JUDAISMO HUMANISTA

O Judaismo Humanista é a pratica da liberdade e dignidade humana

Com a chegada das Grandes Festas fica-nos o questionamento de alguns de seus símbolos. Entendê-los para vivenciá-los; refletir sobre seus significados, mas poder ampliar seu simbolismo e adaptá-los a novos tempos. Vamos elaborar uma reflexão sobre certos símbolos e sobre alguns dos personagens que permeiam as leituras do Pentateuco (Torá) realizadas durante o Ano Novo Judaico (Rosh Hashaná).
Um dos nomes pouco conhecidos da festa é Iom Arat Olam (dia da criação do Mundo). A tradição judaica apresenta esta data como o dia do “aniversário” do Mundo. O primeiro símbolo e ao mesmo tempo questão sobre o qual podemos refletir seria o porquê da Criação? Ou seja, qual seria a “razão de ser” do Homem, o motivo deste ter sido criado? Ao criar o ser humano, D-us afirmou que o fazia “à sua imagem e semelhança”. Qual seria o significado desta afirmação? Há diversas possibilidades interpretativas. Direcionaremos nossa reflexão através de uma destas: não seria uma semelhança física pois D-us é um Ser Espiritual e não é dotado de corpo ou aparência física, dentro das definições judaicas. Maimônides afirma isso nos Treze Preceitos e não há oposição a esta definição, no seio do Judaísmo (“Ein lo demut haguf veein lo Guf = não tem forma corpórea e nem corpo”, numa tradução simplificada). Então seria o quê? Nossa análise nos leva a crer que seria a capacidade humana de se diferenciar do resto da natureza e transcender ao reino animal. E como isto seria possível? A tradição elabora um refinado simbolismo, pelo qual D-us coloca o ser humano no Jardim de Éden, um vasto e elaborado horto ou bosque. Ao Homem caberia cultivá-lo e cuidá-lo, mas estava proibido de comer de duas de suas árvores: a árvore do Conhecimento do Bem e do Mal e a árvore da Vida. Ao final da narrativa o casal primordial (Adão e Eva) transgride esta proibição, e os dois acabam por comer do fruto da primeira árvore e adquirem uma nova percepção do Mundo e dos valores morais. Descobrem a diferença entre o Bem e o Mal, aprendem a discernir entre os valores éticos e morais. De fato, acabam se humanizando e se tornando “a imagem e semelhança” de D-us. Transcendem a sua condição animal e passam a reinar sobre a Terra. Estão prontos para descerem a este Mundo e começarem a sua difícil missão de Redenção: criar o Jardim de Éden, na Terra. Eu acho que não fizeram mais do que o que se esperava deles.
O Cristianismo denomina esta narrativa (Gênesis, c. 2 e 3), como o “pecado original”. Mas ao nosso entender, não há pecado, apesar da desobediência. É semelhante ao filho que sai da tutela dos pais e segue na vida, adquirindo consciência da sua razão de ter sido gerado. A razão de ser do Homem, numa visão judaica contemporânea seria, ao nosso ver, humanizar-se: descobrir quem é, para que veio ao Mundo, e aprender através da sua própria experiência o que é certo ou errado (o fruto do conhecimento do Bem e do Mal). Cadê o pecado? Que tal refletir sobre isto?
Outro trecho lembrado e repetido nas leituras do 2º dia do Ano Novo Judaico (Rosh Hashaná), é o sacrifício de Isaque. Apesar de sempre ter visto em Abraão um modelo de ser humano, repleto de valores judaicos e universais, sempre me causou certo incomodo a atitude de Abraão. Ao ser testado por D-us, não reluta em obedecê-lo. Abraão tivera seu filho Isaque em idade muito avançada, (quase 100 anos). Tratava-se do único filho com sua esposa Sara. Deveria ser o seu sucessor e continuador do pacto com D-us. A ordem era: tome seu filho Isaque e realize um sacrifício no local que te indicarei (Monte Moriah). Sendo apenas uma prova de obediência e de fidelidade, D-us queria ver se Abraão lhe era fiel. Os povos de Canaã faziam sacrifícios de primogênitos, de acordo a alguns estudiosos. Não era, portanto um gesto tresloucado e nem algo incomum. Mas Abraão foi detido por um anjo, no exato momento em que ia consumar a imolação de seu amado filho, no altar de sacrifício. No contexto da época seria algo normal. Mas em meu entender, se trata de um gesto incoerente com toda a tradição judaica. Os rabinos trataram de dar interpretações simbólicas para tal atitude. Abraão agiu em um gesto muito radical de “fé cega, faca amolada”. O Judaísmo, utilizou este caso, para proibir, a partir da entrega do Pentateuco (Torá), todos os sacrifícios humanos. Em Rosh Hashaná, rogo a meus leitores que leiam e debatam sobre o sacrifício de nossos filhos. Se estamos sempre condenando e acusando a crescente violência e o sacrifício de vidas humanas, devemos condenar a miséria que está espalhada em nossa sociedade brasileira e mundial, a fome e o sacrifício a que estão condenados milhares de crianças, aqui e no mundo todo. Isso deve ser feito no cotidiano, através do ano inteiro. E deve ser passado para nossos filhos: a salvação de meu filho, deve ser universalizada para todos os filhos de seres humanos condenados à fome, à miséria e à violência.
Outra reflexão que incorpora as duas anteriores. Os nossos filhos são imagem e semelhança do quê? Dos nossos ancestrais? De valores que defendemos e lutamos? Ou são valores hedonistas e materialistas?
Temos diante de nós uma geração muito diferente de tudo que eram nossos avós e do que fomos. São jovens saudáveis, bem alimentados e inteligentes. Destacam-se nos estudos e depois nas suas profissões. As exceções só fortalecem a regra. O que querer mais de nossos filhos? Qualquer crítica seria radical e exagerada.
Se olharmos por uma ótica distinta, poderíamos ver que estamos criando uma geração e já criamos outras nas quais se sente uma crescente indiferença pelo contexto social que nos cerca, de uma hibridez ideológica e um hedonismo e consumismo irreprimíveis.
Os avós e bisavós vieram ao Brasil para fazer a América. Pobres e repletos de sonhos e ideais: uns eram sionistas, outros progressistas, uns eram religiosos e outros tradicionais. Pobres materialmente, mas ricos espiritualmente. A solidariedade grupal era acentuada. A ajuda ao próximo era parte de seu cotidiano. Sua teoria era semelhante à sua prática judaica. Isso foi mudando. A geração de transição (ou as gerações de transição) assumiu o papel importante de se integrar ao mundo que nos cercava, estudar e se profissionalizar, e obter a igualdade dentro do mundo não judeu. E realizou um mecanismo de “centrifugação”: uns seguiram judeus, mas mudaram seus hábitos e costumes, adaptando-os as novas necessidades; outros se distanciaram e se assimilaram ao meio circundante. Tornaram-se híbridos e sem identidade judaica e humanista. Seres incolores, sem luz e sem “idishe neshume” (alma judaica). Alguns “deram a volta” e retornaram às suas raízes.
Mas e os filhos? Estamos sacrificando-os no altar da sociedade hedonista e consumista, tornando-os seres que não sabem “ser”, mas apenas “ter”. Me explico: Os jovens raramente têm ideais e pouquíssima ação social. Vivem iguais a todos os jovens de classe média. Não há ideologia entre eles: não são religiosos, nem esquerdistas, nem assumem posições conservadoras, mas tampouco são progressistas. Hoje não se quer “ser”, apenas se quer ter. Viagens a Disneylândia; roupas de griffe e aparelhos eletrônicos de ultima geração. Adoram shopping, consumir e “ter”. Se entrarem na faculdade devem ter um carro! Se vão para o colegial devem fazer intercâmbio nos EUA. Necessidades de consumo que os distanciam do mundo real. Necessidades de pessoas que não vão pensar em agir e melhorar o mundo externo salvo como o veículo de sua ascensão social e profissional.
E aonde entra o Judaísmo? Sobra algum espaço para praticá-lo? Reserva-se algum espaço para rituais do ciclo da vida (Brit, Bar e Bat Mitzvá, etc.). Por vezes a cerimônia perde em importância para a festa. O “show deve continuar”: desfiles de roupas nas grandes festas, bar e bat mitzvot ostentando e exibindo riqueza, desdém e incompreensão pelos símbolos e pelos valores. Onde estão os valores éticos de nossos avós? Aonde foram parar as ideologias multifacetadas de nossos ancestrais, que debatiam tudo e que criticavam de maneiras diferentes, a tudo e a todos. Nossos filhos são mais bem informados do que nossos avós, mas lhes falta esta crítica. Falta-lhes a alma judaica (a idishe neshume). Seria esta a “imagem e semelhança” de nossos valores materialistas?
O exemplo que me parece mais marcante é a distância que muitos pais da comunidade têm da Escola Israelita. Ainda que esta ofereça ensino de alto nível, não é dotada de um prédio adornado com mármore e nem tem os computadores de última geração. Ensina através da Oraá Muteemet (método de vanguarda, criado e desenvolvido em Israel). Oferece a tradição judaica e os valores éticos e universais do Judaísmo. Como a Escola enfatiza o conteúdo e os valores, não interessa a certos pais mais interessados nas aparências e na edificação. Trocar a EIBSG pelas aparências é trocar uma herança milenar, pelo direito de não “ser”, pela centrifugação e pulverização social. Terrível futilidade e vazio de espírito. Estes pais deviam aproveitar as festas para refletir na busca de raízes e de identidade. Veja que nossos filhos são como pequenas árvores: se irrigarmos com água (lar) e lhe oferecermos luz (afeto), serão fortes e garbosas, pois a terra é fértil. A terra é a nossa tradição. Nela os brotos terão identidade e não serão seres “sem cor e sem luz”. Se os criarmos em estufas, não terão relação com nenhuma terra (tradição e identidade) e ao serem replantadas no mundo não terão sua identidade clara. Pessoas sem identidade são seres híbridos, repletos de vazios e crises existenciais. Reflita: é isso que quer criar?
E nossos filhos? Iríamos sacrificá-los no altar para D-us? Nunca. Mas, de maneira simbólica, estamos sacrificando-os de certa forma, para ídolos (materialismo seria uma maneira de ser idolatra!). O segundo mandamento diz: Não terás outros deuses diante de Mim e não farás imagens. O materialismo que ora substitui a espiritualidade de nossos avós, não seria uma maneira moderna de ser idólatra. As Grandes Festas oferecem espaço para novas reflexões e questionamentos. Devemos repensar se em nosso contexto não estamos sacrificando nossos filhos, suprindo-os de bens e valores materiais e hedonistas e privando-os de valores éticos e morais, do Judaísmo e do Humanismo. Aproveite o Ano Novo para repensar seus valores e sua relação com seus filhos.

* Sergio Feldman é professor adjunto de História Antiga do Curso de História da Universidade Tuiuti do Paraná e doutorando em História pela UFPR.

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Respostas a este tópico

Caro Sérgio, seja bem vindo ao clube. O clube informalmente constituído por mim, Paulo Blank, Jayme Fucs Bar, e alguns poucos outros que teimam em preservar o Judaísmo não por "bairrismo", xenofobia ou reacionarismo puro e simples, mas por entenderem que o Judaísmo é parte da herança humana, e como tal deve sempre se manter em contato estreito e frutífero com o resto da humanidade. Judaísmo como tradição universal, não como um à parte e distante do resto.

Escrevi um artigo sobre Abrahão (acho que já foi publicado aqui no Humanismo Judaico) em que digo coisas muito semelhantes às suas, e minha "Introdução à Hagadáh" (publicada mais uma vez por estes dias) afirma insistentemente essa pertinência (nos dois sentidos da palavra) importantíssima da tradição judaica à e para a Humanidade como um todo. Essa luta contra o materialismo oco (e burro) é nossa também, não porque é preciso conservar a nossa tradição, mas porque somos seres humanos e, como tais, devemos nos tornar cada vez mais humanos. Repetindo, seja muito bem vindo ao clube.

Abração. Davy.



Davy Bogomoletz disse:

Caro Sérgio, seja bem vindo ao clube. O clube informalmente constituído por mim, Paulo Blank, Jayme Fucs Bar, e alguns poucos outros que teimam em preservar o Judaísmo não por "bairrismo", xenofobia ou reacionarismo puro e simples, mas por entenderem que o Judaísmo é parte da herança humana, e como tal deve sempre se manter em contato estreito e frutífero com o resto da humanidade. Judaísmo como tradição universal, não como um à parte e distante do resto.

Escrevi um artigo sobre Abrahão (acho que já foi publicado aqui no Humanismo Judaico) em que digo coisas muito semelhantes às suas, e minha "Introdução à Hagadáh" (publicada mais uma vez por estes dias) afirma insistentemente essa pertinência (nos dois sentidos da palavra) importantíssima da tradição judaica à e para a Humanidade como um todo. Essa luta contra o materialismo oco (e burro) é nossa também, não porque é preciso conservar a nossa tradição, mas porque somos seres humanos e, como tais, devemos nos tornar cada vez mais humanos. Repetindo, seja muito bem vindo ao clube.

Abração. Davy.

"O Cristianismo denomina esta narrativa (Gênesis, c. 2 e 3), como o “pecado original”. Mas ao nosso entender, não há pecado, apesar da desobediência. É semelhante ao filho que sai da tutela dos pais e segue na vida, adquirindo consciência da sua razão de ter sido gerado. A razão de ser do Homem, numa visão judaica contemporânea seria, ao nosso ver, humanizar-se: descobrir quem é, para que veio ao Mundo, e aprender através da sua própria experiência o que é certo ou errado (o fruto do conhecimento do Bem e do Mal). Cadê o pecado? Que tal refletir sobre isto?"

Bom texto. Profundo disfarçado de simplista pelo uso de palavras discerníveis. Uma notinha de esclarecimento: Esse conceito de “pecado original” não é fruto do Cristianismo. É de uma interpretação Católica Romana do Cristianismo. Esse conceito de pecado, dissecado, desembocaria no questionamento infalibilidade (aparente) de D—s. Creio que a falibilidade, se houver na criação, seria o reverso da mesma moeda que tem uma função aquisitiva. E a aquisição da criação, eu prefiro acreditar que foi para o bem, seja ele qual for, mesmo se indiscernível com mentes limitadas. Não necessitamos de entender de Embaralhamento de Fótons (Photons entanglement) para saber que durante o dia há luz solar - e a noite não a temos. Sh'muel J. de Mattos

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