967. Junto com as emoções também foram reprimidos elementos de nossa cultura, que apresenta uma enorme diversidade de valores e relatos, muitos deles edificantes mas outros inaceitáveis no mundo contemporâneo. A falta de poder político na diáspora deixou na penumbra muitos elementos da tradição bíblica e talmúdica que não possuem nada em comum com valores democráticos e humanistas.
O retorno das emoções e componentes reprimidos da cultura está acontecendo em setores nacionalistas/ultraortodoxos da diáspora e em Israel. E não nos iludamos, este retorno do reprimido não deve ser confundido, e não tem nada a ver, com o realismo político responsável que aconselha Israel a zelar pela sua segurança. É o retorno de crenças que ferem tanto a sensibilidade humanista quanto o realismo pragmático - pois nenhum império com os exércitos mais poderosos sobreviveu - , que sustentam visões fundamentalistas e xenófobas as quais acreditam que Deus está envolvido no conflito entre Israel e Palestina, e argumentam que a atual guerra é de caráter religioso e portanto não negociável.
Quem matou Yitzhak Rabin há 15 anos? Fomos todos nós, porque não nos levantamos de modo suficientemente claro e vigoroso para dizer: não apoiamos os setores radicais da sociedade israelense, nos oporemos sempre que a política externa do Estado de Israel tiver como base o fanatismo nacionalista e quando a religião se misturar e confundir com agendas de poder.
O autor é sociólogo e escritor
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