Sou judeu por parte da minha mãe e do meu pai. Sou judeu por parte de Lévinas, Buber, Rosenzweig. Sou judeu porque ser judeu significa amar mais a lei do que a terra e a letra tanto quanto o espírito.
Sou judeu em resultado de uma desconfiança, que sempre senti, em relação a estados extáticos e extremos de paixão religiosa.
Sou judeu em resultado da minha rejeição de todas as formas de magia ou mistério: “Cautela”, gritou Lévinas, autor de Difficíle Liberté, Essais sur le Judaïsm, “com todos os falsos profetas que dizem que o homem está ‘mais perto dos deuses quando deixa de pertencer a si próprio’! Em guarda, judeus, contra o esquecimento de que o judaísmo é a única religião no mundo que prega a recusa das forças obscuras – a religião do desencanto, do santo e não do sagrado!” É assim que sou judeu.
Sou judeu porque sou antinaturalista e antimaterialista – sou judeu, por outras palavras, porque me sinto em casa no Livro e entre os homens, mais do que na obscura floresta de símbolos e até na vida.
Sou um judeu do galout (exílio, diáspora); sou um judeu que, há anos e anos, reflecte nesta questão do galout; não propriamente na reabilitação do galout; não, falando correctamente, na metafísica do galout; e, ainda menos, na distância em relação a Israel, que amo do fundo do coração, um amor incondicional; mas a meditação num exílio essencial, sem redenção nem retorno, que para mim parece constituir o que significa ser judeu, tanto no galout como em Israel; o contrário do exílio de Ulisses; a correlação e parte do fascínio, judaico também, com o reino dos céus; não é Judeu o nome, igualmente, do filho de Abraão (o Hebreu) e de Jacob (o Israelita)? Não é a filosofia judaica, indissociavelmente, a filosofia dos reis e dos profetas, de Israel e a da voz que, através de Jeremias, implora ao “resto de Israel” para “fortificar as suas posições no exílio”?
Sou judeu porque não sou um platónico; judeu por causa do que chamarei, para ser sucinto, anti-platonismo coextensivo ao pensamento judaico; uma ética mais do que um ponto de vista; uma relação com os outros homens tanto quanto com Deus ou, mais exactamente, a Deus, sim, mas porque, e somente porque, me traz mais perto do meu semelhante.
Sou judeu como Lévinas quando ele discute a amizade com Buber. Nessa discussão, que é digna, pelos seus termos, da famosa disputa em que Proust, sobre o mesmo tema, acaba por atirar os sapatos à cara de Emmanuel Berl, Lévinas expressa a sua desconfiança das noções buberianas de diálogo e reciprocidade. Sou judeu, sim, na forma como Lévinas declara ser estranha e irrelevante a ideia de uma amizade puramente espiritual, ou “desnervada”, que pode apenas cair em “formalismo”. Ele conclui com estas formulações magníficas, que são parte do meu judaísmo: o Outro necessita mais de “solicitude” do que de “amizade”, porque “vestir os que estão nus e alimentar os que têm fome é o real e concreto acesso ao Outro, mais autêntico do que amizade etérea.”
Sou um judeu que não é realmente um humanista (a palavra perde o sentido para um leitor, mesmo o menos versado, do Maharal de Praga ou do Gaon de Vilna), mas sou consciente de um judaísmo que me faz responsável pelos outros, o seu guardador – um judaísmo que se define, assim, como uma ética e define esta ética como aquela que é estabelecida quando eu resolvo fazer de mim não o igual mas o refém do meu semelhante e que vejo, sobre o meu “eu”, um “Ele” que me domina das sagradas alturas.
Sou um judeu que não é obviamente político (como pode um estudante de Lévinas esquecer o seu Politique Aprés?) mas aberto, por outro lado, ao mundo e a fazer do messianismo a responsabilidade básica do homem, de cada homem, no trabalho de redenção.
Sou um judeu universalista.
Sou um judeu que não se resigna a deixar ao cristianismo o monopólio do universalismo. O “povo escolhido”, tanto para mim como para Lévinas e Albert Cohen, não é um privilégio, mas uma missão. O papel do povo judeu, tanto para mim como para Rosenzweig, é abrir, a todos os povos, as invisíveis e sagradas portas que iluminam a estrela da redenção. É este, aos meus olhos, o significado do mandamento de Deuteronómio: “Não abominarás o idumeu, pois é teu irmão; não abominarás o egípcio”; e também na história de Jonas, a quem Deus diz: “Levanta-te, vai à grande cidade de Ninive e clama”, mesmo quando Ninive é, como ele sabe, o inimigo de Israel, a capital da Assíria, o próprio reino do mal.
Sou um judeu tal como Walter Benjamin quando Benjamin fala da sua “solicitude para com os vencidos e famintos” – sou judeu no sentido de Poésie et Revolution e de Teses Sobre o Conceito da História mostrando que “cada segundo é a porta estreita através da qual pode passar o messias.”
Sou um judeu que acredita, como Benjamin e, de certa forma, Scholem, que o messianismo judaico é a “encarnação de uma história secreta e invisível” que “se contrapõe à história dos fortes e dos poderosos”, que é como quem diz a “história visível” – toda a minha vida acreditei neste judaísmo, e isto é o que tenho praticado.
Fui judeu, por outras palavras, no meu Réflexions sur la Guerre, le Mal e la Fin de l’Histoire. Fui judeu no Burundi, em Angola, e na Bósnia muçulmana. Fui judeu entre os nubios a caminho de serem exterminados no sul do Sudão.
Fui judeu cada vez que, nas mais desoladas zonas do mundo, no coração das suas mais esquecidas guerras, eu aprendi a instrução judaica segundo a qual a mais séria prova da existência de Deus é a existência de rostos – e o sinal do eclipse de Deus é o seu apagamento programado.
Sou judeu porque acredito num Deus que por outra definição é “Não Matarás”.
Sou judeu quando tentei, ao longo de um ano, traçar os passos de Daniel Pearl, e sou judeu quando, à minha maneira, modesta e secular, sim, mas à minha maneira, tento contribuir para a santificação do seu nome.
Bernard-Henry Lévy, filósofo, escritor, jornalista e ensaísta francês. Retirado do livro “I Am Jewish: Personal Reflections Inspired by the Last Words of Daniel Pearl”, 2004.