- “Olho por olho e dente por dente! Civis inocentes? Mulheres e crianças? Sim!” – Y.D.V. acredita ser melhor matar as crianças antes que elas sofram lavagem cerebral.
- M.R. acha que, se o comentarista judeu da TV não concorda com as nossas opiniões, nós temos mais é que excomungá-lo!
- A culpada é a deputada Zoabi, vamos enforcá-la! – J.Y.
- Continuem desejando um Ramadã Abençoado enquanto eles assassinam as nossas crianças – J.P.
- Quando palestinos lincham israelenses, é o símbolo de que são um povo de bárbaros. Quando israelenses lincham palestinos, é porque mereceram.
- B.J. nem sabe que o Mossad não atua nos territórios, deve estar imaginando uma operação como a do filme “Munique”, mas sabe muito bem que tá falando besteira, então pediu logo desculpas.
- A melhor saída é o genocídio. Crime de guerra? Dá nada…
- A.G.B. não sabia que a Rede Globo havia noticiado, mas aproveitou pra chamar todos os palestinos de “animais”.
- A.B. não vê a hora de Israel entrar enfiando com tudo na mãe dos terroristas, mas deseja tudo de bom para as almas dos meninos.
Eu vejo todos estes (maus) exemplos e só uma cena me vem à cabeça. Quando o jornal dinamarquês Jyllands-Posten divulgou, em 30 de setembro de 2005, caricaturas do profeta Maomé, o mundo muçulmano sentiu-se ultrajado. Segundo o Islã, qualquer reprodução, honrosa ou vexatória do profeta é proibida. O mundo ocidental, então, horrorizou-se diante da reação muçulmana: embaixadas dinamarquesas em diversos países foram alvo de protestos e ataques. A mim, mais do que o teor da reação propriamente dita, me causou estranheza a incapacidade daquelas hordas de compreenderem que a responsabilidade sobre a publicação das caricaturas, ainda que tenham sido permitidas por um ambiente de liberdade de expressão e plena compreensão de conceitos como ironia e sátira, recai principalmente sobre seus autores e os editores que as autorizaram.
As pessoas que preferem reagir ao assassinato dos rapazes seqüestrados rotulando todo o povo palestino como assassino, terrorista, verme e clamam por sua aniquilação – que aliás é crime de guerra, pois genocídio – sem diferenciar terroristas de trabalhadores e pais de família, podem até considerar-se civilizadas. A verdade é que nada mais fazem do que igualar-se aos idiotas medievais do episódio acima, ou de tantos outros, como o ataque às embaixadas americanas em retaliação à divulgação via YouTube do filme Innocence of Muslims, em setembro de 2012.
No dia seguinte à localização dos corpos do três jovens israelenses, a terça-feira, percebi que, ao contrário do assustadores exemplos de Pe Djora descritos pelo Yair Mau em seu artigo anterior, estas declarações não ficariam limitadas ao campo das idéias. Acordei e fiquei sabendo que a Força Aérea havia bombardeado durante a madrugada mais de trinta alvos do Hamas na Faixa de Gaza, que retaliações haviam ocorrido ao longo da noite e outras eram esperadas ao longo do dia. Precisava estar à tarde em Beer-Sheva, a capital do sul do país e maior cidade dentro do raio de alcance da maioria dos foguetes lançados pelo Hamas. Fui e voltei com medo. Ainda que nada tenha acontecido, o susto maior se deu quando retornei a Jerusalém, no inicio da noite.
Viver em Jerusalém é vivenciar Israel em sua totalidade. É morar a poucos minutos da Cidade Velha e de seu Muro das Lamentações, é sentir o cheiro da chalá sendo assada nas padarias nas horas que precedem o Shabat, é andar pelas ruas que testemunharam a História a caminho da Cinemateca para assistir às pré-estréias dos filmes dos diretores israelenses. Mas é também lidar diariamente com as tensões da sociedade israelense: religiosos contra laicos, ultraortodoxos contra sionistas, judeus contra árabes. Este último embate é quase que uma exclusividade nossa – poucas são as cidades israelenses de população realmente mista.
Todas estas questões somam-se à posição da cidade como capital do país e resultam em uma realidade: Jerusalém é uma cidade de protestos. Quem já morou aqui sabe que é sempre bom estar a par do que ocorre pela cidade a todo instante, a fim de evitar ruas bloqueadas inesperadamente e possíveis atrasos. Com um agravante: lar de uma grande população ultra-ortodoxa que não trabalha, Jerusalém também se dá ao luxo de ter protestos durante o dia, no horário comercial. Aqui não tem apenas “depois do expediente, todo mundo na Rio Branco protestando”, mas também “sai de casa agora e vamos bloquear a entrada da cidade no meio da terça-feira”.
E foi exatamente isso que ocorreu. No exato momento em que, a menos de 40 quilômetros de Jerusalém, as famílias enterravam os corpos dos três rapazes, dezenas de milhares de jovens, em sua maioria extremistas de direita e religiosos-nacionalistas, muitos membros da Juventude das Colinas sobre a qual o João Koatz Miragaya já falou, iniciaram uma manifestação não-autorizada sob a ponte estaiada por onde passa o trilho do bonde, na principal entrada da cidade . Quando meu ônibus retornou de Beer-Sheva, a polícia já havia conseguido desobstruir a via, não sem entrar em choque com os manifestantes.
Mas esta não era uma boa notícia.
Frustrados em sua tentativa de praticamente sitiar a capital do país, os jovens manifestantes que clamavam por “vingança” e “basta deste governo de assassinos” iniciaram sua marcha pela Rua Yaffo até a Cidade Velha. Noite dos Cristais foi o termo usando pelos meus amigos, testemunhas do que ocorria no coração da nossa cidade e era o título original deste artigo, mas acabei optando por uma alternativa menos sensacionalista. Para narrar os lamentáveis e assustadores episódios que aqui ocorreram e me tiraram de meu anterior estado de apatia, me limitarei a traduzir quatros atualizações de status compartilhadas por amigos e conhecidos, ao longo da tarde e da noite desta terça-feira.
“Ayelet Shaked decidiu que é agora. Este é seu momento, esta é sua hora. Hoje ela vai descontar seu cheque. Pais “quebrados”, muita fúria – é preciso aproveitar-se rápido antes que retornem à indiferença comum. Ayelet incitou, e as massas a seguiram.
“Um povo cujos heróis assassinam nossas crianças deve ser tratado no mesmo nível”
Eu sou uma pessoa bastante associativa. A primeira associação que me veio à cabeça foi “A Noite dos Cristais”, um dos progroms se não o maior de todos, que ocorreu porque os nazistas usaram-se no assassinato de um diplomata alemão ao Paris, morto por Herschel Grynszpan, um refugiado judeu.
#éproibidocomparar”
- N.E.
“Estava agora mesmo no supermercado Coop da Colina Francesa [N.T.: a Colina Francesa é um bairro de Jerusalém Oriental, localizado próximo ao campus da Universidade Hebraica, onde moram cidadãos árabes e judeus, muitos deles colegas de turma] e, enquanto esperava na fila, ouvi uma conversa entre dois homens judeus:
- Estou triste o dia todo.
- Porquê?
- Você não sabe porquê?
Neste momento, achei que ele fosse falar que estava triste por causa dos três rapazes seqüestrados que foram assassinados. Mas não:
- Porque ainda não matei nenhum árabe hoje.
No supermercado, cheio de funcionários e clientes árabes, ele disse isso em voz alta sem evergonhar-se.
Logo percebi no caixa ao lado uma moça (que parecia ser árabe) olhando-o enfurecida.
Todo este ódio para mim é muito claro… há raiva e fúria para com o outro lado em função do ocorrido, e com razão. E quem me conhece sabe as minhas posições. Mas não podemos justificar exibições de ódio como essa que, além do fato de generalizarem os árabes, não contribuem para melhorar a situação e semeiam ainda mais ódio no outro lado para conosco!”
- A.B., a mesma A.B. do post relatado mais acima.
“Há quase quatro anos eu trabalho em Jerusalém. Já vi de tudo. O belo e o feio. Sensatez e demência. Mas o que está acontecendo neste momento, em plana Praça Sion, com milhares de kahanistas, em sua maioria rapazes e moças, galopam pela Rua Yaffo em direção à Cidade Velha berrando “Morte aos árabes!” e “Queremos vingança!”, reconheço que esperava não ver no Estado de Israel em meus dias de vida. Espero muito que não aconteça uma pequena noite dos cristais na área do Portão de Damasco mas, pela indiferença da polícia e pela feição concentrada do [ex-deputado da extrema-direita Itamar] Ben Gvir e do [presidente da ONG extremista Lehava] Bentzi Gupshtein, eu realmente não sei o que pensar.
Em volta, as pessoas olham estupefadas, um árabe cochicha no telefone e olha amedrontado para qualquer movimentação, um homem mais velho me diz:
- Espera, em mais uns anos não teremos Estado.
Outras três jovens com adesivos “Kahane estava certo” e bandeiras de Israel cruzam a praça e se juntam à multidão.
Que deus tenha piedade de nós”
- C.T.
“Estação ‘Yaffo – King George’ do bonde, 23:00. Um grupo de kahanistas cantam empolgados “Morte aos árabes!”. De pé, parada, assisto de lado a esta cena aterradora. Uma moça do grupo me pede um shekel para completar a passagem. Eu me afasto dela. Assim passam-se alguns minutos. Eu vejo que estão tentando articular um alvoroço em frente à casa do primeiro-ministro, então, como boa cidadã que sou, com fé na polícia (pois é) fui sussurrar (pois é) ao pé do ouvido do policial de maior patente que encontrei.
Então, do outro lado da rua, vejo uma moça com hijjab, correndo e abaixando sua cabeça. Pensei em ir atrás dela. Após alguns segundos, o rebanho passa a persegui-la, gritando “Morte aos árabes!”. Sinceramente temi por sua vida, sinceramente achei que fossem linchá-la. Não me contive e comecei a gritar que eram filhos da puta e que eu tinha vergonha deles. Então, até o trem chegar, alguns deles gritaram para mim também, e então temi por minha vida até que chegou um turista espanhol e me perguntou qual o motivo da confusão. Lhe expliquei e fiquei feliz de não estar ali sozinha entre eles.
No momento em que subi no vagão, percebi um garoto árabe sentado sozinho, então me sentei ao seu lado. Talvez porque eu sou uma maníaca esquerdista que se acha melhor que todo mundo (hipótese bastante difundida). Quando o grupo de recistas percebeu o garoto, as portas do vagão já havia se fechado, mas eles atingiam os vidros com golpes mortais e faziam gestos obscenos para o garoto. Ele fez os mesmos gestos de volta, mas sentava-se curvado e eu acredito que também um pouco amedrontado.
Liguei para a polícia. Na minha frente no vagão encontravam-se algumas mulheres religiosas. Expliquei para elas que eu temia pela minha vida e pelas vidas de quem circula pelas ruas de Jerusalém nesta noite dos cristais sem agradar aos kahanistas. Uma das mulheres me ouviu e foi simpática. Enquanto isso, as outras mulheres gritavam “Porque você defende os árabes?” e lhes respondi também aos berros. Senti bastante medo, para falar a verdade, mas aparentemente menos do que o garoto que se sentava ao meu lado. Sorte que de repente o M.S. chegou à cena, sentou-se ao meu lado e continuou o duelo em meu lugar. Ele tentou ser simpático e explicar, à sua maneira inteligente, e em sua ingenuidade perguntou se a vida de um judeu valeria mais que a vida de um árabe. A resposta de algumas pessoas à nossa volta era que a vida do judeu vale mais, sim! No final, até o M. perdeu a paciência após a moça desferir-lhe um golpe [verbal] afirmando que ele estava se lixando para o assassinato de três judeus.
Mudamos de lugar e comecei a balbuciar os versos de “katuv be-iparon bakaron hachatum” [N.T. poesia sobre o Holocausto]. Até que chegamos a Beit HaKarem, não parei de gritar o que gostaria de ter dito em voz baixa, que em toda a minha vida não havia visto tamanho demonstração de ódio. Em toda a minha vida, não havia estado tão próxima a um linchamento.
Não tenho muitas palavras de consolo no momento, ou mesmo palavras de reconciliação.
Apenas queria compartilhar a experiência e a taquicardia que ainda estou sentindo.
E obrigado novamente ao M., por existir.”
- C.M.
A polícia impediu que os extremistas cruzassem a Praça Tzahal, que separa a prefeitura da Cidade Velha, representando a fronteira entre o lado judaico e o lado árabe de Jerusalém. Os manifestantes, então, se dispersaram em pequenos grupos que invadiam estabelecimentos comerciais judaicos à procura de funcionários árabes. Ao avistarem quaisquer pessoas de pele mais escura, perguntavam o horário, para identificar a etnia da potencial vítima pelo sotaque, evitando o “linchamento desnecessário” de judeus orientais.
Policiais tiveram que expulsar extremistas que queriam espancar funcionários árabes dentro da filial do McDonald’s e conter ataques a grupos de cidadãos muçulmanos que se reuniam pelo centro da cidade ao final do dia para a refeição de quebra do jejum diário de seu mês sagrado, o Ramadã.
Enquanto eu finalizava este artigo, já na manhã da quarta-feira, surgiam as notícias do desaparecimento de um jovem árabe. Os bandos responsáveis por toda a baderna da noite anterior eram os principais suspeitos. Engoli a perplexidade, tomei um café e fui à prefeitura resolver umas burocracias do meu IPTU. De volta à minha casa, ligo para a prefeitura novamente (pagamentos não podem ser feitos pessoalmente – não é só o Brasil que padece de burocracite), pago meu IPTU e, ao final da ligação, sem que a atendente perceba que ainda não havia desligado, ouço-a comentando com alguém: “Você viu que acharam o corpo do garoto árabe? Mas quem se importa com ele?”. As investigações indicam que não tratou-se de crime de ódio.
Estas pessoas, senhoras e senhores, estes são os inconseqüentes que se apoderaram da minha causa e me acusam de não ser sionista. Mais do que isso, por não odiar os árabes, nem desejar sua morte, me acusam de ingênuo e traidor da pátria.
Tenho vergonha de pertencer ao mesmo povo que todos estes indivíduos.
Não passarão!