JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

O sequestro do sionismo humanista

 

                                                                                                 Esther Kuperman[1]

 

O surgimento do sionismo, em fins do século XIX, coincidiu com o contexto de fortalecimento dos movimentos nacionalistas na Europa. Também entendido como nacionalismo judaico, o sionismo foi fruto da conjuntura em que os povos europeus reafirmavam suas identidades e do crescimento das manifestações de intolerância étnica ou religiosa que recaíam sobre grupos sociais que, como os judeus, insistiam na manutenção de suas especificidades culturais mesmo situados em Estados nacionais onde predominavam grupos étnicos homogêneos.

 

Mesmo despontando como movimento de afirmação identitária, o sionismo também traduzia as lutas sociais que ocorriam na Europa neste período, absorvendo influências das linhagens ideológicas que disputavam espaço naquela conjuntura. Desta forma, as correntes filiadas ao pensamento sionista, desde sua origem, não eram homogêneas e exprimiam as diferenças decorrentes de divisões sociais. Havia, então, desde o sionismo marxista - representado por Ber Borochov - para quem a existência do Estado de Israel seria conseqüência da luta de classes - até o sionismo revisionista, cuja principal liderança, Zeev Jabotinsky, possuía concepções acerca da questão nacional judaica muito próximas ao fascismo.

 

Identificamos duas questões importantes para a discussão sobre o papel e o lugar do sionismo na atualidade: a primeira considera as transformações que o sionismo sofreu ao longo da segunda metade do século XX.  A segunda trata da relação entre os diversos sionismos e as várias concepções acerca do conflito entre israelenses e palestinos. Na verdade, consideramos que estas duas questões estão entrelaçadas, pois é de cada uma das concepções acerca da natureza do Estado de Israel e de seu destino que emanam as diferentes propostas e formas de enfrentar o conflito entre israelenses e palestinos.

 

 

Nacionalismo judaico ou ideologia nacional israelense?

 

 

A resposta a esta pergunta carece de uma diferenciação conceitual entre nacionalismo e ideologia nacional. Para nós a ideologia nacional diz respeito à lealdade política de cada indivíduo ao seu Estado nacional, comportamento experimentado cotidianamente. Mas, em momentos de crise, esta mesma ideologia nacional adquire forma exacerbada, caracterizada pela reafirmação categórica dos elos de pertencimento a um Estado nacional, o que a torna excludente e que entendemos como nacionalismo.

 

Ao examinarmos a nação como comunidade imaginada, temos a noção de que pertencer a ela corresponde à moderna noção de cidadania, uma vez que nos define como membros de uma coletividade cuja soberania se expressa no Estado nacional.   Sendo este Estado nacional uma construção nascida com a modernidade e contemporânea da noção de cidadania, a conquista desta mesma cidadania seria realizada através de sua existência. No caso dos judeus, a cidadania – muitas vezes negada nos países onde se encontravam – poderia ser obtida através da construção de um Estado, capaz de abrigar judeus de todo o mundo, igualando-os aos demais povos, especialmente do ponto de vista da existência de um território comum.

 

A idéia da construção de um Estado capaz de abrigar os judeus e conceder-lhes uma cidadania de acordo com os padrões contemporâneos não surgiu espontaneamente, mas foi desencadeada pela marginalização dos judeus nos diversos países em que se encontravam. Se no início do século XX o nacionalismo judaico era ainda um sentimento difuso, consolidou-se nos momentos em que o impedimento à participação na vida pública se ampliava, cedendo lugar a ataques mais diretos, que ameaçavam a existência física dos judeus e tiveram sua culminância no Holocausto.

 

Ao invés de erradicar os vínculos dos judeus com suas tradições culturais e religiosas, o Holocausto constituiu fator de fortalecimento destas relações, corroborando também para o crescimento de um projeto nacional judaico. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, os judeus sobreviventes ao Holocausto encontravam-se fortemente imbuídos de sua especificidade cultural, e principalmente, de sua característica nacional. Portanto, a convergência entre estes dois fatores - uma ideologia nacional judaica transformada em nacionalismo e a emergência de um fato histórico como o Holocausto - tornou possível a ocorrência de articulações e pressões no sentido de que fosse criado o Estado de Israel. Assim, o sionismo depois da Segunda Guerra mundial ainda se caracterizava como ideário de afirmação da nacionalidade judaica, uma vez que apontava apenas para a necessidade da construção de um lar para os judeus de todo o mundo.

 

Antes mesmo do Holocausto já havia migração de judeus para a região onde hoje está situado o Estado de Israel. Mas esta migração era constituída, predominantemente, por judeus de tendência socialista, que viam na construção dos kibutzim uma forma de edificar uma sociedade igualitária. Com o fim da Segunda Guerra mundial a migração se tornou mais heterogênea do ponto de vista dos ideais políticos dos imigrantes, pois, em sua maioria, os judeus rumavam para a nova pátria com o objetivo de construir ali um novo lar, independente da sua configuração econômica e política.  Mesmo neste período o campo político conservador, constituído pelos seguidores de Jabotinsky - o Irgun e o Stern - ainda era minoritário. Tais fatores colaboraram para definir os espaços de cada um dos grupos no novo Estado, mas a Guerra Fria foi um componente fundamental para definir o peso de cada um dos campos e garantir a hegemonia dos grupos mais identificados com o pensamento capitalista.

 

Durante os primeiros anos de existência o novo Estado ainda se apresentava como um projeto em construção. Da pavimentação de ruas à organização de uma legislação, da ordenação dos partidos políticos (calcados nas correntes ideológicas existentes na diáspora), à construção de escolas, hospitais, casas, pontes, tudo tinha de ser feito, iniciado, definido. Nestes momentos, a correlação de forças no interior das comunidades judaicas sediadas nos demais países foi decisiva para a definição da estrutura jurídica e política do novo país. Influenciando de fora para dentro, as comunidades judaicas tiveram participação ativa na construção do Estado de Israel. Nestes momentos o sionismo, em todas as suas correntes, colaborou para o povoamento dos espaços e agências do novo Estado e para sua configuração política.

 

Este foi o período em que o sionismo cumpriu seu papel de ideologia nacional, ou seja, foi o ideário que produziu os vínculos que transformaram judeus em israelenses. Era fundamental gerar um processo de auto reconhecimento nos judeus que migravam para Israel para que se concebessem não mais como etnia ou grupo religioso, mas como povo regular. Fundamental para a consolidação do projeto nacional, o sionismo também foi responsável pela formulação de uma identidade nacional israelense.

 

Claro que esta identidade não está desligada nem anula a existência das diferenças econômicas e sociais, uma vez que o próprio nacionalismo é uma ideologia legitimadora do Estado capitalista. Justamente por isso, a consolidação de Israel, como país capitalista, também foi possível através da ideologia sionista.

 

Esta construção, que se realizou ao longo das primeiras décadas de vida de Israel, possuía uma característica importante e que precisa ser aqui ressaltada: para o sionismo deste período a representação do espaço geográfico de Israel tinha como referência as fronteiras delimitadas em 1947. Neste sentido, o ano de 1956 (da guerra do Sinai), mas principalmente o ano de 1967 (da guerra dos Seis Dias) podem ser definidos como divisores de águas, tanto para a existência do Estado de Israel, quanto para o papel do sionismo como ideologia nacional judaica.

 

A guerra dos Seis Dias e a conseqüente expansão das fronteiras israelenses para além das linhas delimitadas pela ONU em 1947 refletiu profundamente na maneira como se reagruparam as forças políticas do país a partir de 1967. Administrar os territórios anexados e uma enorme população de refugiados exigiu esforços econômicos e militares que mudaram as prioridades e absorveram recursos antes destinados ao desenvolvimento das forças produtivas. Tais exigências criaram espaço para o crescimento dos campos políticos identificados com o discurso nacionalista exacerbado, grupos que insistiam em se autodenominar sionistas, mas transformaram o pensamento sionista em projeto expansionista e promotor de exclusão política e social. Assim, o sionismo, que antes se apresentava como ideologia nacional, passou a constituir a base sobre a qual foi promovida a expansão territorial e a afirmação do povo judeu em detrimento de outros povos. E, ao perder sua característica de promotor da unidade política do povo judeu, este novo sionismo nem de longe lembrava os atributos iniciais deste ideário.

 

Com suas instituições políticas consolidadas e uma sociedade de classes estruturada, o Estado de Israel já vivia, ao final dos anos 60, o desmantelamento do welfare state e a redução da presença do Estado na economia, como em todo o mundo capitalista. Mas a guerra e a ocupação traçaram novo perfil para a sociedade israelense. A existência dos territórios ocupados e a presença dos palestinos dentro novas fronteiras (conquistadas com a guerra) impuseram novas diretrizes, aprofundando as medidas que restringiam os investimentos sociais. Do ponto de vista dos trabalhadores israelenses as mudanças também foram importantes: a princípio, os palestinos ocuparam a base da força de trabalho, exercendo funções que exigiam menor qualificação, o que preenchia uma importante demanda da economia israelense, mas também contribuiu para uma reformulação na maneira como se apresentavam as classe sociais no interior da sociedade israelense. Com a continuação da ocupação e as próprias contradições entre o capital e o trabalho – representados respectivamente pelos israelenses e palestinos – os conflitos alcançaram novos patamares.

 

Nas décadas seguintes, apesar da OLP ter renunciando à luta armada e reconhecido a existência do Estado de Israel, os episódios de conflito não cessaram. O confronto entre Israel e Líbano e o conseqüente surgimento do Hezbollah, bem como a primeira intifada, redefiniram o panorama da região. A maior conseqüência desta situação, do ponto de vista da sociedade israelense, foi o aumento do grau de incerteza quanto à segurança dentro das fronteiras. Tal sentimento era amplamente alimentado pelos defensores da guerra, que têm sido até hoje diretamente responsáveis pelas políticas de Estado que alimentam o conflito.

 

Naquela conjuntura de crescente sentimento de insegurança, o governo passou a contar com a aprovação da sociedade para impor medidas que restringiam cada vez mais o ingresso de palestinos em território israelense. Para os palestinos - substituídos por coreanos, chineses, tailandeses, etc. no mercado de trabalho israelense - a situação aprofundou a falta de alternativas de trabalho e sobrevivência, uma vez que a economia dos territórios ocupados não gera demanda por mão de obra. Este fato serviu para multiplicar os episódios de protesto contra as medidas do governo israelense e de ataques à população de Israel, especialmente por parte da população palestina. Mas, por parte dos grupos israelenses que consolidavam sua hegemonia, a solução para o conflito será a eliminação da população palestina, uma maneira de encarar o oponente bastante similar aos grupos radicais islâmicos. Não por acaso, todos os que pertencem a este campo são herdeiros do sionismo conservador, contrário à partilha original da terra entre árabes e judeus, como determinado pela ONU em 1947. E a espiral dos ataques e reações dos dois lados continua mantendo o conflito vivo e sangrento até hoje, sendo cada episódio utilizado para propagar a idéia de que só a guerra e a força gera segurança. 

 

Desta forma, não só o Estado de Israel, mas também o ideário sionista - este último entendido como nacionalismo judaico - têm sido apropriados pelos que apostam na perpetuação do conflito.  Já não é somente a comunidade internacional quem promove este amálgama, mas sim a própria sociedade israelense e também as comunidades judaicas de todo o mundo. Assim, assistimos à transfiguração do sionismo: de um conjunto de idéias e práticas de afirmação da nacionalidade judaica para um projeto de consolidação das políticas expansionistas e exclusivistas.

 

Do ponto de vista das comunidades judaicas da diáspora, a situação também é preocupante: suas direções não possuem status de agência de Estado, sendo, na verdade espaços constituídos na sociedade civil. No entanto, seu contato é sempre direto e somente com o governo israelense. Isto constitui uma relação desigual, que cria condições para que as políticas governamentais sejam impostas às direções das instituições judaicas fora de Israel, tornando-as meros defensores destas políticas, retransmissores das palavras e das orientações “oficiais”. Sem estabelecer relações com as instituições da sociedade civil israelense – o que proporcionaria um equilíbrio no diálogo - e monopolizadas pelas agências governamentais, as comunidades judaicas da diáspora encontram-se desprovidas de autonomia, refletindo apenas as posições defendidas pelos campos políticos hegemônicos em Israel.

 

Não há, de nossa parte, uma proposta definitiva de enfrentamento para todas as situações identificadas neste texto. Apenas procuramos apontar problemas e provocar uma reflexão sobre a gravidade do momento atual. Sabemos que uma ruptura não pode se realizar do dia para a noite, tanto do ponto de vista da situação em que se encontra o conflito do Oriente Médio quanto da sociedade israelense. Mas também entendemos que a mudança deverá se realizar a partir dos movimentos sociais israelenses, que serão o motor das transformações. Neste sentido, cabe aqui um apelo para que as instituições e partidos políticos fortaleçam estes movimentos, pois é através deles que a sociedade civil israelense poderá manifestar suas aspirações e impulsionar as mudanças necessárias ao resgate do verdadeiro ideário sionista, o retorno a um sionismo humanista, única garantia de sobrevivência do Estado de Israel. Mas esta retomada do verdadeiro sentido do ideário sionista também depende de uma paz negociada, justa e duradoura no Oriente Médio, com a solução de dois Estados para dois povos que se reconheçam mutuamente e possam manter suas capitais em Jerusalém.  



[1] Historiadora, Doutora em Ciências Sociais, Membro da Representação do Meretz Brasil e coordenadora dos Amigos Brasileiros do Paz Agora no Rio de Janeiro.

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A pesar de discordar de sua plataforma de análise teórica -- te parabenizo pelo brilhante artigo.Não há como discordar e não afirmar que estou de pleno acordo com suas análises - o sionismo, tal qual o conhecíamos, já virou fóssil histórico. O perigo maior está em que dada tal contatação, a de que a ideologia na qual está baseda a justificativa para um estado judeu é uma resultante de cunho conservador e expansionista, concluo que o Israel de meus sonhos e o o sionismo do qual me sentia partícipe já não existem...E agora ( outro ponto em comum com vc.), temos um enorme desafio pela frente, o de nos reinventar. Neste ítem me confesso duplamnte otimista: como historiador dos judeus, assim como vc., sabemos ser nossa história , testemunho de inúmeras "reinvenções" e adapatações e tb. por ser um idealista otimista imperdoável.
Bjs.
Elias

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