O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana
Um Bibliotecário Escravo. Paulo Blank
Sentados ao redor da mesa de jantar e deixando o pensamento vagar por diferentes assuntos, os amigos aproveitavam a noite fresca da casa em Botafogo quando alguém, achando a conversa um tanto vadia, infiltrou uma palavra-bomba disfarçada de pergunta inocente. Permaneci calado e fingi que não era comigo. Existem assuntos que, na minha idade, evito discutir. Sem considerar o meu silencio, uma delas correu atrás do meu olhar e quando o encontrou disse cheia de certeza que, em definitivo, entendeu o problema palestino depois de ter assistido “Nossa Música”, um filme do Godard. Concluindo que a razão de tudo era a falta de poetas em Israel, me perguntou se havia por lá este tipo de gente. Respondi que aquilo já não era pergunta, era resposta e, dito isto, provoquei uma explosão que encheu a noite de gritaria onde as palavras sionismo e nazismo eram pitéus saboreados com raro prazer apesar da sobremesa tão elogiada. Um dos presentes, antropólogo recém chegado do estrangeiro, quando foi possível, comentou que em suas viagens pelo mundo cansou de ver este assunto, o conflito Israel e palestinos, tirar do sério muito intelectual de renome, tornando-os incapazes de qualquer julgamento equilibrado.
Em plenos anos dourados, eu era um garoto que brincava carnaval no bloco do sujo e corria com a meninada sobre o chão de pé de moleque na vila em que vivíamos na Rua de Sant’Anna da Praça Onze. Ali, bem no centro do Rio, volta e meia me perguntavam por que não me benzia quando passava um enterro. Quando a minha mãe, uma refugiada da Polônia, me pegou tentando dar uma resposta vaticinou com ar de quem conhecia aquela prova: “Não adianta, eles não vão te entender”. Ou seja, ela me dizia que existem situações onde a razão não funciona. O ouvinte, prisioneiro de alguma crença, não consegue alcançar o entendimento do outro. O outro, enfim, deixa de fazer diferença, faça ele o que fizer. Talvez tenha sido por isso que a Sarita, quando quis aderir à malhação do Judas, foi afastada por ser judia e assassina de Deus. Enquanto isto, respaldado na sabedoria materna, eu só saia de casa no sábado de Aleluia depois de ver o Judas abandonado para acabar de arder bem em frente da nossa porta. Quando as labaredas terminavam e os ânimos se acalmavam, eu voltava à brincadeira na rua passando por cima das cinzas que a mãe varreria no abrigo da noite.
Hoje, teimando em desobedecer à Dona Malka, me pego pensando se as crianças da vila de Sant’Anna não estariam dramatizando um ritual simbólico onde acusavam e puniam os judeus pelo crime de matar um Deus que, isso ninguém lhes contava, era tão judeu quanto Judas? Submetendo Judas às pauladas e ao fogo, repetiam o que no passado foi feito aos judeus vingando o assassinato de Deus. Trabalho mental e cultural onde as palavras precisam denunciar e disfarçar com a ajuda de jogos e ritos o mesmo ódio que alimenta e explode na mente de pessoas equilibradas como aconteceu na Europa culta e racionalista na segunda guerra mundial? Pergunto se o Ocidente um dia conseguirá desfazer a judaização do judeu enquanto sinônimo de maldade. A palavra judiar (como os judeus fizeram a cristo) não desvela uma cultura que fundiu maldade-satanás-judaísmo numa cadeia de significações cravada no seu inconsciente? No Pessach os judeus não costumavam raptar um menino cristão e assassiná-lo com os mesmo suplícios do Deus-menino-Jesus? Na sexta feira da paixão de Cristo, quando depois dos sermões o povo invadia o bairro judeu para vingar com sangue e fogo o eterno morrer e ressuscitar de Jesus, o que faziam não era tornar real o drama encenado na vila de Sant’Anna? Não foi Santo Agostinho que, a propósito de Jesus e os Judeus, (354-430) ensinou que estes “coroaram-no de espinhos, aviltaram-no cuspindo-lhe na face, flagelaram-no, transpassaram-no com uma lança” acrescentando que, com “a sua dispersão e sua desgraça são um povo testemunha do demônio e da verdade cristã, subsistem para a salvação da nação cristã, mas não para a própria”. Criou assim a doutrina do Povo Testemunha. Os Judeus deveriam sofrer sem ser destruídos para validar permanentemente sua verdade da Igreja. Mas, ao ditar esta razão aceita e difundida ao longo dos séculos, sem perceber Agostinho equiparava o suplício dos judeus ao sofrimento do Jesus aprisionado a quem eles reviviam em seus corpos submetidos à dor. Por fim, Agostinho completava a sua teoria do povo testemunha, dizendo que os judeus seriam o “Bibliotecário Escravo” carregador das antigas Escrituras para provar que estas caducaram na medida em que o filho mais novo triunfara sobre o mais velho. Diante de tal imaginário cultural quem sou eu para tentar conversar sobre um conflito que arranca as pessoas de seu equilíbrio racional em qualquer lugar do mundo ocidental e cristão?
Bem que a minha mãe me avisou.
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Eis um artigo brilhante.
Este eu assinaria, com orgulho, abaixo.
Valeu
Norma Schipper
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