Quando Abdul, 14, abriu os olhos, há dez dias, ele não enxergou os desertos sírios onde cresceu --mas o mar da Galileia, do outro lado da fronteira, no Estado que ele considerava inimigo: Israel.
Ferido durante o conflito na Síria e carente de tratamento médico, o garoto foi levado ao hospital israelense de Ziv, na cidade de Safed, onde esteve internado. Ele retornou no último domingo à Síria.
Abdul é um dos 15 sírios que, contrariando as inimizades, são tratados por médicos israelenses. O hospital de Ziv não cobra pelo serviço, e o governo agora estuda quem vai pagar as contas.
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Joel Silva/Folhapress |
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Ahmad, 15, foi ferido na guerra; ele não quis se identificar |
Oscar Embon, diretor do hospital, lembra o dia de fevereiro em que sete sírios foram trazidos para receber seus cuidados. Estavam gravemente feridos, "e um deles estava quase morto", afirma.
"Recebemos um telefonema do Exército nos avisando de que trariam os sírios", diz. "Tenho orgulho de dizer que os sete voltaram para casa capazes de caminhar."
A ideia de "voltar para casa", porém, é uma suposição. Assim como os soldados trazem os sírios sem dar explicações, também os levam quando têm alta. "Não sabemos para onde vão." Procurado pela Folha, o Exército não comentou essa questão.
O diretor do hospital afirma que a única pergunta que insiste em fazer é se os pacientes vão receber assistência médica quando libertados. As autoridades israelenses lhe dizem que sim.
RELAÇÃO DELICADA
De fevereiro até esta terça-feira, o hospital de Ziv já recebeu 146 feridos sírios. Entre os 15 atualmente internados, seis são menores de idade. Não há informações a respeito da filiação dos pacientes, ou seja, se fazem parte da oposição ou se apoiam o regime da Síria.
"Nós não investigamos de onde eles vêm. Pelas histórias que contam, suponho que sejam civis. Mas, para mim, são apenas seres humanos precisando de ajuda."
O conflito na Síria, iniciado em março de 2011, já deixou mais de 100 mil mortos. Milhões foram deslocados.
A região de Deraa, no sul, é uma das mais afetadas, com frequentes bombardeios. Os pacientes levados a Ziv vêm, em geral, dali.
Pacientes ouvidos pela reportagem afirmaram que a transferência dos feridos é feita, na fronteira, com intermediação entre o Exército Livre da Síria --de oposição-- e as Forças de Defesa de Israel.
É uma relação bastante delicada, pois as autoridades israelenses afirmam, oficialmente, que o país não interfere por nenhum dos lados do conflito no país vizinho.
Um veículo de comunicação egípcio afirmou que o hospital de Ziv é o "primeiro recurso para que as facções terroristas recebam tratamento e reabilitação antes de voltarem ao território sírio".
Quando a reportagem visitou a ala hospitalar em que pacientes sírios estão internados, um soldado guardava os pacientes sentado em uma cadeira, no corredor.
O hospital autorizou a Folha a fazer as entrevistas ali, mas o militar impediu o repórter de falar com os pacientes. As entrevistas, então, foram realizadas num pátio externo, durante um outro momento.
REPENSAR
As histórias de sírios sendo tratados em Israel têm circulado na região, para a surpresa de populações acostumadas à retórica bélica. O fluxo de pacientes tem aumentado, supostamente devido ao boca a boca entre ex-feridos de volta a Deraa.
"Imagino que eles não pensem bem de mim", afirma o diretor Embon. "Estou em Israel, que eles consideram um Estado inimigo. Mas não me importo com isso."
Ele nota, porém, que diversos pacientes agradecem o cuidado e dizem ter reavaliado sua opinião em relação aos israelenses. "Minha crença é de que os inimigos são os regimes, não os civis."
Israel e Síria têm um histórico de confrontos militares, incluindo a guerra de 1967.